"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/06/2019

Jurisprudência europeia (TJ) (198)

 
Cooperação judiciária em matéria civil – Reg. 805/2004 – Título executivo europeu para créditos não contestados – Certificação de uma decisão judicial como título executivo europeu – Normas mínimas aplicáveis aos processos relativos aos créditos não contestados – Demandado sem endereço conhecido que não compareceu na audiência

TJ 27/6/2019 (C‑518/18, RD/SC) decidiu o seguinte:

O Regulamento (CE) n.° 805/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de abril de 2004, que cria o título executivo europeu para créditos não contestados, deve ser interpretado no sentido de que, caso um órgão jurisdicional não possa obter o endereço da demandada, não permite certificar como título executivo europeu uma decisão judicial relativa a um crédito, proferida na sequência de uma audiência a que não compareceram nem a demandada nem o curador ad litem nomeado para os fins do processo. 
 
 

Jurisprudência europeia (TJ) (197)


Cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores — Diret. 93/13/CEE — Processo de execução coerciva de um crédito hipotecário — Ato notarial directamente executório — Fiscalização judicial das cláusulas abusivas — Suspensão da execução coerciva — Incompetência do juiz que conhece do pedido de execução coerciva — Protecção do consumidor — Princípio da efectividade — Interpretação conforme

 
TJ 26/6/2019 (C‑407/18, Kuhar et al./Addiko Bank) decidiu o seguinte:

A Diretiva 93/13/CEE do Conselho, de 5 de abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, deve, à luz do princípio da efetividade, ser interpretada no sentido de que se opõe a uma regulamentação nacional, como a que está em causa no processo principal, por força da qual o órgão jurisdicional nacional que conhece de um pedido de execução coerciva de um contrato de crédito hipotecário, celebrado entre um profissional e um consumidor sob a forma de um ato notarial diretamente executório, não dispõe, quer a pedido do consumidor quer oficiosamente, da possibilidade de examinar se as cláusulas contidas em tal ato não revestem caráter abusivo, na aceção dessa diretiva, e, com esse fundamento, de suspender a execução coerciva solicitada. 



Informação (255)


Entrevista a Nieva Fenoll


Uma entrevista a Jordi Nieva Fenoll sobre a Descripción de la prueba pode ser ouvida aqui.

 

28/06/2019

Jurisprudência 2019 (46)


Autoridade de caso julgado;
factos supervenientes*


1. O sumário de STJ 26/272019 (4043/10.8TBVLG.P1.S1) é o seguinte:

I - A excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado são duas vertentes, a primeira negativae a segunda positiva, do caso julgado.

II - A excepção implica a identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir – art. 581.º, n.ºs. 1 e 4, do CPC – e tem o efeito negativo de impedir o conhecimento do mérito de uma segunda acção, impondo a absolvição da instância.

III - A autoridade não implica a identidade objectiva e tem o efeito positivo de impor a primeira decisão com pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.

IV - A sentença, transitada em julgado, proferida em acção anterior, que reconheceu à seguradora laboral o direito de se sub-rogar no direito de indemnização da lesada contra o terceiro responsável pelo acidente, quanto a prestações pagas até à sua prolação, tem autoridade de caso julgado na acção posterior onde a seguradora laboral pede o reembolso das prestações pagas, de idêntica natureza, desde então.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Estamos perante um acidente sofrido pela lesada CC, que foi considerado, simultaneamente, como acidente de trabalho e acidente de viação.

Em consequência de tal acidente e das graves lesões nele sofridas pela lesada, a autora, seguradora laboral, foi condenada no processo especial de acidente de trabalho a pagar-lhe uma pensão anual e outras prestações suplementares (acompanhamento de terceira pessoa, subsídio por elevada incapacidade e de reabilitação).

A autora veio propor depois acção contra o réu BB (a referida acção nº 243/08), com fundamento no art. 31º, nº 4, da LAT (então em vigor), a pedir a condenação deste a pagar-lhe determinadas importâncias, já satisfeitas à lesada, e, bem assim, as pensões e prestações suplementares posteriores à propositura da acção.

Na sentença que veio a ser proferida nessa acção foi reconhecido o invocado direito de sub-rogação da autora quanto às indemnizações pagas à lesada derivadas das lesões corporais [...] sofridas no acidente, mas apenas "pelas efectivamente já desembolsadas e não, nesta acção, pelas que futuramente venham a ser desembolsadas (art. 593º do CC e Assento do STJ nº 2/78, de 09.04.77)".

Ora, o objecto da presente acção tem a ver, precisamente, com estas prestações: a autora pretende ser reembolsada pelo réu das prestações que, depois da sentença proferida na acção anterior, pagou à aludida sinistrada, com fundamento no direito de sub-rogação que ali lhe foi reconhecido.

Diz-se no Acórdão recorrido que nas duas acções não se discutem direitos exercidos sobre objectos idênticos, já que as prestações exigidas na primeira acção são diversas, pelo período a que se reportam e respectivo montante, das exigidas na presente acção.

Neste sentido, acrescenta-se, "a decisão de condenação no pagamento das primeiras prestações, no pressuposto de uma sub-rogação legal validamente invocada, não é pressuposto da segunda decisão, não tornando esta última dependente da primeira".

Com o devido respeito, parece-nos que não se decidiu bem, num juízo em que terá pesado, porventura, o entendimento acima referido sobre a falta de legitimidade substantiva para a demanda do BB, mas a que agora não pode aqui atribuir-se relevo, tendo em conta a força e autoridade do caso julgado que deve ser reconhecido à anterior decisão: como se disse, essa autoridade apenas exige a identidade subjectiva das partes das duas acções, podendo as respectivas causas de pedir e/ou pedidos ser diversos.

Repare-se que as prestações satisfeitas e a satisfazer pela autora foram as fixadas previamente na decisão proferida no processo laboral.

Na acção anterior (nº 243/08) foi reconhecido à autora o direito de se sub-rogar no direito de indemnização da lesada contra o terceiro responsável pelo acidente de viação, para obter deste o reembolso das prestações referidas, já efectivamente pagas até aí.

