"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/04/2021

Jurisprudência 2020 (201)


Prova documental;
princípio da cooperação; dever do juiz


1. O sumário de RL 5/11/2020 (1943/14.0T8SNT-B.L1) é o seguinte:

I - Cumpre ao juiz dirigir activamente o processo e cooperar com as partes e seus mandatários, tendo em vista a justa composição do litígio (art. 6º e 7º do CPC).

II - Assim, como os documentos juntos aos autos não são esclarecedores quanto à cessão do crédito invocada no requerimento de habilitação da cessionária, deveria a 1ª instância ter convidado a requerente a explicar a razão da discrepância entre o valor do crédito reclamado nos autos de execução e o valor em dívida que está indicado no documento por ela junto e bem assim a juntar o documento que comprova a correspondência entre a alegada renumeração do crédito cedido e o número do contrato de mútuo invocado na execução.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"C) Se está demonstrada a alegada cessão de créditos

No seu requerimento inicial a apelada declarou junta 2 documentos, mas não os numerou.

O documento intitulado «Contrato de Cessão de Carteira de Créditos não garantidos» em que são designados como “Cedente” o Banco Santander Totta, SA e como «Cessionário” a EOS Credit Funding DAC, contém 3 anexos.

No ponto 2 desse «Contrato de Cessão de Carteira de Créditos não garantidos» consta, além do mais:

«2.Objeto
2.1 Nos termos do presente Contrato, o Cedente vende e transmite ao Cessionário, que por sua vez compra e adquire, a Carteira de Créditos, (…) como contrapartida pelo pagamento do Preço de Aquisição, adquirindo a titularidade plena dos Créditos bem como todos os Direitos Acessórios dos Créditos que compõem a referida Carteira de Créditos na Data de, nos termos do presente Contrato (…)(…)».

No ponto 10 consta, além do mais:

«10. Notificação da cessão aos devedores e aos colaboradores do Cedente
10.1 De modo a formalizar a notificação da Cessão dos Créditos aos devedores por efeito do presente Contrato, o Cedente e o Cessionário acordam que o cessionário será responsável pelo envio da notificação aos devedores dos Créditos, através de uma carta assinada pelos representantes do Cessionário, de acordo com a minuta indicada no Anexo 3 do presente Contrato e a informação contida no CD-RROM a ser enviada pelo Cedente na Data de Fecho ao Gestor dos Créditos (…)

No ponto 22 consta:

«22.Conteúdos dos Anexos
Este Contrato contém os Anexos abaixo identificados, dos quais apenas os Anexos 2 a 5 deverão ser disponibilizados ao Cessionário, enquanto que ao Cedente e ao Gestor dos Créditos serão disponibilizados todos os Anexos (mas que, para todos os efeitos contratuais, a totalidade dos Anexos serão considerados conhecidos e aceites integralmente pelo Cessionário):
Anexo 1: dados da Carteira de Créditos (CD-ROM);
Anexo 2: Declaração de Conclusão;
Anexo 3: Minuta de Carta de notificação aos Devedores;
Anexo 4: Lista dos Créditos, com exclusão dos dados pessoais dos Devedores;
Anexo 5: Lista dos valores depositados em Tribunal;
Anexo 6: Lista dos Créditos, incluindo dados pessoais dos Devedores». [...]

No Anexo 2 (página 43 do «Contrato» junto aos autos constam apenas estes dizeres num quadro:

«Declaração de Conclusão
Número de créditos cedidos
Montante total em dívida à data de determinação da carteira de créditos
Montantes depositados
Preço de aquisição». [...]
 
O documento 2 é uma folha onde consta:

- como «cliente» «Pinto e Bentes Sa, com o NIF 500217858
- como «Número de Cliente» 5100260719,
- como «ID»: 000601358987096 –000000000000000»,
- e como valor em dívida «307.460».

Vem alegado no requerimento inicial que a designação «000601358987096 –000000000000000» corresponde à renumeração que identifica o contrato cedido e que é o contrato de mútuo com o nº 0380- 044-00107-98.

Porém, dos referidos documentos não é possível encontrar tal correspondência, pois neles não está identificado o contrato de mútuo que está na origem da execução.

Além disso no requerimento executivo é exigido o pagamento de:

«Capital: € 333.333,36
Juros Remuneratórios calculados entre 25-11-2013 e 22-05-2014 €8.765,00
Comissões de Processamento €8,26
Comissões de recuperação de valores em dívida €300,00
Juros mora até 17-07-2014 €4.460,57
Imposto de Selo: € 140,80
Despesas de cobrança: € 6.948,17
TOTAL: € 354.356,72 (trezentos e cinquenta e quatro mil trezentos e cinquenta e seis euros e setenta e dois cêntimos).».
 
Significa que os documentos juntos pela apelada são insuficientes para se concluir, como na sentença recorrida, que estão «provados os factos alegados pela requerente relativos à existência da cessão de créditos através da qual o exequente lhe cedeu os créditos que reclamava na execução a que estes autos se mostram apensos.».

Decorre do art. 356º nº 1 al a) e b) do CPC que o ao requerimento de habilitação do cessionário tem de ser junto o título da cessão e que o juiz tem de verificar se o documento prova a cessão e só no caso afirmativo declara habilitado o cessionário.

Por outro lado, cumpre ao juiz dirigir activamente o processo e cooperar com as partes e seus mandatários, tendo em vista a justa composição do litígio (art. 6º e 7º do CPC).

Assim, como os documentos juntos aos autos não são esclarecedores quanto à invocada cessão do crédito, deveria a 1ª instância ter convidado a requerente a clarificar a razão da discrepância de valores e juntar o documento do qual resulta a correspondência do «ID: 000601358987096 –000000000000000» ao contrato de mútuo invocado na execução.

Por quanto se disse, impõe-se anular a decisão recorrida e ordenar que no tribunal recorrido seja proferido despacho formulando tal convite à apelada."

[MTS]


29/04/2021

Jurisprudência 2020 (200)


Apoio judiciário;
deferimento tácito; indeferimento expresso


1. O sumário de RL 27/10/2020 (1320/12.7TBMTA.L1-1) é o seguinte:

I - Tendo o Instituto de Segurança Social proferido decisão expressa no sentido do indeferimento do pedido de apoio judiciário após o decurso do prazo de formação do acto tácito (deferimento tácito), o acto expresso posterior ao ato tácito constitui um ato administrativo anulatório.

II - A anulação administrativa do acto tácito pode ocorrer no prazo de seis meses a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade.

III - A questão respeitante à possibilidade ou não de o Instituto de Segurança Social emitir acto expresso de indeferimento do pedido de apoio judiciário após o decurso do prazo previsto no artº 25º nº 1 da Lei nº 34/2004, de 29/7, tem que ser arguida pela via de impugnação judicial.

