Dever de verdade; violação;
litigância de má fé
I. A convenção de domicílio deve constar de contrato reduzido a escrito.
II. Existindo convenção de domicílio, o requerido será notificado da instauração de procedimento de injunção através do depósito de carta simples, na caixa de correio do domicílio convencionado.
III. Na falta de domicílio convencionado, a notificação de requerimento de injunção far-se-á por carta registada com aviso de receção ou, se tal tiver sido pedido pelo requerente, por agente de execução ou mandatário judicial.
IV. No caso de se frustrar qualquer uma das formas de notificação referidas em III, a secretaria obterá informação sobre residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a administração do notificando, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Direção-Geral dos Impostos e da Direção Geral de Viação.
V. Seguidamente, a secretaria procederá à notificação do requerido mediante o envio de carta simples para o endereço ou cada um dos endereços constantes das referidas bases de dados, devendo o distribuidor do serviço postal certificar o depósito na respetiva caixa de correio.
VI. Litiga com má-fé a requerente de injunção que alega falsamente a existência de convenção de domicílio, assim levando a que a secretaria notifique imediatamente a requerida mediante o envio de carta simples e, obtida a aposição de fórmula executória no requerimento de injunção, deduz ação de execução para pagamento de quantia certa, logrando a penhora de património da requerida, previamente à citação para os efeitos da execução.
VII. A conduta processual referida em VI preenche a previsão das alíneas b), c) e d) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC, porquanto:
a) Consiste na alegação de um facto falso (existência de convenção de domicílio) para, através do indevido acesso à via-rápida da notificação por carta postal simples, lograr imediata obtenção de título executivo no procedimento de injunção;
b) Constitui violação do dever de boa-fé processual e, por inerência, do dever de cooperação, que é exigida às partes tendo em vista a obtenção não só de uma solução do litígio célere mas, também, justa, ou seja, conforme ao princípio do processo equitativo, que pressupõe o estrito cumprimento do contraditório;
c) Constitui utilização indevida e reprovável dos instrumentos processuais proporcionados pela comunidade para a efetivação dos direitos substantivos.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Assente está [...] que a notificação realizada era nula, por não terem sido adotados os formalismos que a lei impunha e que garantiriam que à requerida era concedido o direito de defesa, elemento integrante do direito de acesso aos tribunais constitucionalmente garantido (art.º 20.º n.º 1 da CRP).
A única questão que permanece controvertida nestes autos é se a requerente/exequente litigou de má-fé.
Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
A atual redação do preceito, introduzida no anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 (onde era o art.º 456.º), visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
Como bem se recorda no acórdão do STJ de 16.5.2019 (processo n.º 6646/04.0TBCSC.L1.S2 – consultável, bem como os restantes indicados, em www.dgsi.pt)), a litigância de má fé é um instituto que visa sancionar e, portanto, combater a “má conduta processual”. A conduta sancionada consubstancia-se na dedução de pretensão ou oposição cuja falta ou fundamento não podia ser ignorada, na alteração ou omissão da verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, na omissão grave do dever de cooperação ou no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Os fins aí perseguidos são a boa administração da justiça, o respeito pelo tribunal, a credibilidade da atividade jurisdicional (cfr. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, pp. 452-454).