A presente acção tem, assim, por pressuposto aquilo que anteriormente foi definido; apesar de as prestações pedidas serem diversas, elas têm uma base comum de onde emergem, sendo a causa de pedir, nas duas acções, em grande parte, a mesma: o acidente, as lesões sofridas pela lesada, a obrigação de indemnização a que a autora estava vinculada, concretizada no dever de pagamento daquelas prestações fixadas no Tribunal do Trabalho e o direito de reembolso a cargo do réu dessas prestações efectivamente pagas pela autora.

No que concerne a tal base comum, abrangendo elementos que constituem pressuposto lógico e necessário da decisão, impõe-se a autoridade do caso julgado, não cabendo discutir aqui, portanto, o que, a esse título, já foi decidido com trânsito e que aqui deve ser acatado: o montante das prestações, porquanto foi anteriormente fixado; nem o referido direito de reembolso, assente na responsabilidade do réu, também já antes reconhecida.

O que poderia estar em causa nesta acção seria, pois, tão só, a prova do pagamento pela autora das prestações posteriores à anterior sentença, aqui peticionadas; no fundo, apenas a "liquidação" do que, a esse título, foi pago pela autora à lesada em data posterior à anterior decisão.

Enfim, tudo como se decidiu na, também bem fundamentada, sentença da 1ª instância."

*3. [Comentário] O STJ decidiu bem. O objecto da presente acção são os montantes pagos pela seguradora à lesada no acidente depois da primeira acção. Neste pressuposto, não pode deixar de se entender que está assente entre as partes o facto -- isto é, o acidente -- que constitui a fonte desta novas prestações.

MTS


27/06/2019

Legislação europeia (Processo Civil Europeu) (25)


Regulamento Bruxelas II ter


O Conselho da EU aprovou um conjunto de "regras mais eficazes para resolver questões transfronteiriças em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental", ou melhor, a reformulação do Reg. 2201/2003 (Reg. Bruxelas II bis). A versão espanhola (a portuguesa ainda não está disponível) da reformulação do Reg. 2201/2003 pode ser consultada aqui


Jurisprudência 2019 (45)


Providência cautelar;
caducidade; responsabilidade do requerente*

1. O sumário de STJ 26/2/2019 (618/12.9TVPRT.P1.S2) é o seguinte:

I A responsabilização do Requerente de uma providência cautelar dos danos que vier a causar ao Requerido da mesma por a ter deixado caducar, dependerá da alegação e prova por este, em acção subsequente a intentar contra aqueloutro, dos pressupostos integrantes da responsabilidade civil, aludidos no artigo 483º, nº1 do CCivil, para onde nos remete a letra e o espírito do artigo 374º, nº1 do CPCivil.

II O princípio geral que rege a matéria da responsabilidade civil é o consignado no artigo 483° do Código Civil segundo o qual «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação», incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, de acordo com o disposto no artigo 487º, nº1, do mesmo diploma legal.

III Constituem pressupostos do dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos: a existência de um facto voluntário do agente e não de um facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquela.

IV Igualmente resulta, neste
conspectu, do apuramento das responsabilidades que «É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.».

V Inexistindo aqui qualquer presunção legal de culpa adveniente da mera constatação fáctica de que o Recorrido deixe caducar a providência, incumbe aos Autores a alegação e prova da factualidade consubstanciadora do direito ao ressarcimento pelos danos produzidos que invocaram e aqui reiteram em sede de recurso, sendo aqui que está o nó górdio da problemática indemnizatória.

VI A mera alegação da omissão por banda do Requerente da providência em instaurar a acção principal da qual dependia a operância do processo cautelar, a se, não conduz a uma imputação automática da culpa àquele requerente da medida provisória, acrescendo ainda que da sua efectivação podem, ou não, resultar danos indemnizáveis, entendendo-se estes como os prejuízos (contabilizáveis) que efectivamente sejam causados.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] aduzem as Recorrentes que o Aresto em crise fez uma aplicação errada das normas substantivas e processuais à factualidade dada como provada, manifestando-se tal erro, a final, numa posição manifestamente insustentável do ponto de vista científico-lógico, pois, in casu, não obstante o Tribunal a quo ter dado como provado que a recorrida deixou caducar a providência cautelar e que a sua execução “provocou alarido nas instalações da empresa do A e foi do conhecimento imediato da vizinhança e de, pelo menos, 2 clientes que se encontravam presentes e que causou humilhação ao A” entendeu não atribuir qualquer indemnização aos Recorrentes, não obstante estarem reunidos os pressupostos para o efeito, nem, in extremis, caso se deparasse com falta de elementos nos autos que permitissem apurar concretamente os danos sofridos, relegar a liquidação da indemnização para competente incidente de liquidação de sentença, embora não devesse descurar o recurso à equidade, como pode fazer o Tribunal ad quem. Acrescentam ainda que a interpretação efectuada do artigo 483º do CCivil é inconstitucional, por violar justa e conjugadamente o próprio, o artigo 72.º do mesmo diploma legal e o artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa, já que a todo o dano deverá corresponder uma justa indemnização, por não ser consentâneo com o princípio do Estado de Direito, o qual foi, assim, também violado pela decisão.

A este propósito considerou-se na decisão impugnada:

«Se há fundamento para condenar a Ré a indemnizar os AA por danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela execução da providência cautelar, ainda que apenas no que se vier a liquidar, como pediam na petição.

O art. 374° n.°1 do CPC, que corresponde com idêntica redação ao anterior 390° n.°l do mesmo diploma, estipula: «Se a providência for considerada injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal.».

Estamos perante uma norma que cria uma fonte de responsabilização do requerente por danos que a sua conduta determine na esfera da parte contrária, mas que apenas serve de fundamento a que, noutra ação, o lesado alegue e prove os factos de que depende a concessão desse direito.

Para que ocorra responsabilidade com base neste normativo, torna-se necessário provar os factos geradores da responsabilidade civil:

Injustificação ou caducidade da providência;

Imputação ao requerente;

Actuação do requerente fora das regras de prudência normal;

Danos determinados pela providência requerida;

Nexo de causalidade entre a conduta da requerente e tais danos (cf. neste sentido Abrantes Geraldes, Temas de Reforma do Processo Civil, 1998, vol. III, pág.268)

Quanto a esta pretensão dos AA está provado sob o n.° 28, que a Ré deduziu um procedimento cautelar que correu termos nas Varas Cíveis …., para entrega de documentos que deixou caducar.