IV - Não tendo ocorrido tal impugnação judicial, o acto tácito de deferimento deixou de ser invocável, por ter desaparecido da ordem jurídica, subsistindo apenas o acto expresso de indeferimento.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O apoio judiciário compreende diversas modalidades, entre elas, a dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e o pagamento faseado da taxa de justiça e demais encargos com o processo (artº 16º nº 1, als. a) e d) da Lei nº 34/2004, de 29/7 – Lei do acesso ao Direito e aos Tribunais, com as últimas alterações introduzidas pela Lei nº 2/2020, de 31/3).

No caso em apreço, a apelante requereu a concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, para propor acção judicial

Tal pedido foi formulado em 10/7/2012.

Por ofícios enviados em 11/7/2013 e em 5/8/2013, foi a recorrente notificada pelo I.S.S. (Instituto da Segurança Social) para, ao abrigo do disposto no artº 8º-B nºs. 3 e 4 da Lei nº 34/2004, de 29/7, apresentar, no prazo de 10 dias, os documentos necessários à prova da sua insuficiência económica, sob pena de indeferimento.

Porém, a apelante não entregou ao I.S.S. tais elementos, alegando agora que não recebeu tal notificação.

Em 26/8/2013, o I.S.S. indeferiu o requerimento de protecção jurídica apresentado pela recorrente.

A decisão do I.S.S. não foi impugnada judicialmente, sendo, pois, definitiva.

Uma vez que a decisão do I.S.S. não foi proferida no prazo de 30 dias contados da apresentação do requerimento de apoio judiciário, a recorrente defende que se formou um acto tácito no sentido do deferimento de tal apoio.

Ora, decorre do artº 25º nº 1 da Lei nº 34/2004 de 29/7, que o prazo para conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de protecção jurídica é de 30 dias, é contínuo e não se suspende durante as férias judiciais.

Por sua vez o nº 2 de tal normativo diz-nos que, decorrido aquele prazo sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de protecção jurídica.

A norma em causa estabelece um acto ficcionado (deferimento tácito), através do qual se concede ao particular, nos termos da mesma, o correspondente à sua pretensão na sequência do decurso de um lapso de tempo sem que a Segurança Social se tenha pronunciado sobre a mesma (cf. artº 130º nº 1 do Código do Procedimento Administrativo).

No caso, existiu uma manifestação expressa da vontade (decisão no sentido do indeferimento) após a formação do ato tácito.

Houve, assim, um afastamento implícito do acto tácito de deferimento, por incompatibilidade de conteúdo desse acto com a decisão administrativa (expressa) posterior, destruindo os efeitos do primeiro acto.

Refere o Prof. Marcello Caetano (in “Manual de Direito Administrativo”, Vol. I, pg. 477) que “o acto tácito de aprovação, se não for constitutivo de direitos, pode ser confirmado ou substituído por um acto expresso contrário mas se o acto expresso tiver sentido contrário à ilação legal tirada do silêncio, só à luz da teoria da revogação do acto administrativo, poderá discutir-se a sua validade”.

No Código do Procedimento Administrativo vigente (aprovado pelo Decreto-Lei nº 4/2015, de 17/1) a figura da revogação abrange unicamente a prática de actos com vista à cessação do acto “por razões de mérito ou oportunidade”, tendo sido criada uma nova figura, a anulação administrativa, que consiste no “acto administrativo que determina a destruição dos efeitos de outro com fundamento da invalidade” (cf. Acórdãos do Tribunal Central Administrativo do Sul de 5/7/2017 e de 15/1/2015, ambos consultados na “internet” em www.dgsi.pt, e Luiz Cabral de Moncada, in “Código do Procedimento Administrativo Anotado”, 3ª ed. rev. e actualizada, pg. 546).

Ora, “uma vez que, no momento da formação do acto tácito, a ora recorrente não estava em condições de beneficiar de apoio judiciário na modalidade requerida, desde logo porque ainda não tinha sido feita prova da sua insuficiência económica (v. artº 7º nº 1 e art. 8º da Lei 34/2004 de 29/7 e artº 14º da Portaria 1085-A/2004, de 31/8) a decisão expressa do I.S.S. configura uma anulação administrativa” (cf. Acórdão da Relação de Guimarães de 14/11/2019, consultado na “internet” em www.dgsi.pt).

Assim, o acto expresso posterior ao ato tácito constitui um ato administrativo anulatório (cf. artº 165º nº 2 do Código do Procedimento Administrativo).

Uma vez que o acto tácito em causa é constitutivo de direitos (artº 167º nº 3 do Código do Procedimento Administrativo), a sua anulação administrativa podia ocorrer no prazo de seis meses a contar da data do conhecimento pelo órgão competente da causa de invalidade (artº 168º nº 1 do Código do Procedimento Administrativo). Porém, o acto de indeferimento foi proferido para além de seis meses após o acto tácito, uma vez que, a revogação apenas poderia ter ocorrido até 24/04/2013 (e só ocorreu, como já vimos, em 26/8/2013).

E bastará este circunstancialismo para que o deferimento do pedido de apoio judiciário permaneça válido ?

Como se refere no Acórdão da Relação de Guimarães de 14/11/2019 (consultado na “internet” em www.dgsi.pt) :

“Contudo (…), a questão respeitante à possibilidade ou não de o I.S.S. emitir acto expresso de indeferimento do pedido de apoio judiciário após o decurso do prazo previsto no artº 25º nº 1 da Lei nº 34/2004 tinha que ser arguida pela via da impugnação judicial (v. artº 26º nº 2, 27º e 28º da Lei nº 34/2004)”.
 
“Deste modo, não tendo sido correctamente impugnada a decisão da Segurança Social que revogou o acto tácito de deferimento da pretensão do Requerente no sentido de lhe ser concedida protecção jurídica na modalidade de dispensa de pagamento taxa de justiça e demais encargos com o processo, o acto tácito de deferimento deixou de ser invocável, por ter desaparecido da ordem jurídica, subsistindo apenas o acto expresso de indeferimento. Este prevalece sobre o acto tácito que se possa ter formado por inércia da administração, porque o revogou tacitamente sem que os interessados o tenham impugnado (v. neste sentido Ac. Tribunal da Relação do Porto de 9/4/13 in www.dgsi.pt)”.
 
Este entendimento não viola qualquer princípio constitucional, designadamente o da igualdade, previsto no artº 20º da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, o benefício de apoio judiciário apenas deve ser concedido a quem, efectivamente, esteja numa situação de carência económica, a fim de proporcionar, também a estes o acesso ao direito e aos Tribunais.

O facto de o legislador estabelecer regras objectivamente fundadas para regular tal acesso em nada contende com tal princípio.

Em síntese, diremos que o acto expresso de indeferimento do pedido de apoio judiciário após o decurso do prazo previsto no artº 25º nº 1 da Lei nº 34/2004, de 29/7, terá que ser arguida pela via da impugnação judicial, não sendo este recurso a sede própria para o impugnar, pelo que, neste momento, subsiste apenas o acto expresso de indeferimento."

[MTS]


28/04/2021

Breve comentário ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/02/2021



[Para aceder ao texto clicar em Urbano A. Lopes Dias]



Jurisprudência 2020 (199)


Dever de verdade; violação;
litigância de má fé


1. O sumário de RL 5/11/2020 (3753/19.9T8ENT-B.L1-2) é o seguinte:

I. A convenção de domicílio deve constar de contrato reduzido a escrito.

II. Existindo convenção de domicílio, o requerido será notificado da instauração de procedimento de injunção através do depósito de carta simples, na caixa de correio do domicílio convencionado.