Pese embora o alargamento do tipo subjetivo da conduta sancionável, que, além do dolo, abarca atualmente comportamentos gravemente negligentes, o comportamento em causa deve, obviamente, acarretar, face aos objetivos do processo, seriedade relevante. Quanto à alínea a) do n.º 2 do art.º 542.º, exige-se a dedução de pretensão ou a apresentação de oposição sem fundamento, tout court, isto é, ao fim e ao cabo, pretensão ou defesa que sejam, em concreto, absolutamente infundadas (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 393 a 398). Daí, também, que a falta de verdade (al. b) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC) deva recair sobre “factos relevantes para a decisão da causa”, ou seja, factos essenciais ou principais, suscetíveis de influenciar a decisão por determinação da matéria de facto (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 354, 355, 399). Por outro lado, a violação do dever de cooperação pressupõe uma omissão grave (al. c) do n.º 2 do art.º 542.º). Haverá que analisar o art.º 7.º n.º 1 do CPC: “Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.” A cooperação está ordenada à breve e justa composição do litígio (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 408 a 410), pelo que a omissão de cooperação, do lado da parte, deverá ser suscetível de afetar esse desiderato. Por fim, as modalidades de má-fé instrumental previstas na al. d) do n.º 2 do art.º 542.º reportam-se à utilização disfuncional dos meios processuais, que seja manifestamente reprovável, tendo em vista conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça, protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Aqui exige-se um elemento subjetivo específico, uma intencionalidade, na atuação do agente processual, dirigida ou orientada para aqueles efeitos (Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 411-420).
No CPC de 1939 (art.º 465.º), e bem assim na versão inicial do CPC de 1961 (art.º 456.º), apenas se sancionava a litigância dolosa ou maliciosa, excluindo-se a litigância temerária. A razão dessa restrição consta no relatório do Ministro da Justiça, apresentado à Comissão Revisora do projeto que deu origem ao CPC de 1939:
“A simples proposição de acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito, e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir” (citado por Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume II, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 263).
O dolo poderia ser substancial, isto é, reportar-se ao conhecimento da inexistência do direito invocado (quanto ao autor) ou na falta de razão na sua contestação (quanto ao réu), bem assim na alteração consciente da verdade dos factos; ou instrumental, isto é, consistir na utilização consciente e reprovável do processo ou dos meios processuais (cfr., v.g., António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito e Culpa “In Agendo”, 3.ª edição aumentada e atualizada, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2014, p. 58).
Fazia-se sentir, no CPC de 1939 e no CPC de 1961, a visão liberal do processo como campo de ação das partes, em que estas litigavam naturalmente norteadas pelos seus próprios interesses, sendo compreensível e aceitável que o fizessem mesmo temerariamente, isto é, ainda que desprovidas de razão - desde que, mal ou bem, disso não estivessem convencidas.
Considerava-se que a realidade do processo era diferente da extrajudicial, tolerando-se comportamentos grosseiramente negligentes que, à luz dos princípios do direito substantivo, levariam à responsabilização do seu autor.
A reforma de 1995/1996 do CPC, depois transcrita no CPC de 2013, alargou a responsabilização por litigância de má-fé aos comportamentos gravemente negligentes, e adicionou, à tipificação dos comportamentos como tal ilícitos, a referência à “omissão grave do dever de cooperação”.
Nas suas lições de 1978-79, Direito Processual Civil, I volume, o Prof. Castro Mendes reputava “não realista a ideia do processo como instituição, colaboração de esforços para o fim a todos comum”, pp. 102 e 103, nota 1.
Atualmente, a cooperação entre as partes e o tribunal é apresentada como princípio fundamental do processo civil, como tal introduzido no CPC de 1961 pela reforma de 1995/1996 (art.º 266.º) e evidenciado no CPC de 2013 (artigos 7.º e 8.º). De tal modo que a violação grave do dever da cooperação (entendido como a cooperação entre os magistrados, os mandatários judiciais e as partes, em ordem a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” – art.º 7.º n.º 1 do CPC – fim esse que deve pautar a conduta processual das partes, à luz do dever de boa-fé processual – art.º 8.º do CPC) pode acarretar a punição da parte não cooperante como litigante de má-fé (art.º 542.º n.º 2 al. c) do CPC).
Desde 1939 assistiu-se, pois, ao aumento do nível ético do padrão de comportamento processual exigido e aceite quanto às partes, que se traduz nas apontadas alterações ao regime de litigância de má-fé (Paula Costa e Silva, obra citada, v.g., p. 693).