Por outro lado, atenta a decisão do recurso da matéria de facto, apenas se julgou provado, que a realização da diligência decretada no procedimento cautelar, provocou alarido nas instalações da empresa do A e foi do conhecimento imediato da vizinhança e de, pelo menos, dois clientes que se encontravam presentes nas instalações e que causou humilhação ao A.

Pode ainda ser considerado o que consta do requerimento inicial desse procedimento cautelar cuja cópia está junta a fls. 723 a 741 dos autos, a cópia da oposição que a Requerida (aqui A) apresentou ao procedimento cautelar a fls. 482 a 498 a ainda a fls. 837 consta a cópia do despacho datado de 16.11.2011, que declarou a caducidade do referido procedimento cautelar, por não ter a Requerente (ora Ré) proposto a respectiva ação principal.

Assim sendo, esta factualidade apenas permite considerar verificados os dois primeiros pressupostos, ou seja, caducidade do procedimento, imputável à requerente, ora Ré.

Não é sequer suficiente para o terceiro pressuposto, ou seja que a Ré, requerente do procedimento cautelar atuou com dolo ou culpa, o que implicava que se provasse que a factualidade determinante do decretamento da providência não correspondia à verdade.

De qualquer forma, a questão é irrelevante, pois a factualidade provada não permite de qualquer forma considerar que a A C, sofreu danos passíveis de ser indemnizados, com fundamento no citado art. 374° n.°l do CPC.

Ao contrário do que sustentam os Apelantes, os eventuais danos causados pela execução do procedimento cautelar de apreensão de documentos, nunca podem ser integrar o conceito de factos notórios, legalmente definidos, nos termos do art. 412 n.° 1 do CPC, como aqueles que são do conhecimento geral.

O conhecimento geral a que se refere este preceito que corresponde ao anterior 514° do CPC, é o conhecimento por parte da grande maioria dos cidadãos do país, que possam considerar-se regularmente informados, isto é, com acesso aos normais meios de informação (cf. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. III, pág.76).

Ora, o conhecimento da diligência de apreensão dos documentos propriamente dita, não é em si um facto notório, por estar limitado e localizado, às pessoas da vizinhança, não constando dos autos que tenha sido noticiado a nível nacional ou sequer local.

Por maioria de razão, as consequências dessa apreensão, decretada provisoriamente num processo de natureza cível, tem de ser concretizada e provada, não constituindo sequer presunção natural, que vai provocar perda de clientela ou criar dificuldade no acesso ao crédito bancário.

De referir ainda que no procedimento cautelar a Requerida foi apenas a ora A. C Lda, que tem personalidade judiciária distinta, do seu sócio-gerente e, por isso, quem tinha legitimidade processual e substantiva, para peticionar a indemnização pela caducidade da providencia era apenas a sociedade e não o A.

De resto, a humilhação sofrida pelo A com a diligência de apreensão, consubstancia incómodo que não atinge gravidade suficiente para merecer a tutela do direito, como exige o art. 495° n.° 1 do CC.

Improcede, pois, a pretensão dos Apelantes quanto a terem direito a uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela execução da providência cautelar.».


Dispõe o artigo 374º, nº1 do CPCivil que «Se a providência (…) vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal.», contendo este normativo um afloramento da responsabilidade extra contratual.

Sem embargo de constituir um direito fundamental de qualquer cidadão, o recurso aos Tribunais a fim de defenderem os seus direitos, o que se mostra consignado constitucionalmente, no artigo 20º, nº1 da CRPortuguesa, se a via jurisdicional encetada se vier a mostrar que foi usada em manifesto abuso do direito, poderá fazer incorrer o impetrante na correspondente responsabilidade pelos prejuízos que infundadamente vier a causar à outra parte, maxime, por via de um procedimento cautelar que se venha a deixar caducar pela não instauração atempada da respectiva acção principal, cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, 253/255; Rita Lynce de Faria, A Função Instrumental da Tutela Cautelar Não Específicada, 240/256.

Alegaram os Autores, aqui Recorrentes, que a Ré/Recorrida instaurou uma providência cautelar para entrega de documentos, a qual veio a ser deferida e realizada, tendo-lhe causado danos materiais e morais que computou em € 25.000.

A materialidade factual a ter em conta para a resolução desta questão é a que resulta dos pontos 28. E 28.A., que aqui se convocam:

«28. A Ré deduziu um procedimento cautelar que correu termos nas Varas Cíveis …, tendo-lhe correspondido o processo n° 556/11.2TVPRT, da 1ª Vara, 1a Secção, para entrega de documentos que deixou caducar.

28.A. A realização da diligência decretada no procedimento cautelar, provocou alarido nas instalações da empresa do A e foi do conhecimento imediato da vizinhança e de, pelo menos, dois clientes que se encontravam presentes nas instalações da A e causou humilhação ao A. (facto aditado pelo tribunal da relação)».

A responsabilização do Requerente de uma providência cautelar dos danos que vier a causar ao Requerido da mesma por a ter deixado caducar, dependerá da alegação e prova por este, em acção subsequente a intentar contra aqueloutro, dos pressupostos integrantes da responsabilidade civil, aludidos no artigo 483º, nº1 do CCivil, para onde nos remete a letra e o espírito do artigo 374º, nº1 do CPCivil.

O princípio geral que rege a matéria da responsabilidade civil é o consignado no artigo 483° do Código Civil segundo o qual «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação», incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, de acordo com o disposto no artigo 487º, nº1, do mesmo diploma legal.

Constituem pressupostos do dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos: a existência de um facto voluntário do agente e não de um facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquela, cfr Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I Vol., 1986, 477/478.

Igualmente resulta, neste conspectu, do apuramento das responsabilidades que «É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.».

Inexistindo aqui qualquer presunção legal de culpa adveniente da mera constatação fáctica de que o Recorrido deixou caducar a providência, incumbia aos Autores a alegação e prova da factualidade consubstanciadora do direito ao ressarcimento pelos danos produzidos que invocaram e aqui reiteram em sede de recurso, sendo aqui que está o nó górdio da problemática recursiva, pois a omissão por banda daquele em instaurar a acção principal da qual dependia a operância do processo cautelar, a se, não conduz a uma imputação automática da culpa ao requerente da medida provisória, sempre se acrescentando que da efectivação da mesma podem, ou não, resultar danos indemnizáveis, entendendo-se estes como os prejuízos (contabilizáveis) que efectivamente sejam causados.