III. Na falta de domicílio convencionado, a notificação de requerimento de injunção far-se-á por carta registada com aviso de receção ou, se tal tiver sido pedido pelo requerente, por agente de execução ou mandatário judicial.

IV. No caso de se frustrar qualquer uma das formas de notificação referidas em III, a secretaria obterá informação sobre residência, local de trabalho, sede ou local onde funciona normalmente a administração do notificando, nas bases de dados dos serviços de identificação civil, da segurança social, da Direção-Geral dos Impostos e da Direção Geral de Viação.

V. Seguidamente, a secretaria procederá à notificação do requerido mediante o envio de carta simples para o endereço ou cada um dos endereços constantes das referidas bases de dados, devendo o distribuidor do serviço postal certificar o depósito na respetiva caixa de correio.

VI. Litiga com má-fé a requerente de injunção que alega falsamente a existência de convenção de domicílio, assim levando a que a secretaria notifique imediatamente a requerida mediante o envio de carta simples e, obtida a aposição de fórmula executória no requerimento de injunção, deduz ação de execução para pagamento de quantia certa, logrando a penhora de património da requerida, previamente à citação para os efeitos da execução.

VII. A conduta processual referida em VI preenche a previsão das alíneas b), c) e d) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC, porquanto:

a) Consiste na alegação de um facto falso (existência de convenção de domicílio) para, através do indevido acesso à via-rápida da notificação por carta postal simples, lograr imediata obtenção de título executivo no procedimento de injunção;

b) Constitui violação do dever de boa-fé processual e, por inerência, do dever de cooperação, que é exigida às partes tendo em vista a obtenção não só de uma solução do litígio célere mas, também, justa, ou seja, conforme ao princípio do processo equitativo, que pressupõe o estrito cumprimento do contraditório;

c) Constitui utilização indevida e reprovável dos instrumentos processuais proporcionados pela comunidade para a efetivação dos direitos substantivos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Assente está [...] que a notificação realizada era nula, por não terem sido adotados os formalismos que a lei impunha e que garantiriam que à requerida era concedido o direito de defesa, elemento integrante do direito de acesso aos tribunais constitucionalmente garantido (art.º 20.º n.º 1 da CRP).

A única questão que permanece controvertida nestes autos é se a requerente/exequente litigou de má-fé.

Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A atual redação do preceito, introduzida no anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12 (onde era o art.º 456.º), visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.

Como bem se recorda no acórdão do STJ de 16.5.2019 (processo n.º 6646/04.0TBCSC.L1.S2 – consultável, bem como os restantes indicados, em www.dgsi.pt)), a litigância de má fé é um instituto que visa sancionar e, portanto, combater a “má conduta processual”. A conduta sancionada consubstancia-se na dedução de pretensão ou oposição cuja falta ou fundamento não podia ser ignorada, na alteração ou omissão da verdade dos factos relevantes para a decisão da causa, na omissão grave do dever de cooperação ou no uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Os fins aí perseguidos são a boa administração da justiça, o respeito pelo tribunal, a credibilidade da atividade jurisdicional (cfr. Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, pp. 452-454).

Pese embora o alargamento do tipo subjetivo da conduta sancionável, que, além do dolo, abarca atualmente comportamentos gravemente negligentes, o comportamento em causa deve, obviamente, acarretar, face aos objetivos do processo, seriedade relevante. Quanto à alínea a) do n.º 2 do art.º 542.º, exige-se a dedução de pretensão ou a apresentação de oposição sem fundamento, tout court, isto é, ao fim e ao cabo, pretensão ou defesa que sejam, em concreto, absolutamente infundadas (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 393 a 398). Daí, também, que a falta de verdade (al. b) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC) deva recair sobre “factos relevantes para a decisão da causa”, ou seja, factos essenciais ou principais, suscetíveis de influenciar a decisão por determinação da matéria de facto (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 354, 355, 399). Por outro lado, a violação do dever de cooperação pressupõe uma omissão grave (al. c) do n.º 2 do art.º 542.º). Haverá que analisar o art.º 7.º n.º 1 do CPC: “Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.” A cooperação está ordenada à breve e justa composição do litígio (cfr. Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 408 a 410), pelo que a omissão de cooperação, do lado da parte, deverá ser suscetível de afetar esse desiderato. Por fim, as modalidades de má-fé instrumental previstas na al. d) do n.º 2 do art.º 542.º reportam-se à utilização disfuncional dos meios processuais, que seja manifestamente reprovável, tendo em vista conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça, protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Aqui exige-se um elemento subjetivo específico, uma intencionalidade, na atuação do agente processual, dirigida ou orientada para aqueles efeitos (Paula Costa e Silva, ob. cit., pp. 411-420).

No CPC de 1939 (art.º 465.º), e bem assim na versão inicial do CPC de 1961 (art.º 456.º), apenas se sancionava a litigância dolosa ou maliciosa, excluindo-se a litigância temerária. A razão dessa restrição consta no relatório do Ministro da Justiça, apresentado à Comissão Revisora do projeto que deu origem ao CPC de 1939:

“A simples proposição de acção ou contestação, embora sem fundamento, não constitui dolo, porque a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar as consciências mais honestas a afirmar um direito que não possuem e a impugnar uma obrigação que devessem cumprir; é preciso que o autor faça um pedido a que conscientemente sabe não ter direito, e que o réu contradiga uma obrigação que conscientemente sabe que deve cumprir” (citado por Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, volume II, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 263).

O dolo poderia ser substancial, isto é, reportar-se ao conhecimento da inexistência do direito invocado (quanto ao autor) ou na falta de razão na sua contestação (quanto ao réu), bem assim na alteração consciente da verdade dos factos; ou instrumental, isto é, consistir na utilização consciente e reprovável do processo ou dos meios processuais (cfr., v.g., António Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso de Direito e Culpa “In Agendo”, 3.ª edição aumentada e atualizada, à luz do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2014, p. 58).

Fazia-se sentir, no CPC de 1939 e no CPC de 1961, a visão liberal do processo como campo de ação das partes, em que estas litigavam naturalmente norteadas pelos seus próprios interesses, sendo compreensível e aceitável que o fizessem mesmo temerariamente, isto é, ainda que desprovidas de razão - desde que, mal ou bem, disso não estivessem convencidas.

Considerava-se que a realidade do processo era diferente da extrajudicial, tolerando-se comportamentos grosseiramente negligentes que, à luz dos princípios do direito substantivo, levariam à responsabilização do seu autor.

A reforma de 1995/1996 do CPC, depois transcrita no CPC de 2013, alargou a responsabilização por litigância de má-fé aos comportamentos gravemente negligentes, e adicionou, à tipificação dos comportamentos como tal ilícitos, a referência à “omissão grave do dever de cooperação”.

