Intervenção principal provocada;
convite do juiz; prazo
1. O sumário de RP 25/6/2019 (330/16.0T8PVZ-A.P1) é o seguinte:
Quando apenas na fase de julgamento o juiz se apercebe que deve ser provocada a intervenção de alguém que não foi demandado, deve ser reconhecida a possibilidade de mesmo nessa fase do processo poder convidar o autor a requerer essa intervenção.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Questão a solucionar: se é admissível a intervenção principal provocada, a que alude o nº 2 do artigo 316º do CPC, na fase de julgamento.
O pedido formulado pelo Autor emerge de deficiências verificados num veículo automóvel, as quais terão sido a causa dos danos sofridos, ou, pelo menos, do agravamento desses danos. Na p.i. o Autor alegou que o veículo foi comprado à Ré, facto que esta impugnou. Depois de ter sido iniciado o julgamento e na sequência de alguma prova produzida, foi proferido o despacho no qual, após se considerar discutível quem é o titular da relação material controvertida, foi entendido que se afigurava conveniente o recurso à intervenção principal provocada, ao abrigo do disposto nos artigos 316º, nº 2, 39º e 6º do CPC – diploma a que pertencerão as normas adiante referidas sem diferente menção de origem.
Como a Ré não aceita que tenha vendido o veículo ao Autor, alegando que os vendedores foram as pessoas que acabaram por ser chamadas, existe dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida – a relação de compra e venda – verificando-se por isso a situação prevista no artigo 39º.
Caso o veículo tenha sido vendido pelas pessoas indicadas pela Ré, a intervenção destas do lado passivo permitirá que seja proferida uma sentença de mérito.
Todavia, a alínea b) do nº 1 do artigo 318º estatui que o chamamento para intervenção previsto no nº 2 do artigo 316º só pode ser requerido até ao termo da fase dos articulados. E a intervenção admitida nos autos ocorreu na fase de julgamento.
Os despachos de 25-05-2018 e de 13-07-2018 – para os quais remete o despacho recorrido – invocam o disposto no artigo 6º, norma que consagra o dever de gestão processual. O segundo dos apontados despachos alude ao nº 2 daquele artigo, que dispõe: “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”
Para o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, o dever de condução do processo que recai sobre o juiz atribui a este “o poder de modificar a tramitação processual ou os actos processuais.” Acrescenta que para obter a simplificação e a agilização processual “o juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo (art. 547.º). Portanto, o juiz pode alterar a tramitação legal da causa – tanto prescindindo da realização de certos actos impostos pela lei, como impondo a prática de actos não previstos na lei – e pode ainda modificar o conteúdo e a forma dos actos.” Quanto aos limites da adequação, escreve que tem que estar assegurada a possibilidade de as partes alegarem as suas razões de facto e de direito e de realizarem a prova dos factos controvertidos, bem como a oportunidade de o tribunal se pronunciar tanto sobre a matéria de facto, como sobre a de direito e, quanto a esta última, quer numa perspectiva processual, quer numa óptica substantiva. “Respeitado este standard mínimo, toda a tramitação determinada pelo juiz está em condições de ser válida” (Apontamento sobre o princípio da gestão processual no novo Código de Processo Civil, Cadernos de Direito Privado, nº 43, pág. 11/12 e 14).
Aludem os apelantes à violação de alguns princípios estruturantes do processo civil, como o princípio do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz (conclusão 14ª).
O princípio do dispositivo não reduz o juiz, no processo civil contemporâneo, ao papel de árbitro. Escreve o Prof. Lebre de Freitas que esta conceção está hoje ultrapassada por uma outra que passa pela atribuição de mais poderes ao julgador e pela exigência da cooperação entre o tribunal e as partes, como meios preferenciais para alcançar a verdade e, com base nela, realizar o direito (Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª ed., 2017, pág. 158).
Ao Réu foi concedida a possibilidade de se pronunciar sobre a intervenção provocada. Os chamados contestaram indicando prova e interpuseram o presente recurso, tendo por isso sido respeitado o contraditório.
As partes foram tratadas em pé de igualdade, a todas tendo sido concedidas as mesmas possibilidades de intervirem no processo, de se pronunciarem sobre os factos e a tramitação processual, de oferecerem prova, de estarem presentes nas diligências marcadas.
A prolação de despachos a convidar o Autor a requerer a intervenção principal provocada de pretensos vendedores da viatura causadora dos danos cuja reparação é peticionada, não traduz violação do dever de imparcialidade do juiz; antes decorre da interpretação que o julgador fez do dever de gestão processual, no seguimento de alguma prova produzida e no sentido de permitir que seja proferida uma decisão de mérito – decisão que tanto pode ser a procedência como a improcedência da acção.
Como escreveu o Conselheiro Lopes do Rego, “o exercício destes poderes de direcção, agilização e adequação da tramitação do processo pelo juiz deve ser orientado para propiciar a obtenção de decisões que privilegiem o mérito ou substância sobre a forma, evitando que deficiências ou irregularidades puramente adjectivas impeças a composição do litígio ou acabem por distorcer o conteúdo da sentença de mérito, condicionado pelo funcionamento de desproporcionadas cominações ou preclusões processuais” (Os Princípios Orientadores da Reforma do Processo Civil em Curso: o Modelo de Acção Declarativa, in Julgar, nº 16, pág. 103).
No caso, o juiz não se substituiu à parte; convidou a parte – o Autor – a requerer a intervenção provocada, conforme o permitido pelo nº 2 do artigo 6º. O Autor não se encontrava obrigado a requerer a intervenção principal provocada.
Quando apenas na fase de julgamento o juiz se apercebe que deve ser provocada a intervenção de alguém que não foi demandado, deve ser reconhecida a possibilidade de mesmo nessa fase processual poder convidar o Autor a requerer essa intervenção. A não se entender assim, nos incidentes de intervenção de terceiros os deveres de gestão processual apenas operam até às fases processuais previstas no artigo 318º. Essa interpretação não cumpre o objectivo da lei que é permitir que o juiz use os poderes necessários para que seja proferida uma decisão de mérito.
Constatando-se uma situação de indefinição relativamente a quem vendeu ao Autor o veículo causador dos danos, que pode ser ultrapassada com a intervenção principal provocada, deve ser admitida essa intervenção, requerida na sequência de convite formulado pelo juiz sob invocação dos deveres de gestão processual.
Alegam os apelantes que atenta a fase processual dos autos “ficam em posição processual desvantajosa” (conclusão 17ª). A fase processual em que os autos se encontram não pode obstar a que exerçam os mesmos direitos que teriam exercido se a intervenção tivesse sido requerida e admitida numa fase anterior à do julgamento, pelo que não se encontram em posição processual desvantajosa.
Sustentam ainda os apelantes que estando o julgamento em curso, teria que se proceder à anulação de todo o processado posterior ao último articulado, “o que não sucedeu no presente caso” (conclusão 17ª). Na presente apelação apenas temos que apreciar se é admissível a intervenção principal provocada admitida no despacho recorrido. Considerando a resposta afirmativa, está fora do âmbito do recurso a apreciação da tramitação processual subsequente a qual terá que ser adaptada pelo juiz do processo, tendo em conta os direitos dos chamados e as garantias de um processo equitativo.
*3. [Comentário] Saúda-se vivamente o acórdão da RP. Estranho seria que, por alegados motivos processuais (que a RP bem demonstra não existirem), viesse a ser proferida uma decisão inutiliter data pela falta da parte que, afinal, devia estar em juízo.
MTS