A este propósito apurado ficou que a realização da diligência ordenada em sede cautelar provocou alarido nas instalações da empresa do Autor e foi do conhecimento imediato da vizinhança e de, pelo menos, dois clientes que se encontravam presentes nas instalações da Autora e causou humilhação ao Autor, situação esta que só por si apenas traduz uma consequência normal da situação havida, pois é natural que uma intervenção judicial, seja de que natureza for, provoque burburinho e cause embaraço.

Questão outra, é a de saber se a caducidade da providência foi devida a facto imputável ao Requerente da mesma, aqui Recorrido, o que manifestamente se não apurou, bem como se o alvoroço criado e a humilhação sofrida foram gratuitas, causando os alegados danos.

Se é verdade que o lesante está obrigado a indemnizar os danos decorrentes da lesão provocada, também é verdade que o lesado tem de alegar e provar a materialidade fáctica conducente ao direito que alega, nos termos do artigo 342º, nº1 do CCivil, o que no caso não aconteceu, inexistindo assim qualquer violação de qualquer direito pessoal dos Recorrentes constitucionalmente protegido, cfr inter alia os Ac STJ de 24 de Fevereiro de 2005 (Relator Abilio Vasconcelos), 17 de Junho de 2010 (Relator Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt.

Assim sendo, este non liquet da responsabilidade dos Recorrentes porque sobre eles recaía o ónus da prova dos factos consubstanciadores do direito alegado, faz soçobrar a pretensão pelos mesmos formulada."

*3. [Comentário] Não parece que se possa afirmar que se verifique um non liquet sobre se a caducidade da providência cautelar é imputável à requerente. Estando assente que esta requerente "deixou caducar" a providência cautelar por não ter proposto a acção principal, está necessariamente assente através de uma prova prima facie que a caducidade da providência lhe é imputável.

Para que assim não fosse, teria sido necessário que a requerente tivesse provado algum facto que tivesse demonstrado a impossibilidade de propor a acção principal no prazo legal. Não o tendo feito, há que concluir que, não se tendo apurado nada que tenha obstado à propositura da acção principal, a omissão desta propositura é necessariamente imputável à requerente.

Aliás, cabe perguntar que prova, além daquela que resulta da própria omissão da instauração da acção principal, seria exigível ao requerido para demonstrar que essa omissão era imputável ao requerente. É fácil concluir que exigir que o requerido demonstrasse que nada impedia a propositura dessa acção pelo requerente seria exigir-lhe uma verdadeira probatio diabolica.

MTS


26/06/2019

Jurisprudência 2019 (44)


Matéria de facto;
apreciação; decisão


1. O sumário de STJ 26/2/2019 (1316/14.4TBVNG-A.P1.S2) é o seguinte:

I. A fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.

II. A exigência de fundamentação das respostas negativas aos quesitos constituiu inovação na revisão do Código de Processo Civil de 1995/96: não era requisito no Código de Processo Civil de 1939 e só passou a sê-lo, quanto aos factos provados no Código de Processo Civil de 1961, mantendo-se até ao DL. 329-A/95, de 12.12, o dever, quanto aos factos julgados provados, de especificar os fundamentos decisivos para a formação da convicção do Tribunal.

III. A formulação constante da sentença recorrida, que o Acórdão recorrido “validou”, reportada ao dever de fundamentação constante do art. 704º, nº4, do Código de Processo Civil: “Foram considerados como factos não provados: todos os demais alegados que contrariam ou excedem os acima expostos [os 28 indicados como provados], nomeadamente os alegados em 6° a 11°, 58° a 77° da petição de embargos”, é complexa, obscura, não permitindo a imediata e exigível compreensão e apreensão dos factos que a sentença considerou não provados, pois implica uma indagação analítica e especiosa sobre quais são os factos não provados, com referência à formulação “todos os demais alegados que contrariem ou acima expostos, nomeadamente os alegados nos arts. 6º a 11º, 58º a 77º da petição dos embargos”.

IV. Tal indicação implica que os destinatários imediatos da sentença indaguem, através da apreciação da petição dos embargos, que, no caso, comporta 102 artigos, que factos (o conceito, consabidamente, não é unívoco), quais os factos que “contrariam ou excedam os expostos”.

V. A necessidade imposta pela decisão, no que respeita ao apuramento cristalino do completo elenco dos factos não provados, para lá de ser totalmente omissa a fundamentação quanto a eles, consubstancia nulidade, nos termos dos arts. 607º, nº4, e 615º, nº1, als. c) e d) do Código de Processo Civil.

VI. Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável, pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.

VII. Uma deficiente ou obscura alusão aos factos provados ou não provados pode comprometer o direito ao recurso da matéria de facto e, nessa perspectiva, contender com o acesso à Justiça e à tutela efectiva, consagrada como direito fundamental no art. 20º da Constituição da República.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Está em causa a aplicação/interpretação do art. 607º, do Código de Processo Civil, que versa sobre a elaboração da sentença. Não existe, no vigente Código, peça autónoma onde o Juiz, antes da sentença, declara quais os factos provados e não provados após o julgamento, com as respostas aos quesitos, despacho que continha a fundamentação, podendo até ser reclamado.

As Reformas do Código de Processo Civil, visando a simplificação e a celeridade, acabaram com velhas peças processuais, ou fórmulas como a “especificação e o questionário” impuseram, inovadoramente, que na sentença se identifiquem as partes e o objecto do litígio, enunciando-se, de seguida, as questões que cumpre solucionar. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. (nºs 3 e 4).

O nº4 do art.607º do Código de Processo Civil, que está em causa, impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare:

“Quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”

O dever de fundamentação das decisões, na sua vertente endoprocessual e extra-processual, decorre do art. 208º, nº1, da Constituição da República, sendo da maior relevância não só para que possa ser exercido controlo no julgamento da matéria de facto, como na decisão de direito.

A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.