Nas suas lições de 1978-79, Direito Processual Civil, I volume, o Prof. Castro Mendes reputava “não realista a ideia do processo como instituição, colaboração de esforços para o fim a todos comum”, pp. 102 e 103, nota 1.

Atualmente, a cooperação entre as partes e o tribunal é apresentada como princípio fundamental do processo civil, como tal introduzido no CPC de 1961 pela reforma de 1995/1996 (art.º 266.º) e evidenciado no CPC de 2013 (artigos 7.º e 8.º). De tal modo que a violação grave do dever da cooperação (entendido como a cooperação entre os magistrados, os mandatários judiciais e as partes, em ordem a obter-se, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio” – art.º 7.º n.º 1 do CPC – fim esse que deve pautar a conduta processual das partes, à luz do dever de boa-fé processual – art.º 8.º do CPC) pode acarretar a punição da parte não cooperante como litigante de má-fé (art.º 542.º n.º 2 al. c) do CPC).

Desde 1939 assistiu-se, pois, ao aumento do nível ético do padrão de comportamento processual exigido e aceite quanto às partes, que se traduz nas apontadas alterações ao regime de litigância de má-fé (Paula Costa e Silva, obra citada, v.g., p. 693).

A apelante, para se subtrair à responsabilização que lhe foi imposta pelo tribunal a quo, alegou que faltava, no caso, o requisito da causalidade adequada. Segundo a apelante, não pode considerar-se como efeito normal, típico, previsível da notificação por carta simples com prova de depósito que o notificando não receba a carta. Isso é tanto assim, diz a apelante, que a própria lei admite que, se falhar a notificação por carta registada com aviso de receção, se proceda à notificação por carta simples, com depósito na respetiva caixa do correio.
Vejamos.

A aplicação de multa por litigância de má-fé visa punir um comportamento que se tem por contrário ao direito, por ser contrário aos fins do processo e da Justiça. Conforme nota Alberto dos Reis (obra citada, p. 269) a aplicação da respetiva sanção visa, como é próprio de toda a pena, punir o delito cometido (função repressiva) e evitar que o mesmo ou outros o pratiquem no futuro (função preventiva).

A censurabilidade da conduta processual consubstanciadora da litigância de má-fé não pressupõe ou exige que esse comportamento cause um dano (vide, v.g., Paula Costa e Silva, obra citada, pp. 375, 452, 691). O facto de o autor mentiroso ter sido desmascarado e, consequentemente, ter perdido a ação, não o exime da responsabilização como litigante de má-fé.

Também o facto eventual de a requerida, indevidamente notificada por depósito de carta simples, ainda assim apresentar oposição, não isenta da qualificação como litigante de má-fé o requerente que tenha culposamente estado na origem dessa forma (para o caso) ilegal de notificação.

A perspetiva do nexo de causalidade releva, porém, na atribuição de indemnização à contraparte. A indemnização prevista no art.º 542.º do CPC tem natureza civil, ressarcitória (Paula Costa e Silva, obra citada, v.g. p. 524 e 692), e exige, tal como a que decorre do art.º 483.º do Código Civil, um nexo de causalidade entre a conduta imputada ao agente e o dano sofrido pela parte lesada.

Nos termos do disposto no art.º 563.º do Código Civil, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. Quis consagrar-se aqui a teoria da causalidade adequada, segundo a qual, para impor a alguém a obrigação de reparar o dano sofrido por outrem, não basta que o facto praticado pelo agente tenha sido, no caso concreto, condição (sine qua non) do dano; é necessário ainda que, em abstrato e em geral, o facto seja uma causa adequada do dano (Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, Almedina, 8ª edição, páginas 905 e 915). Na formulação que se reputa mais criteriosa (formulação negativa, de Enneccerus-Lehmann) quando a lesão proceda de facto ilícito, o facto não deve considerar-se causa (adequada) apenas daqueles danos que constituem uma consequência normal, típica, provável, dele. Deve considerar-se causa adequada mesmo daqueles danos para cuja ocorrência também concorreu caso fortuito ou conduta de terceiro. Só não será assim quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excecionais, que tanto poderiam sobrevir ao facto ilícito como a um outro facto lícito (A. Varela, obra citada, páginas 909 e 910, 917; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12.ª edição, 2013, Almedina, pág. 764; José Alberto González, Direito da Responsabilidade Civil, Quid Juris, 2017, pp. 214-221; STJ, 20.10.2005, processo n.º 05B2286, consultável em www.dgsi.pt; STJ, 08.10.2014, processo 4028/10.4TTLSB.L1.S1, consultável em Coletânea de Jurisprudência on line, referência 5506/2014, e também CJ STJ, n.º 259, tomo III, 2014).

Isto exposto, é evidente que a utilização da notificação/citação por carta postal simples fora das situações que a lei prevê cria, em termos normais e previsíveis, o risco de o seu destinatário não tomar conhecimento da carta, ou não tomar atempadamente. Daí a nulidade dessa notificação, nos termos acima expostos. [...]

Dúvidas não há, assim, que no caso dos autos ocorreu nexo de causalidade entre a conduta da requerente/apelante e os danos consubstanciados nas penhoras, na necessidade de constituição de advogado, de dedução de oposição à execução, da prestação de caução.

O apelante invoca ainda dois acórdãos das Relações, incidentes sobre situações idênticas à destes autos, em que o requerente da injunção não foi condenado como litigante de má-fé, não se tendo sequer o tribunal pronunciado sobre tal, apesar de ser matéria de conhecimento oficioso.

Constata-se que a alegação, em procedimentos de injunção, da existência de falsas convenções de domicílio, é frequente, a aquilatar pelo significativo número de decisões jurisprudenciais publicadas que incidem sobre essa temática. Vejam-se, por exemplo, os acórdãos da Rel. de Lisboa, 13.3.2008, processo 2071/2008-6; Rel. de Lisboa, 17.9.2009, processo 1999/05.6TBCSC-B.L1-6; Rel. de Coimbra, 29.5.2012, processo 927/09.4TBCNT-A.L1; Rel. de Lisboa, 13.9.2012, processo 276/11.8TBPDL-A.L1-8; Rel. de Lisboa, 16.5.2013, processo 2537/10.4TBCSC-A-6; Rel. de Coimbra, de 10.5.2016, processo 580/14.3T8GRD-A.C1; Rel. de Guimarães, 11.5.2017, processo 1639/14.2TBVCT.G2; Rel. de Coimbra, 14.11.2017, processo 739/15.6TOLRA.C1; Rel. de Coimbra, 28.5.2019, processo 2592/17.6T8VIS-A.C1; Rel. de Lisboa, 27.6.2019, processo 3414/15.8T8OER-A.L1-2, todos consultáveis em www.dgsi.pt.

Na grande maioria desses acórdãos não foi suscitada, sequer, a questão da litigância de má-fé por parte do requerente que havia falsamente invocado a existência de convenção de domicílio, não tendo o tribunal, seja o de 1.ª instância, seja o da Relação, se pronunciado sobre essa matéria, apesar de ser de conhecimento oficioso. [...]