A apelante, para se subtrair à responsabilização que lhe foi imposta pelo tribunal a quo, alegou que faltava, no caso, o requisito da causalidade adequada. Segundo a apelante, não pode considerar-se como efeito normal, típico, previsível da notificação por carta simples com prova de depósito que o notificando não receba a carta. Isso é tanto assim, diz a apelante, que a própria lei admite que, se falhar a notificação por carta registada com aviso de receção, se proceda à notificação por carta simples, com depósito na respetiva caixa do correio.
Vejamos.
A aplicação de multa por litigância de má-fé visa punir um comportamento que se tem por contrário ao direito, por ser contrário aos fins do processo e da Justiça. Conforme nota Alberto dos Reis (obra citada, p. 269) a aplicação da respetiva sanção visa, como é próprio de toda a pena, punir o delito cometido (função repressiva) e evitar que o mesmo ou outros o pratiquem no futuro (função preventiva).
A censurabilidade da conduta processual consubstanciadora da litigância de má-fé não pressupõe ou exige que esse comportamento cause um dano (vide, v.g., Paula Costa e Silva, obra citada, pp. 375, 452, 691). O facto de o autor mentiroso ter sido desmascarado e, consequentemente, ter perdido a ação, não o exime da responsabilização como litigante de má-fé.
Também o facto eventual de a requerida, indevidamente notificada por depósito de carta simples, ainda assim apresentar oposição, não isenta da qualificação como litigante de má-fé o requerente que tenha culposamente estado na origem dessa forma (para o caso) ilegal de notificação.
A perspetiva do nexo de causalidade releva, porém, na atribuição de indemnização à contraparte. A indemnização prevista no art.º 542.º do CPC tem natureza civil, ressarcitória (Paula Costa e Silva, obra citada, v.g. p. 524 e 692), e exige, tal como a que decorre do art.º 483.º do Código Civil, um nexo de causalidade entre a conduta imputada ao agente e o dano sofrido pela parte lesada.
Nos termos do disposto no art.º 563.º do Código Civil, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Quis consagrar-se aqui a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (sine qua non) do dano; é necessário ainda que, em abstrato e em geral, o facto seja uma causa adequada do dano (Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, Almedina, 8ª edição, páginas 905 e 915). Na formulação que se reputa mais criteriosa (formulação negativa, de Enneccerus-Lehmann) quando a lesão proceda de facto ilícito, o facto não deve considerar-se causa (adequada) apenas daqueles danos que constituem uma consequência normal, típica, provável, dele. Deve considerar-se causa adequada mesmo daqueles danos para cuja ocorrência também concorreu caso fortuito ou conduta de terceiro. Só não será assim quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excecionais, que tanto poderiam sobrevir ao facto ilícito como a um outro facto lícito (A. Varela, obra citada, páginas 909 e 910, 917; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, 2013, Almedina, pág. 764; José Alberto González, Direito da Responsabilidade Civil, Quid Juris, 2017, pp. 214-221; STJ, 20.10.2005, processo n.º 05B2286, consultável em www.dgsi.pt; STJ, 08.10.2014, processo 4028/10.4TTLSB.L1.S1, consultável em Coletânea de Jurisprudência on line, referência 5506/2014, e também CJ STJ, n.º 259, tomo III, 2014).
Isto exposto, é evidente que a utilização da notificação/citação por carta postal simples fora das situações que a lei prevê cria, em termos normais e previsíveis, o risco de o seu destinatário não tomar conhecimento da carta, ou não tomar atempadamente. Daí a nulidade dessa notificação, nos termos acima expostos. [...]
Dúvidas não há, assim, que no caso dos autos ocorreu nexo de causalidade entre a conduta da requerente/apelante e os danos consubstanciados nas penhoras, na necessidade de constituição de advogado, de dedução de oposição à execução, da prestação de caução.