A exigência de fundamentação das respostas negativas aos quesitos constituiu inovação na revisão do Código de Processo Civil de 1995/96: não era requisito no Código de Processo Civil de 1939 e só passou a sê-lo, quanto aos factos provados no Código de Processo Civil de 1961, mantendo-se até ao DL. 329-A/95, de 12.12, o dever, quanto aos factos julgados provados, de especificar os fundamentos decisivos para a formação da sua convicção. [...]

Na audiência prévia foi elaborado o despacho saneador e, a fls. 130, foi indicado como “Objecto do litígio: “o montante da quantia exequenda; a natureza e extensão da responsabilidade dos embargantes; e a validade das cláusulas contratuais”. E como temas de prova – “1. A disponibilização à mutuária dos valores invocados no requerimento executivo para além das quantias indicadas como disponibilizadas nos títulos executivos; 2. A comunicação e explicação das cláusulas contratuais aos embargantes”.

A amplitude e complexidade dos temas de prova e do objecto do litígio, sempre tornaria complexa a tarefa do julgador de indicar com precisão que factos foram submetidos a julgamento e quais as razões (fundamentação) pelas quais se consideraram não provados os quantos que a convicção probatória adquiriu.

Dir-se-ia que a tarefa estaria mais facilitada na velha lógica “cada facto um quesito”, nos remotos tempos da tão criticada e longamente vigente peça “questionário”, depois “base instrutória” que, em articulação com a “especificação” espelhava, em regra, todos e cada um dos factos sujeitos a julgamento, uma valia não despicienda.

No “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, de Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, pág. 717, em comentário ao art.607º lê-se, além do mais:

“A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.”

A formulação constante da sentença recorrida reportada ao dever de fundamentação constante do art. 704º, nº4, do Código de Processo Civil: “Foram considerados como factos não provados: todos os demais alegados que contrariam ou excedem os acima expostos [os 28 indicados como provados], nomeadamente os alegados em 6° a 11°, 58° a 77° da petição de embargos” é complexa, obscura, não permitindo a imediata exigível compreensão e apreensão dos factos que a sentença considerou não provados, pois implica uma indagação analítica e especiosa sobre quais são os factos não provados, com referência à formulação complexa “todos os demais alegados que contrariem ou acima expostos, nomeadamente os alegados nos arts. 6º a 11º, 58º a 77º da petição dos embargos”.

Tal indicação implica que os destinatários da sentença indaguem através de apreciação da petição dos embargos, que comporta 102 artigos, que factos (o conceito, consabidamente, não é unívoco) “contrariam ou excedam os expostos, sendo que importaria ao intérprete saber quais os que contrariavam ou excediam “os acima expostos”.

A necessidade imposta pela decisão, no que respeita ao apuramento cristalino do completo elenco dos factos não provados, para lá de ser totalmente omissa a fundamentação quanto a eles, consubstancia nulidade nos termos dos arts. 607º, nº4, e 615º, nº1, als. c) e d) do Código de Processo Civil.

Na ponderação da natureza instrumental do processo civil e dos princípios da cooperação e adequação formal, as decisões que, no contexto adjectivo, relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.

Com o devido respeito, não pode este Tribunal reconhecer ao Acórdão recorrido tais requisitos de clareza e precisão na indicação da matéria de facto não provada, para lá da omissão de fundamentação dessa decisão, pelo que enferma de nulidade, nos termos do art. 615º, nº1, b) e c), 684º, nº2, do Código de Processo Civil e, como tal, não pode manter-se sendo anulado."

[MTS]


25/06/2019

Jurisprudência 2019 (43)


Prova documental;
junção de documentos; prazo*

1. O sumário de RP 7/1/2019 (3741/17.0T8MTS-A.P1) é o seguinte:

I - Com a inovação do n.º 2 do artigo 423.º, n.º 2 do CPC, decorrente da última reforma do processo civil, que impõe como limite para a junção de documentos o prazo de «20 dias antes da data em que se realize a audiência final», o legislador visou evitar surpresas no julgamento, decorrentes da junção inesperada de um qualquer documento, com consequências negativas traduzidas, nomeadamente, no arrastamento e no adiamento das audiências, obrigando as partes a uma maior lisura e cooperação processual na definição das suas estratégias probatórias.

II - A teleologia do preceito referido no ponto anterior foi respeitada pela recorrida na tramitação dos autos, considerando que: i) a junção dos documentos foi anunciada (e justificada) para momento posterior, logo na petição; ii) a junção foi parcialmente feita no limite do prazo de 20 dias com referência à 1.ª sessão de julgamento, tendo sido nessa data anunciada (e justificada) a junção no dia seguinte da parte restante dos documentos, o que veio a ocorrer.

III - Na interpretação da lei processual, o julgador deve ter sempre em conta a unidade e a coerência do sistema jurídico (artigo 9.º/1 do CC), sopesando os princípios em presença, não esquecendo o princípio da verdade material, estruturante de todo o processo civil, revelando-se juridicamente insustentável, no contexto processual referido, a simples rejeição de toda a prova documental da recorrida, sobre a qual recai o respetivo ónus.

2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:

"[...] a junção dos documentos em causa foi anunciada logo na petição, tendo sido justificada a apresentação posterior; no dia 6.09.2018 (20 dias antes do início da 1.ª sessão da audiência de julgamento) foram juntos documentos e foi justificado o adiamento da junção dos restantes para o dia seguinte (impossibilidade de digitalização nesse dia); e no dia 7.09.2019 (19 dias antes do início da 1ª sessão da audiência de julgamento) foram juntos os restantes documentos.

Pretende o recorrente que, neste contexto e neste histórico processual se rejeite a junção dos documentos, esvaziando-se a prova da autora (sobre quem recai o respetivo ónus), por um dia de atraso – apesar de todas a justificações que foram, apresentadas, nomeadamente no dia anterior.

Salvo todo o respeito devido, entendemos que mal andaria o Tribunal se, fazendo tabua rasa do princípio da procura da verdade material com vista à justa composição do litígio, norteado pela ideia de efetiva Justiça [...], no contexto processual referido decidisse rejeitar a prova documental oferecida pela autora.

