"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/12/2017

Jurisprudência (750)


Incidentes da instância; decisões finais;
recorribilidade; revista


1. O sumário de STJ 29/6/2017 (2487/07.1TBCBR-C.C1.S1) é o seguinte;

I. Os incidentes da instância traduzem-se em relações processuais secundárias, intercorrentes no processo principal, de caráter episódico ou eventual, que se destinam a prover, em regra, sobre questões acessórias, nomeadamente respeitantes ao preenchimento ou à modificação de alguns dos elementos da instância em que se inserem, como sucede nos casos de substituição de alguma das partes - art.º 262.º, alínea a), do CPC.

II. Diferentemente do previsto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, quanto ao cabimento do recurso de apelação autónoma de decisão da 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, os parâmetros de admissibilidade da revista definidos no n.º 1 do art.º 671.º do mesmo diploma não contemplam as decisões finais dos incidentes da instância que versem unicamente sobre a relação processual.

III. Assim, do acórdão da Relação que revogue uma decisão da 1.ª instância a julgar procedente um incidente de habilitação singular de cessionário, considerando, ao invés, tal habilitação improcedente com fundamento em nulidade, por simulação, da invocada cessão de crédito, só é admissível revista com base nos fundamentos especiais previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 671.º do CPC.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em primeiro lugar, importa ter presente que estamos no âmbito de um incidente de habilitação singular de cessionário, previsto e regulado no artigo 356.º do CPC, deduzido por apenso a uma ação declarativa instaurado em 2007, em que as decisões impugnadas datam de 16/03/2016 (a da 1.ª instância) e de 15/12/2016 (o acórdão da Relação).

Assim, nos termos do artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 41/2013, de 26-06, ao presente recurso é aplicável o regime recursório decorrente do Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24-08, com as alterações introduzidas por aquela Lei, com exceção do n.º 3 do artigo 671.º do CPC, aplicando-se, neste particular, a lei em vigor à data da propositura da ação.

Ora, o acórdão recorrido reveste a natureza de decisão final proferida num incidente da instância, que consiste, como já foi referido, num incidente de habilitação singular de cessionário, previsto e regulado no artigo 356.º do CPC.

Como é sabido, os incidentes da instância traduzem-se em relações processuais secundárias, intercorrentes no processo principal, de caráter episódico ou eventual, os quais se destinam, em regra, a prover sobre questões acessórias, nomeadamente respeitantes ao preenchimento ou à modificação de alguns dos elementos da instância em que se inserem, como sucede nos casos de substituição de alguma das partes - art.º 262.º, alínea a), do CPC [...].

No caso dos autos, tal incidente foi deduzido pela ora Recorrente para intervir em substituição da sociedade AA, Lda., autora na sobredita ação declarativa, e assim prosseguir, na qualidade de requerente, com o incidente de liquidação da condenação genérica ali proferida.

Sucede que a 1.ª instância julgou aquele incidente de habilitação procedente, declarando a requerente habilitada, mas tal decisão foi revogada pela Relação por considerar a invocada cessão de crédito nula com fundamento em simulação, daí resultando, como consequência, a improcedência desse incidente, não se tendo admitido, por isso, a pretendida habilitação da aqui Recorrente.

Vem agora a presente revista interposta ao abrigo do artigo 671.º, n.º 1 e 3, do CPC, sem que seja invocado qualquer fundamento de recorribilidade irrestrita.

O referido artigo, no que aqui releva, prescreve o seguinte:

1 – Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos.

2 – Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) – Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) – Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.
 


Assim, diferentemente do previsto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do CPC, quanto ao cabimento do recurso de apelação autónoma de decisão da 1.ª instância que ponha termo a incidente processado autonomamente, os parâmetros de admissibilidade da revista definidos no art.º 671.º, n.º 1, do mesmo diploma circunscrevem-se aos acórdãos da Relação que, proferidos sobre decisão da 1.ª instância, conheçam do mérito da causa ou ponham termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto ao pedido ou reconvenção deduzidos. Não se contemplam, pois, neste normativo as decisões finais dos incidentes da instância que versem unicamente sobre a relação processual.

Com efeito, o acórdão recorrido não se traduz em decisão que conheça do mérito da causa nem que tenha posto termo ao processo mediante absolvição do réu da instância ou por forma a esta equiparada.

O que se decidiu no acórdão recorrido foi a revogação da decisão da 1.ª instância que julgara procedente o incidente de habilitação singular da cessionária, tal como fora deduzido, com a consequente não admissão da Requerente a intervir em substituição da originária autora da ação principal.

Trata-se, por conseguinte, de um acórdão da Relação que apreciou uma decisão interlocutória da 1.ª instância – de estrita natureza incidental –, versando unicamente sobre a relação processual, mais precisamente sobre a pretendida substituição da autora originária pela pretensa cessionária, o que é subsumível ao disposto no n.º 2 do 671.º acima transcrito.