O apelante invoca ainda dois acórdãos das Relações, incidentes sobre situações idênticas à destes autos, em que o requerente da injunção não foi condenado como litigante de má-fé, não se tendo sequer o tribunal pronunciado sobre tal, apesar de ser matéria de conhecimento oficioso.
Constata-se que a alegação, em procedimentos de injunção, da existência de falsas convenções de domicílio, é frequente, a aquilatar pelo significativo número de decisões jurisprudenciais publicadas que incidem sobre essa temática. Vejam-se, por exemplo, os acórdãos da Rel. de Lisboa, 13.3.2008, processo 2071/2008-6; Rel. de Lisboa, 17.9.2009, processo 1999/05.6TBCSC-B.L1-6; Rel. de Coimbra, 29.5.2012, processo 927/09.4TBCNT-A.L1; Rel. de Lisboa, 13.9.2012, processo 276/11.8TBPDL-A.L1-8; Rel. de Lisboa, 16.5.2013, processo 2537/10.4TBCSC-A-6; Rel. de Coimbra, de 10.5.2016, processo 580/14.3T8GRD-A.C1; Rel. de Guimarães, 11.5.2017, processo 1639/14.2TBVCT.G2; Rel. de Coimbra, 14.11.2017, processo 739/15.6TOLRA.C1; Rel. de Coimbra, 28.5.2019, processo 2592/17.6T8VIS-A.C1; Rel. de Lisboa, 27.6.2019, processo 3414/15.8T8OER-A.L1-2, todos consultáveis em www.dgsi.pt.
Na grande maioria desses acórdãos não foi suscitada, sequer, a questão da litigância de má-fé por parte do requerente que havia falsamente invocado a existência de convenção de domicílio, não tendo o tribunal, seja o de 1.ª instância, seja o da Relação, se pronunciado sobre essa matéria, apesar de ser de conhecimento oficioso. [...]
Revertendo ao caso destes autos, constata-se que a apelante violou o dever de boa-fé processual (art.º 8.º do CPC), afastando-se da cooperação que lhe era exigida tendo em vista obter-se não só uma solução do litígio célere mas, também, justa, ou seja, conforme ao princípio do processo equitativo, que pressupõe o estrito cumprimento do contraditório (artigos 7.º n.º 1 e 3.º n.º 1 do CPC, 20.º n.º 4 da CRP).
A apelante alegou um facto falso (convenção de domicílio), para assim obter indevido acesso à via-rápida da notificação por carta postal simples e, com isso, lograr imediata obtenção de título executivo, a que deu sequência com a instauração de ação de execução que se concretizou pela imediata penhora de património da requerida, requerida que só após a penhora teve conhecimento (como se presume) de que fora instaurado o procedimento de injunção. Essa falsa afirmação da celebração de convenção de domicílio proporcionou à ora apelante o sucesso do requerimento de injunção, com a obtenção de título executivo, o que preenche a previsão da alínea b) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC.
Por outro lado, a requerente utilizou de forma indevida e reprovável os instrumentos processuais proporcionados pela comunidade para a efetivação dos seus alegados direitos substantivos, incorrendo na previsão das alíneas c) e d) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC.
Justifica-se, assim, a sua condenação em multa, como litigante de má-fé, e a cumulativa condenação no ressarcimento dos prejuízos consequentemente causados à requerida (artigos 542.º n.º 1 e 543.º n.º 1 al. b) do CPC).
Assim como se justifica a comunicação à Ordem dos Advogados, nos termos do art.º 545.º do CPC.
Comportamento idêntico ao da apelante mereceu a confirmação, pela Relação de Lisboa, da condenação da exequente como litigante de má-fé, em multa e indemnização, proferida pela 1.ª instância, em acórdão proferido em 27.06.2019, processo 3414/15.8T8OER-A.L1-2, relatado pelo Exm.º ora 2.º adjunto (consultável em www.dgsi.pt)."