Acresce que nem sequer é pacífico na jurisprudência o entendimento de que o prazo de vinte dias referido no n.º 2 do artigo 423.º do Código de Processo Civil se conte com referência à primeira sessão de julgamento, defendendo alguma doutrina (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 241 e pág. 675) e parte da jurisprudência (RG, 17.12.2015, proc. 3070/09.2TJVNF-B.G1, RC, 8.09.2015, proc. 2035/09.9TBPMS-A.C1, e RC, 14.12.2016, proc. 3669/14.5T8VIS.C1), que o prazo se conta com referência, não à abertura da audiência, mas à sua concretização, aplicando o preceito mesmo que haja adiamento ou continuação noutra sessão [Entendemos, no entanto, que o que releva para a determinação do termo final do n.º 2 do art.º 423.º do CPC é o início da audiência final, pois que a teleologia do preceito – evitar surpresas no decurso do julgamento com a junção inesperada de um qualquer documento e permitir uma atempada definição da estratégia probatória das partes – se coaduna mais com tal interpretação].

O que temos por certo, é que a que a teleologia do preceito em causa (artigo 423.º, n.º 2 do CPC) – evitar surpresas no decurso do julgamento com a junção inesperada de um qualquer documento e permitir uma atempada definição da estratégia probatória das partes – foi respeitada pela recorrida na tramitação dos autos, considerando que: i) a junção foi anunciada (e justificada) para momento posterior, logo na petição; ii) a junção foi parcialmente feita no limite do prazo de 20 dias com referência à 1.ª sessão de julgamento, tendo sido nessa data anunciada (e justificada) a junção no dia seguinte da parte restante dos documentos, o que veio a ocorrer.

Salvo todo o respeito devido, a drástica penalização pretendida pelo recorrido, no contexto processual referido, traduzir-se-ia numa recusa injustificada de procura da verdade material, violadora dum princípio essencial, estruturante do processo civil.

Em conclusão, a decisão recorrida não nos merece qualquer reparo ou censura, devendo, em consequência, naufragar o recurso."

*3. [Comentário] Os tribunais -- quer o tribunal de 1.ª instância, quer a RP -- decidiram com manifesto bom-senso e, por isso, manifestamente bem.

Também se adere à orientação segundo o qual, para efeitos de aplicação do disposto no art. 423.º, n.º 2, CPC, o que conta é o início da audiência final, embora se deva ter em consideração o início efectivo dessa audiência.

MTS


24/06/2019

Jurisprudência 2019 (42)


Livrança; relação cartular; relação subjacente;
ónus da prova; non liquet*
 

1. O sumário de RP 10/1/2019 (21800/16.4T8PRT-A.P1) é o seguinte: 

I – O avalista de uma livrança em branco que interveio no pacto de preenchimento e mesmo no contrato que constitui a relação subjacente encontra-se no domínio das relações imediatas, e pode opor ao portador do título a excepção do preenchimento abusivo.

II – Se a defesa do executado se situa no domínio do direito cartular é-lhe lícito invocar a prescrição do direito cartular do portador do título, mas se a sua defesa se situa no domínio da relação subjacente, a prescrição que pode arguir é a direito de crédito subjacente.

III – Da circunstância de um facto não se ter provado, não é legítimo retirar a prova do facto inverso, contrário ou menor, devendo a decisão ser proferida como se esse facto não tivesse sido sequer alegado, aplicando-lhe as regras do ónus da prova.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Antes de entrar propriamente na análise das questões jurídicas suscitadas pelo recorrente é necessário fazer uma precisão para evitar equívocos que perpassam pelas alegações de recurso.

A aplicação de normas jurídicas exige a prévia determinação dos factos que integram a respectiva previsão, já que só respeitando os factos que integram a previsão da norma se faz a correcta aplicação do direito, ou seja, das normas legais que associam a determinado facto ou factos consequências jurídicas específicas. A determinação dos factos que constituem a previsão da norma é, num primeiro momento, uma tarefa de apuramento, entre todos os factos que podiam ter lugar, aqueles que efectivamente ocorreram, na medida em que a norma jurídica regula factos e não hipóteses, eventos e não meras suposições.

Por esse motivo, a fundamentação de facto de uma decisão é constituída exclusivamente pelos factos provados. Apenas podem servir de fundamento à decisão os factos que o tribunal julgou provados, os factos em relação aos quais o tribunal, enquanto órgão jurisdicional cuja primeira tarefa é ajuizar os meios de prova e através deles apurar os factos que ocorreram, formula soberanamente um juízo de afirmação de correspondência com a realidade ontológica.

Os factos em relação aos quais o tribunal entendeu não ter sido produzida prova bastante para poderem ser julgados provados não podem servir de sustentáculo à aplicação de qualquer norma jurídica. Se não se sabe sequer se o facto ocorreu não pode obviamente decretar-se a consequência jurídica que o legislador definiu para o caso de o facto ser real.

Daí que em relação aos factos de que não se fez prova tudo se passe como se esse facto não tivesse sido sequer alegado, não podendo fazer-se a partir dele qualquer extrapolação factual ou retirar-se dele qualquer consequência jurídica, com excepção da imposta pelas regras do ónus da prova. Não pode, por exemplo, fazer-se qualquer interpretação à contrario dos factos não provados, retirar-se da não prova de determinado facto a prova do facto contrário, oposto ou menor. Também não se pode, a partir de factos não provados, fazer-se qualquer dedução baseada em regras de experiência ou presunções, as quais apenas podem recair sobre os factos provados.

Coisa diferente consiste em saber qual a parte que estava onerada com o dever de fazer a prova de determinado facto. Essa determinação é importante porque se um determinado facto não tiver sido julgado provado o tribunal deve decidir contra a parte que tinha o ónus de o provar, conforme resulta dos artigos 346.º do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil que contém a chamada regra de julgamento. Só que nessa situação, para fundamentar a decisão o tribunal não retira da não prova do facto a prova do facto oposto ou inverso. Da circunstância de o facto não ter sido julgado provado, o julgador apenas retira a improcedência da pretensão da parte que o devia ter provado para demonstração dos pressupostos do instituto jurídico em que alicerçou a sua pretensão.