Revertendo ao caso destes autos, constata-se que a apelante violou o dever de boa-fé processual (art.º 8.º do CPC), afastando-se da cooperação que lhe era exigida tendo em vista obter-se não só uma solução do litígio célere mas, também, justa, ou seja, conforme ao princípio do processo equitativo, que pressupõe o estrito cumprimento do contraditório (artigos 7.º n.º 1 e 3.º n.º 1 do CPC, 20.º n.º 4 da CRP).

A apelante alegou um facto falso (convenção de domicílio), para assim obter indevido acesso à via-rápida da notificação por carta postal simples e, com isso, lograr imediata obtenção de título executivo, a que deu sequência com a instauração de ação de execução que se concretizou pela imediata penhora de património da requerida, requerida que só após a penhora teve conhecimento (como se presume) de que fora instaurado o procedimento de injunção. Essa falsa afirmação da celebração de convenção de domicílio proporcionou à ora apelante o sucesso do requerimento de injunção, com a obtenção de título executivo, o que preenche a previsão da alínea b) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC.

Por outro lado, a requerente utilizou de forma indevida e reprovável os instrumentos processuais proporcionados pela comunidade para a efetivação dos seus alegados direitos substantivos, incorrendo na previsão das alíneas c) e d) do n.º 2 do art.º 542.º do CPC.

Justifica-se, assim, a sua condenação em multa, como litigante de má-fé, e a cumulativa condenação no ressarcimento dos prejuízos consequentemente causados à requerida (artigos 542.º n.º 1 e 543.º n.º 1 al. b) do CPC).

Assim como se justifica a comunicação à Ordem dos Advogados, nos termos do art.º 545.º do CPC.

Comportamento idêntico ao da apelante mereceu a confirmação, pela Relação de Lisboa, da condenação da exequente como litigante de má-fé, em multa e indemnização, proferida pela 1.ª instância, em acórdão proferido em 27.06.2019, processo 3414/15.8T8OER-A.L1-2, relatado pelo Exm.º ora 2.º adjunto (consultável em www.dgsi.pt)."

[MTS]


27/04/2021

Jurisprudência 2020 (198)


Prova pericial
admissibilidade; princípio inquisitório


1. O sumário de RP 26/10/2020 (258/18.9T8PNF-A.P1) é o seguinte:

I - Toda a prova a produzir, e, como tal, também a pericial, se destina a demonstrar a realidade dos factos da causa relevantes para a decisão (artº 341º do Código Civil), sendo que a demonstração que se pretende obter com a prova se traduz na convicção subjetiva a criar no julgador.

II - Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção).

III - Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal.

IV - Cabe ao tribunal pronunciar-se sobre as provas propostas e emitir, sobre elas, um juízo, não só de legalidade mas também de pertinência sobre o seu objeto: a prova de factos, controvertidos, da causa, relevantes para a decisão.

V - A prova pericial, com a especificidade de ter a mediação de uma pessoa - o Perito – para a demonstração do facto, consiste na perceção ou apreciação de factos pelo perito/s chamado a os percecionar (com os órgãos dos sentidos) e/ou a os valorar (à luz dos seus especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos), conhecimentos esses que, não fazendo parte da cultura geral e da experiência comum, se presumem não detidos pelo julgador.

VI - A perícia, para perceção e valoração de factos da causa carecidos de prova (por isso pertinente), só deveria ser indeferida se a perceção e a apreciação desses factos não reclamasse conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos especiais (caso em que seria dilatória).

VII - E o princípio do inquisitório, a operar no domínio da instrução do processo (v. art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, o dever jurídico de determinar, oficiosamente, as diligências probatórias complementares necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (sempre podendo requisitar, nomeadamente, documentos – v. nº1 e 2, do art. 436º, do CPC), independentemente, pois, de solicitação das partes.

VIII - Destarte, não se excluem, para o despoletar sugestões e, mesmo, requerimentos, da parte que, para fazer valer os seus direitos, naquelas diligências, se mostrem interessadas.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O princípio do inquisitório, apontado pelos apelantes como violado, “no seu sentido restrito”, “que é o rigoroso”, “opera no domínio da instrução do processo” tendo o juiz aí “poderes mais amplos do que no domínio da investigação dos factos, na medida em que pode determinar quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes”[José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição, Almedina, pág 207].

Tal princípio, consagrado no art. 411º, do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem todos os preceitos citados sem outra referência, abreviadamente CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, que determine, oficiosamente, diligências probatórias complementares, necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, independentemente de solicitação das partes.

Por imposição do referido princípio do inquisitório, consagrado no art. 411º e materializado em inúmeros preceitos, ao juiz incumbe “realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer”. E adianta-se, desde já, que se o pode fazer oficiosamente, nenhuma razão se vislumbra para que o não possa fazer a sugestão, ou mesmo a solicitação, de uma das partes.

Tal princípio, “porém, coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilização das partes, de modo que não poderá ser invocado para, de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.

O princípio do dispositivo funciona de um modo geral no que concerne à alegação dos factos, mas concede-se ao juiz a faculdade e, simultaneamente, o dever de, tanto quanto possível, aferir a veracidade desses factos. Continua a impender sobre as partes o ónus de indicação dos meios de prova, a observar, em regra nos articulados (arts. 552º, nº2 e 572º, al. d)), mantendo-se o normativo do art. 139º, nº3, segundo a qual o decurso de um prazo perentório extingue o direito de praticar o ato. Mas, por outro lado, o preceito faz apelo à realização de diligências que importem à justa composição do litígio, enquanto o art. 526º impõe ao juiz um verdadeiro dever jurídico que deve exercer sempre que no decurso da ação se revele a existência de testemunhas não arroladas [António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina pág. 483 e seg.].

Da conjugação dos artigos 411º e 526º, este que constitui mais uma materialização do princípio do inquisitório, resulta que o juiz deve exercitar os seus poderes inquisitórios, que são poderes vinculados (nunca discricionários), embora “preservando o necessário equilíbrio de interesses, critérios de objetividade e uma relação de equidistância e de imparcialidade” [Ibidem, pág 484 e 577], quando concluir pela necessidade ou conveniência, ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, de realização de diligências de prova suplementares às promovidas pelas partes.

Assim, a “intervenção oficiosa do juiz deve assumir uma natureza complementar relativamente ao ónus da iniciativa da prova que impende sobre cada uma das partes, não podendo servir para superar, de forma automática, falhas processuais reveladas designadamente através da omissão de apresentação do requerimento probatório em devido tempo[Ibidem, pág 577].

Basta que o juiz (por si ou alertado para isso, mesmo que por requerimento) constate, objetivamente, a necessidade de produzir um meio de prova relevante para a boa decisão da causa para que se lhe imponha o desencadear dos seus poderes-deveres de inquisitoriedade.