Como, a este propósito, escreve Abrantes Geraldes [
In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, 4.ª Edição, p. 345]:

«Tratando-se de acórdãos da Relação que incidem sobre decisão da 1.ª instância de natureza interlocutória (…) que versam sobre matéria adjectiva (…), considera-se que, em regra, é bastante o duplo grau de jurisdição, tal como já ocorria no âmbito do sistema dualista relativamente ao recurso de agravo que também só era admitido, sem entraves, até à Relação.»

Em tais situações, a revista só é admissível nas hipóteses especialmente referidas nas alíneas a) e b) do n.º 2 do citado artigo 671.º.

Porém, a Recorrente não invocou qualquer desses fundamentos de recorribilidade, nos termos exigidos pelo artigo 637.º, n.º 2, do CPC.

Nestas circunstâncias, face ao preceituado no n.º 2 do indicado artigo 671.º, a contrario sensu, não resta senão concluir pela inadmissibilidade da revista, não se tomando, por isso, conhecimento do objeto do recurso."


3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, o STJ, ao qualificar uma decisão final proferida num incidente de habilitação como uma decisão interlocutória, não andou bem. 

Uma coisa é uma decisão interlocutória, outra uma decisão final de um incidente da instância. Uma decisão interlocutória é uma decisão não final proferida em qualquer procedimento (e, por isso, também em qualquer incidente da instância). Uma decisão final proferida num incidente da instância não é, por definição, uma decisão interlocutória.

É certo que as decisões finais proferidas nos incidentes da instância não são decisões que apreciam o mérito da causa na qual foi deduzido o incidente, mas são decisões que apreciam o mérito do incidente (são decisões que, por exemplo, consideram um terceiro habilitado ou não habilitado, que julgam procedentes ou improcedentes os embargos de terceiro ou que liquidam uma quantia ilíquida num certo montante ). Estas decisões são naturalmente distintas daquelas que -- como é o caso, por exemplo, de uma decisão que profere uma absolvição da instância num incidente da instância -- não se pronunciam sobre o fundo da questão a decidir nele.

b) Aliás, a transcrição completa do trecho de Abrantes Geraldes permite extrair uma conclusão bem diferente daquela que foi retirada pelo STJ. Na sua integralidade, o trecho é o seguinte:

"Tratando-se de acórdãos da Relação que incidem sobre decisão da 1.ª instância de natureza interlocutória (isto é, de decisões não finais) que versam sobre matéria adjectiva (previstas no art. 644.º, nºs 2 e 3), considera-se que, em regra, é bastante o duplo grau de jurisdição, tal como já ocorria no âmbito do sistema dualista relativamente ao recurso de agravo que também só era admitido, sem entraves, até à Relação" (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4.ª ed. (2017), 345).

Segundo o que é afirmado expressamente no trecho transcrito, o que nele se defende não pode ser aplicado a uma decisão final proferida num incidente de habilitação, porque:

-- O texto refere-se a decisões interlocutórias, não a decisões finais;

-- O texto respeita às decisões cuja apelação se encontra regulada no art. 644.º, n.º 2 e 3, CPC; ora, a apelação das decisões interpostas de incidentes processados autonomamente está regulada no art. 644.º, n.º 1, CPC.

c) De acordo com o afirmado no acórdão, o que nele foi decidido é aplicável às "decisões finais dos incidentes da instância que versem unicamente sobre a relação processual". Mas a justificação para excluir estas decisões finais do disposto no art. 671.º, n.º 1, CPC tem um alcance muito mais amplo.

Diz o STJ, para fundamentar, tendo em conta o estabelecido neste preceito, a exclusão da admissibilidade da revista da decisão final proferida no incidente de habilitação: "[...] o acórdão recorrido não se traduz em decisão que conheça do mérito da causa nem que tenha posto termo ao processo mediante absolvição do réu da instância ou por forma a esta equiparada."

Segundo este critério, também um acórdão da Relação proferido num incidente de liquidação ou nuns embargos de terceiro não é susceptível de ser impugnado perante o STJ: também ele, na interpretação realizada pelo STJ do estabelecido no art. 671.º, n.º 1, CPC, não é nem uma decisão sobre o mérito da causa, nem uma decisão de forma que tenha posto termo ao processo. Isto demonstra que não pode ser este o sentido a atribuir ao art. 671.º, n.º 1, CPC. 

Portanto, não pode ser com a justificação de que a decisão final proferida num incidente de habilitação não é uma decisão final de mérito ou de forma que pode ser considerada inadmissível a revista desta decisão. 

d) Em conclusão: pelo menos com os argumentos aduzidos pelo STJ no acórdão em análise, não se vislumbra nenhum obstáculo à admissibilidade da revista interposta de um acórdão da Relação que tenha proferido uma decisão final num incidente da instância (e, em particular, num incidente de habilitação de um cessionário).

MTS