Fica assim justificado que da circunstância de ter sido julgado não provado que «a exequente enviou as cartas juntas a fls. 58 e de fls. 61 a 62, cujo teor aqui se dá por reproduzido, à sociedade D…, SA para a Rua …» e ainda que «a exequente enviou as cartas juntas de fls. 59 a 60, cujo teor aqui se dá por reproduzido, ao embargante para a Rua …., …, casa ..., Porto» não se poder retirar que (tenha sido julgado provado que) a exequente não efectuou as comunicações a que se destinavam essas cartas."

*3. [Comentário] a) Deixa-se apenas um apontamento sobre uma questão muito profunda e interessante.

Numa situação de non liquet, o art. 414.º CPC impõe que o tribunal ficcione o facto contrário do facto probando e decida em conformidade com este facto. Em concreto: se o autor afirmar "sou credor do réu" e a prova deste facto controvertido não for sequer realizada pelo autor ou for impugnada pelo réu, o tribunal ficciona o facto "o autor não é credor do réu" e decide com fundamento neste facto ficcionado. Neste sentido, é discutível a afirmação que consta do acórdão de que, numa situação de non liquet, "para fundamentar a decisão o tribunal não retira da não prova do facto a prova do facto oposto ou inverso". O que se deve afirmar é antes que, perante um non liquet, o tribunal tem de retirar da não prova do facto a prova do facto oposto ou inverso.

Aliás, o mesmo sucede quando, perante a prova do facto pela parte onerada, se verifica a impugnação desta prova através da prova do facto contrário pela outra parte. Por exemplo: o autor afirma "sou credor do réu" e este réu demonstra que já pagou a dívida. Também neste caso o tribunal decide com base no facto contrário do facto alegado pelo autor.

b) Em conclusão, as hipóteses são as seguintes:

-- A parte não fez sequer a prova do facto probando ou, porque se trata de uma prova bastante, a prova realizada pelo parte foi contrariada por contraprova da outra parte (cf. art. 346.º 1.ª parte CC); em qualquer destas hipóteses o facto controvertido continua a ser um facto duvidoso e, por isso, origina-se uma situação de non liquet; aplicando o disposto no art. 346.º 2.ª parte CC e no art. 414.º CPC, o tribunal ficciona o facto contrário do facto probando;

-- A parte fez prova do facto probando, mas, porque se trata de uma prova plena, a contraparte impugnou essa prova através da prova do facto contrário do facto probando (cf. art. 347.º CC); o tribunal decide com base neste facto contrário do facto probando.

Como se vê, em qualquer das situações, a decisão do tribunal apoia-se no facto contrário do facto probando. A única diferença é que, num caso, esse facto é um facto ficcionado e, no outro, é o facto provado.

c) O proferimento de uma decisão com base no facto contrário (ficcionado ou provado) do facto probando levanta uma questão muito interessante: qual é o fundamento jurídico para o proferimento pelo tribunal da correspondente decisão de improcedência? Poder-se-ia ser levado a pensar que esse fundamento seria a regra que se encontra no art. 346.º 2.ª parte CC ou no art. 414.º CPC, mas é fácil perceber que não pode ser assim: essa regra só resolve o problema no plano da matéria de facto e só impõe que o juiz ficcione o facto contrário do facto probando; depois desta ficção e com base no facto ficcionado, o juiz, agora já situado no plano da matéria de direito, ainda tem de proferir uma decisão de improcedência, ou seja, ainda tem de extrair uma consequência jurídica daquele facto.

O proferimento de uma decisão de procedência não levanta nenhum problema, dado que ela decorre da aplicação de uma regra jurídica segundo a qual, perante a verificação do facto que integra a sua previsão, se extrai ou se poduz a consequência jurídica que decorre da sua estatuição. Mas -- e esta é a questão interessante -- onde está a regra jurídica que determina que, perante o não preenchimento de uma certa previsão, não se pode extrair ou não se produz uma certa consequência jurídica? Por exemplo: é claro que quem tiver um título de aquisição da propriedade é reconhecido como proprietário; mas -- pode perguntar-se --, onde está a regra jurídica que determina que quem não possuir um desses títulos não é reconhecido como proprietário? 

Repare-se que a consequência extraída da não verificação de uma previsão legal (por exemplo, o autor não é proprietário de x ou não é filho de y) tem exactamente o mesmo valor da consequência retirada da verificação de uma previsão legal (por exemplo, o autor é proprietário de x ou é filho de y). A consequência negativa (o "não é") não é um nihil no ordenamento jurídico, antes é algo que, tal como a consequência positiva (o "é"), tem relevância jurídica. Daí que, se nenhuma consequência positiva se produz sem um fundamento jurídico, também seja necessário encontrar um fundamento jurídico para a consequência negativa.

Neste contexto só importa enunciar o problema. Evidente é, no entanto, que o mesmo merece não só reflexão, mas também -- segundo se supõe -- solução.

MTS

22/06/2019

Custas do recurso conforme for devido a final



[Para aceder ao texto clicar em Salvador da Costa]


 

Bibliografia (826)


-- Conferência da Haia de Direito Internacional Privado, Princípios relativos à escolha de lei aplicável aos contratos comerciais internacionais (Haia 2019)

-- European Court of Human Rights, Guide on Article 6 of the European Convention on Human Rights (Updated to 30 April 2019)
 
 

 

21/06/2019

Legislação (160)


Arrendamento urbano


-- L 43/2019, de 21/6: Procede à interpretação autêntica do n.º 7 do artigo 1041.º do Código Civil, aditado pelo artigo 2.º da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que estabelece medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade


Jurisprudência 2019 (41)


Banco; medida se resolução;
sucessão*

1. O sumário de RP 15/1/2019 (113/10.0TYVNG-ED.P1) é o seguinte:

I - O Banco de Portugal dispõe do poder de transferência de direitos e obrigações de uma instituição de crédito, produzindo a decisão de transferência efeitos independentemente de qualquer disposição legal ou contratual em contrário (arts. 139.º, 140.º, e 145.º-O do RGICSF).

II - A substituição processual ocorrida por efeito directo de uma deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal que opere a dita transferência não carece de ser promovida através de incidente de habilitação de cessionário ou outro nos termos do artigo 269.º, nº2, do CPC.