Na verdade, os referidos poderes-deveres do juiz decorrentes da inquisitoriedade – art. 411º - “não se limitam à prova de iniciativa oficiosa, como mostra o segmento “mesmo oficiosamente”. Ao juiz cabe também realizar ou ordenar as diligências dos procedimentos probatórios relativos aos meios de prova propostos pelas partes, na medida em que necessárias ao apuramento da verdade ou à justa composição do litígio”[José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, idem, pág. 208], bem podendo, “por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade”, requisição que pode “ser feita aos organismos oficiais, às partes ou a terceiros” – cfr. nº1 e 2, do art. 436º, bem podendo, por isso, requisitar documentos juntos numa outra ação, desde que relevantes para a decisão da causa.

A prova pericial - com regulação de direito probatório material (objeto, admissibilidade e força probatória) nos arts 388º e seg, do Código Civil, e de direito probatório formal (a regular o procedimento da prova pericial) nos arts 467º a 489º, do CPC -, modalidade de prova pessoal e indireta, na medida em que a demonstração do facto é feita através de uma pessoa, o perito, que se interpõe entre o tribunal e o objeto da perícia, consiste na perceção ou apreciação de factos, pelo que o perito ou peritos são convocados a percecionar os factos e/ou a valorá-los à luz dos seus conhecimentos técnicos, sendo que aquela operação envolve captação (com os sentidos) dos factos e a sua compreensão.

O perito surge como intermediário entre a fonte de prova e o tribunal quando, para a plena apreensão da prova, haja necessidade de conhecimentos especializados. A prova pericial pode visar a perceção indiciária de factos, a apreciação, de acordo com a regra da causalidade, dos indícios a extrair das fontes de prova (para, nomeadamente, estabelecer um nexo de causalidade)[José Lebre de Freitas, Anotação ao art. 388º, Ana Prata (Coord.), Idem, pág 475]. O perito surge como o intermediário necessário em virtude dos seus conhecimentos técnicos: apreendendo ou apreciando factos, por serem necessários conhecimentos especiais que o julgador não tem, ou por os factos, respeitando a pessoas, não deverem ser objeto de inspeção judicial (art. 388 CC), o perito intervém no processo de manifestação da fonte de prova e traduz ao juiz o resultado da sua observação ou apreciação.[José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2, 3ª Edição, Almedina, pág. 312]

A prova pericial destina-se, como qualquer outra prova, a demonstrar a realidade dos factos (artº 341º do Código Civil), sendo que essa demonstração que se pretende com a prova se traduz na convicção subjetiva, criada no espírito do julgador, de que aquele facto ocorreu. Não se trata de uma certeza absoluta acerca da realidade dos factos, que nunca seria alcançável, mas de um grau de convicção suficiente para as exigências da vida[Rita Lynce de Faria, Anotação ao artigo 341º, Idem, pág. 810]. Aquilo que a singulariza é o seu peculiar objeto: a perceção ou averiguação de factos que reclamem conhecimentos especiais que o julgador comprovadamente não domina (cfr. artº 388º, do Código Civil, que estatui que “A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.”).

A prova pericial pressupõe que: são necessários conhecimentos especiais para percecionar ou apreciar os factos, conhecimentos esses de que o juiz não dispõe; ou que os factos a demonstrar são relativos a pessoas não devendo ser objeto de inspeção judicial por estar em causa a intimidade da vida privada e familiar e a dignidade da pessoa, sendo que a prova pericial não deverá ser admitida se não forem exigidos conhecimentos que extravasem o saber do tribunal, sendo esses os conhecimentos relativos à cultura e experiência comuns. A admissibilidade da perícia não está dependente dos conhecimentos concretos do juiz em particular que julga a causa, mas dos que excedem a cultura e experiência comuns, bastando, pois, à parte que pretenda socorrer-se deste meio de prova que invoque que os factos a sujeitar a perícia extravasam essa cultura e experiência. Não será admissível a perícia quando sejam necessários conhecimentos jurídicos, pois que deles dispõe o julgador. A perícia pressupõe conhecimentos específicos, pelo que ao perito a nomear pelo Tribunal tem de ser reconhecida idoneidade e competência na matéria em causa[Rita Gouveia, Idem, pág. 882], sendo necessários conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos para compreender e poder valorar os factos a apreciar.

E uma vez realizada a perícia, o resultado da mesma é expresso em relatório, no qual o perito se pronuncia, fundamentadamente, sobre o respetivo objeto (artº 484º), questão ou questões direta ou indiretamente ligadas à matéria de facto controvertida para posterior apreciação, pelo juiz, segundo as regras da livre convicção (art. 389º, do CC e art. 607º, nº5, do CPC), que, no entanto, sofrerão uma importante restrição precisamente motivada pelo diferencial de conhecimentos técnicos.

Na verdade, a “prova pericial encontra-se sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, o qual impõe ao julgador que decida os factos em julgamento segundo a sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação da prova trazida ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e do conhecimento das pessoas, utilizando, nessa avaliação, critérios objetivos, genericamente suscetíveis de motivação e controlo” sendo que “os factos puramente descritivos que constam do relatório pericial, isto é, que não envolvam conhecimentos especializados para a sua percepção (compreensão) e/ou apreciação (valoração), não gozam de qualquer força probatória especial em relação à dos restantes meios de prova. Já os factos cuja percepção (compreensão) e/ou apreciação (valorização) reclame conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos especializados, não acessíveis ao julgador médio, apenas podem ser infirmados ou rebatidos com fundamentos da mesma natureza aos utilizados pelos peritos”[Ac RG de 4/4/2019, Proc. 536/15.9T8EPS.G1 (Relator: José Alberto Moreira Dias)].

Consagra o artigo 475º, com a epígrafe “Indicação do objeto da perícia” que, ao requerer a perícia, a parte indica logo, sob pena de rejeição, o respetivo objeto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência (nº1), podendo, ela, reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente quer aos factos alegados pela parte contrária (nº2), sendo que a determinação definitiva do objeto da perícia é feita pelo juiz, nos termos do nº2, do art. 476º.

Assim, a perícia tem por objeto as questões de facto que o requerente pretende ver esclarecidas através da diligência, contanto que se contenham no âmbito da causa de pedir e do pedido enunciados pelo Autor ou na defesa invocada pelo Réu[Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado,4ª Edição Revista e Ampliada, 2017, Ediforum, pág. 656], podendo, o objeto da perícia, apenas ser constituído por questões de facto condicionantes (porque infirmadoras ou corroboradoras dos factos que sustentam a pretensão e/ou a exceção) da decisão final de mérito segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito[António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág 539].

Como bem se analisa no Ac. RG de 26/9/2019 “1- “Factos” são os acontecimentos externos ou internos suscetíveis de serem captados pelos sentidos.

2- “Meios de prova” são os mecanismos colocados pelo legislador ao dispor das partes e do tribunal através dos quais se procura demonstrar ou não a realidade/verificação dos “factos”, isto é, trata-se dos meios legalmente fixados a que as partes e o próprio tribunal se podem socorrer para formar a convicção do julgador sobre a ocorrência ou não de acontecimentos externos ou internos captáveis pelos sentidos.

3- A prova pericial é um “meio de prova” e não um meio alegatório de factos, sequer se destina a obter outros meios de prova, designadamente, prova documental, e através dela não se podem suprir as omissões de alegação em que incorreram as partes.