III - A medida de resolução desencadeada pelo Banco de Portugal de uma dada instituição bancária deve abranger, por via de regra, os activos e os débitos intervencionados, devendo obstar a que se opere uma cisão entre eles particularmente se os mesmos resultarem de um mesmo vínculo contratual.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I) Invoca o recorrente, nos termos do artigo 195.º do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE, a nulidade processual cometida por acção, consubstanciada na notificação do ora Recorrente para prestar depoimento enquanto parte, ou por omissão, consubstanciada na falta de habilitação do ora Requerente para intervir, sendo que tal irregularidade influiu na decisão da causa dado que o Banco B…, S.A. se viu coarctado no seu direito de discutir a sua legitimidade para os presentes autos.

O que decorre desta alegação será a invocação de que o apelante surge como parte na acção sem que, para tanto, tenha sido formal ou validamente demandado o que, no caso mais gravoso, configuraria uma falta de citação (artigo 188º do CPC).

Entendemos que, em substância, será outra a questão a dirimir conexionada com a operabilidade da substituição processual operada nos autos.

Decidido este dissídio, nuclear nos autos, seria contemplado o presente objecto recursal o qual não contende com a pretendida nulidade processual tanto mais que o recorrente tem vindo a litigar nos autos sem que seja coarctado o contraditório ou o seu interesse processual.

De todo modo, uma vez que o apelante foi convocado, mediante notificação recebida a 2 de Maio deste ano, para prestação de depoimento de parte, interveio na audiência de 15 de Maio de 2018 onde nada disse sobre a pretendida nulidade, a mesma deve considerar-se sanada.

Confirma-se, assim, a argumentação já expendida a esse propósito pelo tribunal “a quo” para a qual, no mais, se remete.

II) Entende ainda o apelante que a substituição processual operada nos autos configura uma situação revel aos princípios processuais e constitucionais, tais como o contraditório, a igualdade, a proporcionalidade, o direito a um processo equitativo e ainda a proibição da indefesa, previstos nos n.º 1 e 3 do artigo 3.º do C.P.C. e artigo 2.º e n.º 4 do art. 20.º da C.R.P.

Pretende-se assim a revogação do despacho recorrido, substituído por outro que ordene a notificação do ora recorrente para se pronunciar relativamente à pretensão aduzida no sentido de ser ordenada a sua substituição pelo Banco B…, S.A. nos termos do n.º 2 do artigo 269.º do C.P.C.

Esta questão tem vindo já a ser tratada pelos nossos tribunais superiores designadamente em arestos desta Relação do Porto. A substituição operada fundamentou-se, com as devidas adaptações, no preceituado no artigo 269 n.º 2 do CPC. Ora, tal solução de cuja bondade cuidaremos na alínea seguinte, não implica qualquer violação do princípio do contraditório, da igualdade, da proporcionalidade ou de um processo equitativo, antes decorrendo dos próprios termos da norma convocada (art. 269º, n.º 2 do CPC) em que a parte, “in casu” o recorrente, assume a posição antes detida pelo (anterior) sujeito processual; por assim ser, não terá que beneficiar “ex novo” dos direitos e faculdades de que esta última já antes exerceu no processo sem prejuízo da ponderação, a ser efectivada em momento processual próprio, daqueles argumentos que só à parte ora presente dizem respeito.

De outro modo, conceder-se-ia ao sucessor, chamado a assumir a posição processual do anterior Banco litigante, um tratamento excepcional, sem acolhimento legal (neste mesmo sentido, entre vários outros, leia-se Ac. da Relação de Guimarães de 5.11.2015, processo nº 1111/14.0TBBCL-A.G1 ou desta Relação de 16 de Novembro de 2015, processo 725/14.3TBLSD-A.P1).

Não se vê como, uma vez assentes os pressupostos substanciais da operada substituição legalmente consagrada, se possa invocar a violação dos princípios enunciados, improcedendo, também neste segmento, a presente apelação."

*[Comentário] a) Salvo o devido respeito, o recorrente e o acórdão padecem, ambos, de um equívoco quanto à caracterização da substituição processual.

Importa ter clareza nesta matéria. A confusão reside em entender que o disposto no art. 269.º, n.º 2, CPC conduz à substituição processual regulada no art. 263.º, n.º 1, CPC. Ora, não é assim pela razão seguinte:

-- O art. 269.º, n.º 2, CPC regula a situação em que a parte na causa se torna uma outra entidade por transformação ou fusão; portanto, antes a parte era A e agora, depois da transformação ou fusão, a parte é B; 

-- O art. 263.º, n.º 1, CPC regula a situação em que a parte C (transmitente ou cedente) está em juízo em substituição de D (adquirente ou cessionário); portanto, a substituição processual pressupõe sempre dois interessados: a parte substituta (C) e parte substituída (D).

Basta isto para se poder concluir que o disposto no art. 269.º, n.º 2, CPC nunca pode conduzir à substituição processual do art. 263.º, n.º 1, CPC pela simples razão de que o primeiro preceito regula uma situação em que há apenas uma parte (primeiro A e depois B) e o segundo preceito regula uma situação em que há duas partes em simultâneo (C, parte substituta, e D, parte substituída).

Aliás, é contraditória a afirmação de que, "como reiterado pela nossa jurisprudência, [...] esta substituição processual não carece de ser promovida através de incidente de habilitação de cessionário ou outro, pois ocorre por efeito directo da citada deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal (cf. artigo 269.º, nº 2, do CPC)". Há aqui uma confusão:

--  A substituição processual não pode ser promovida pelo efeito directo de nenhuma deliberação; a substituição processual só se verifica quando há uma parte substituta e uma parte substituída; a substituição processual não é a "saída" de uma parte e a "entrada" de outra em sua substituição, mas precisamente a situação que se verifica quando a parte substituta está em juízo e a parte substituída está fora dele;

-- Por isso, quando a parte substituída "entra" no juízo e a parte substituta "sai" dele, a substituição processual está terminada.

b) Em conclusão: 

-- A inclusão da transformação de um banco decorrente de uma medida de resolução no art. 269.º, n.º 2, CPC obsta à aplicação do mecanismo da substituição processual;

-- Por isso, se a parte convocada para depor entendia haver alguma nulidade processual, essa parte tinha o ónus de invocá-la após a notificação para o depoimento (art. 199.º, n.º 1, CPC); nesta parte o acórdão decidiu bem.

MTS