4- A prova pericial tem de específico em relação aos restantes meios de prova legalmente previstos, a circunstância da perceção (verificação material) dos “factos” e/ou a apreciação destes (determinação das ilações que deles se possam tirar acerca de outros) reclamar conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos especiais, que por não fazerem parte da cultura geral e da experiência comum, se devem presumir não serem detidos pelo juiz.

5- A prova pericial, tal como os demais meios de prova legalmente previstos, apenas podem recair sobre os “factos da causa”.

6- Consideram-se “factos da causa” os factos essenciais alegados pelo autor, na petição inicial, para fundamentar a causa de pedir nela invocada para sustentar o pedido, os factos essenciais alegados pelo réu na contestação, para fundamentar as exceções que nela invocou contra o autor, os factos essenciais alegados pelo autor na réplica, audiência prévia ou no início da audiência final (arts. 584º, n.º 1 e 3º, n.º 4 do CPC) para fundamentar as contra exceções que invocou contra o réu e, bem assim os factos complementares e instrumentais dos essenciais pertinentemente alegados.

7- Quando as questões de facto colocadas pelas partes para efeitos de integrarem o objeto da perícia não versem sobre os “factos da causa”, impõe-se que o juiz indefira essas questões por impertinentes. Já quando essas questões de facto versem sobre “os factos da causa”, mas a perceção e a apreciação desses factos não reclame conhecimentos científicos, técnicos e/ou artísticos especiais, deve-se indeferir essas questões por dilatórias[ Ac. RG de 26/9/2019, Proc. 137/16.4T8CMN-A.G1 (Relator: José Alberto Moreira Dias), in dgsi]. [...]

O art. 476º, do CPC, prevê que a perícia possa ser rejeitada por impertinente ou dilatória (nº1), consagrando, também, deverem ser indeferidas, depois de ouvir a parte contrária sobre o objeto da perícia, as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes (nº2).

E, devendo o tribunal emitir sobre a perícia, como relativamente a todas as provas, um juízo, não só de legalidade, mas também de pertinência sobre o objeto: a prova dos factos que se propõe provar, fê-lo o Tribunal a quo, indeferindo a perícia por “manifestamente dilatória” e “despicienda ser perícia à letra de um documento particular junto numa outra ação).

Ora, as referidas razões não podem, validamente, fundamentar a rejeição deste meio de prova, pois que, existe um facto relevante para cuja perceção (compreensão) e/ou apreciação (valoração) se reclamam, na verdade, conhecimentos técnicos especializados, não acessíveis ao julgador médio, sendo que só o Perito, após realizar a diligência, se poderá pronunciar sobre o resultado atingido, a ser objeto de, ulterior, ponderação.

Isso mesmo resulta, na verdade, do disposto no artº 476º nº1 do CPC, que refere as situações em que o juiz deve indeferir a perícia ou questões nela suscitadas, ao estabelecer “Se entender que a diligência não é nem impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição”, acrescentando o nº 2 que “Incumbe ao juiz, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-a a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade”.

Assim, face ao estatuído no artº 476º nº1 e 2 do CPC, o juiz pode indeferir o requerimento por a diligência ser impertinente ou dilatória e indeferir questões suscitadas pelas partes por desnecessárias, inadmissíveis ou irrelevantes.

Será impertinente se não respeitar aos factos da causa e dilatória se, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (art. 388º, do CC)[José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Idem, pág. 326].

Uma diligência de prova será impertinente (devendo, por isso, ser indeferida) se não for idónea para provar o facto que com ela se pretende demonstrar, se o facto se encontrar já provado por qualquer outra forma, ou se carecer de todo de relevância para a decisão da causa[Ac. RG de 17/12/2019, processo 21/16.1T8VPC-B.G1 (Relatora: Maria João Matos), in dgsi] e, mais ainda, se nem de questão de facto se tratar mas mera questão de direito ou se a perícia não for o meio próprio para provar certo facto.

É impertinente ou dilatória a perícia que não respeita a factos condicionantes da decisão final ou que, embora a eles respeitando, o respetivo apuramento não depende de prova pericial, por não estarem em causa os conhecimentos especiais que aquela pressupõe[António Santos Arantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág 539], sendo que o que se pretende do perito é que realize uma objetiva observação técnica do objeto da perícia e relate, no relatório final apresentado, o resultado dessa observação, devendo ser dela afastadas questões jurídicas, opiniões e avaliações subjetivas, suscetíveis de influenciar a livre convicção do julgador.

Revertendo para o caso, contrariamente ao que foi decidido, a requerida perícia às assinaturas não é impertinente, pois que se prende com os factos da causa, sempre sendo relevante para a formação da convicção do julgador, nem dilatória, pois que o seu apuramento exige os conhecimentos especiais que a perícia pressupõe.

Bem concluem os Apelantes/Autores pelo seu interesse em “convocar para o processo o maior número de elementos probatórios que indiciariamente permitam concluir pela simulação dos diversos negócios impugnados, começando por levar o tribunal a perceber a razão pela qual tiveram as Rés necessidade de simularem uma ação baseada num contrato de comodato que celebraram pelos motivos que se deixaram invocados”, bem ressaltando a dificuldade de “obtenção de meios de prova que não sejam indiretos” e a “necessidade de recurso às presunções judiciais para se concluir pela simulação dos negócios com esse fundamento impugnados”.

E, na verdade, “O novo paradigma do processo civil conferiu ao julgador um maior poder inquisitório em termos de lhe permitir, através de um poder/dever de realização de diligências probatórias, requeridas por qualquer das partes ou sob seu impulso, apurar a verdade, quer quanto aos factos essenciais transpostos para os temas da prova, como quanto aos instrumentais com relevância para essa mesma descoberta, na procura da realização da justiça no caso”.

E, na verdade, dever ser admitido um meio de prova capaz de auxiliar o julgador na prova indireta da simulação dos negócios impugnados, assim como na ponderação da natureza e exercício da posse dos imóveis em discussão condutível à sua aquisição originária.

E sendo a prova pericial, sempre, de livre apreciação (cfr. art. 389º, do Código Civil e art. 607º, nº5, do CPC), juntamente com as restantes provas que forem produzidas melhor habilitará o julgador a formar a sua convicção e decidir a causa em conformidade com a verdade material, melhor alcançando a solução justa.

Assim, tendo os Autores indicado as “questões de facto” objeto da perícia (deixando a lei de lhes chamar “quesitos”) e por não ser impertinente nem dilatória, sendo de prosseguir o procedimento pericial, cumpre ouvir a parte contrária sobre o objeto proposto pelos Autores, facultando-se-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição, nos termos do nº1, do art. 476º, para, de seguida, se o juiz a quo ordenar a realização da diligência com determinação o seu objeto, nos termos do nº2, do artigo anteriormente referido (excluindo as questões de facto, propostas pelas partes que julgue inadmissíveis ou irrelevantes e acrescentando outras que considere necessárias) e considerando, nos termos do nº2, do art. 5º, além dos factos articulados pelas partes, os “factos instrumentais que resultem da instrução da causa” (al. a)) e os “factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa”, dando sobre eles às partes a possibilidade de se pronunciarem (al. b)), bem decidir a causa, dando-lhe uma justa solução, conforme a verdade material.

Procedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, ocorrendo, na verdade, violação dos normativos de direito probatório formal invocados pelos apelantes (arts. 411º, 436º e 467º e v., ainda, art. 5º), tendo, por isso, a decisão recorrida de ser revogada, para que os autos prossigam com a realização do exame pericial solicitado, não impertinente nem dilatório, e a ordenar, para auxiliar na formação da livre convicção do julgador, com vista à descoberta da verdade e à boa decisão da causa."

[MTS]


26/04/2021

Jurisprudência 2020 (197)


Decisão-surpresa;
requisitos*


1. O sumário de RP 27/10/2020 (648/18.7T8VLG.P1é o seguinte:

I - Com o preceituado no art. 3º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil [princípio do contraditório] pretende-se também impedir que, a coberto da liberdade de aplicação das regras de direito ou da oficiosidade do conhecimento de certas exceções, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão.

II - Inexiste decisão surpresa quando o tribunal, mantendo-se sempre dentro dos limites da causa de pedir invocada pelo autor na petição inicial e da matéria alegada pelo réu em sede de contestação, toma decisão baseada em entendimento que, por apoiado em normas processuais precisas e vir na sequência de anteriores decisões proferidas no processo, deveria ter sido prognosticado pelo réu.

III - O recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência, fundado em oposição de acórdãos, pressupõe sempre o trânsito em julgado do acórdão recorrido e do acórdão-fundamento.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"Os recursos interpostos têm como principal fundamento a violação por parte do Mmº Juiz “a quo” do princípio do contraditório previsto no art. 3º, nº 3 do Cód. de Proc. Civil, o que teria como consequência a nulidade da decisão proferida por força do disposto no art. 195º do mesmo diploma legal.

Com efeito, na perspectiva dos réus/recorrentes, o tribunal recorrido proferiu decisão sobre o mérito da causa sem facultar às partes a discussão da matéria de facto e de direito.

Vejamos então.

O princípio do contraditório acha-se previsto no art. 3º, nº 3 do Cód. do Proc. Civil onde se estatui que «o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito e de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.»

Assegura-se assim o tratamento paritário de ambas as partes ao longo de todo o processo, como garantia de uma decisão mais justa e imparcial e como seu corolário, cada uma das partes é regularmente chamada a deduzir as suas razões, não podendo ser decidida qualquer questão sem que o princípio do contraditório seja respeitado – cfr. Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, I volume, 2ª ed., págs. 75/6.

Por seu turno, Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 379), discorrendo sobre a mesma matéria, diz-nos que o princípio do contraditório impõe que cada uma das partes seja chamada a deduzir as suas razões – de facto e de direito – a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e resultados de umas e outras.

A regra do nº 3 do art. 3º do Cód. de Proc. Civil pretende ainda impedir que, a coberto da liberdade de aplicação das regras de direito [art. 5º, nº 3] ou da oficiosidade do conhecimento de certas exceções, as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., pág. 22.

É certo que o entendimento amplo da regra do contraditório “não limita obviamente a liberdade subsuntiva ou de qualificação jurídica dos factos pelo juiz – tarefa em que continua a não estar sujeito às alegações das partes relativas à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (…); trata-se, apenas e tão somente, de, previamente, ao exercício de tal “liberdade subsuntiva” do julgador, dever este facultar às partes a dedução das razões que considerem pertinentes, perante um possível enquadramento ou qualificação jurídica do pleito, ou uma eventual ocorrência de excepções dilatórias, com que elas não tinham razoavelmente podido contar” – cfr. Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., pág. 32.

Porém, não poderá entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela atuação do art. 3º, nº 3.

Assim, conforme afirma Lopes do Rego (ob. cit., pág. 34) “…a negligência da parte interessada que, v.g. omite quaisquer “razões de direito”, alega frouxamente, situando de forma truncada e insuficiente o óbvio enquadramento jurídico da sua pretensão ou deixa escapar questões jurídicas clara e inquestionavelmente decorrentes dos autos, não merece naturalmente tutela, em termos de obrigar o tribunal – movendo-se, no momento da decisão, dentro dos próprios institutos jurídicos em que as partes no essencial haviam situado as suas pretensões – a, sob pena de nulidade, realizar uma audição não compreendida no normal fluir da causa.”

Deste modo, não existe decisão surpresa quando o tribunal, mantendo-se dentro da causa de pedir invocada, efetue a aplicação das regras fundamentadoras dessa mesma decisão num quadro que as partes prognosticaram ou tinham o dever de prognosticar.[Cfr. Ac. STJ de 5.4.2016, proc. 1538/11.0 TBFIG.C1.S1, relator Mário Mendes, in ECLI.PT. e Ac. Rel. Coimbra de 12.9.2017, proc. 444/16.6 T8GRD.C1, relator Arlindo Oliveira, disponível in www.dgsi.pt].

Retornando ao caso dos autos, verifica-se que o Mmº Juiz “a quo” no seu despacho de 20.3.2020, proferido no âmbito da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infecção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, consignou o seguinte ao desmarcar a audiência prévia que se encontrava agendada:

“Notifique as partes para que, no prazo de 5 dias, informem se se opõem (fundadamente) a que a apreciação das questões prévias e, eventualmente, o conhecimento antecipado do mérito da causa – se o estado dos autos o permitir – tenham lugar imediatamente por escrito, com dispensa da audiência prévia – arts. 6.º e 547.º do CPC.

A elaboração dos temas da prova, se tiver lugar, poderá ser feita, propositadamente, com recurso a conceitos de direito, pois trata-se de uma mera ferramenta de orientação da instrução, e não do objeto da pronúncia de facto, não havendo vinculação temática. O objecto do litígio coincide, salvo oposição, com o enunciado do pedido.

Se as partes não se opuseram fundadamente ao conhecimento das questões pendentes imediatamente por escrito, podem no prazo de 5 dias, acrescentar às razões de direito já aduzidas nos articulados o que ainda tiverem por pertinente – considerando-se que mantêm as suas posições, se nada disserem –, bem como, desde já, aperfeiçoar os seus requerimentos probatórios.”

Ora, do teor deste despacho resulta evidente a preocupação do Mmº Juiz “a quo” no cumprimento da regra do contraditório. Dá conhecimento às partes da possibilidade do conhecimento antecipado do mérito da causa, com dispensa de audiência prévia e, não havendo oposição a tal conhecimento, permite-lhes acrescentar às razões de direito já aduzidas nos articulados o que entenderem por pertinente, considerando-se que mantém as suas posições se nada disserem.

Nem a autora nem os réus se opuseram à possibilidade de imediato conhecimento do mérito da causa, tendo os réus escrito que nada mais têm a acrescentar ou a requerer além do já alegado em sede de contestação, para onde remetem por questões de economia processual.

E quanto à questão específica da litigância de má fé importa referir que já no anterior despacho de 10.2.2020 o Mmº Juiz “a quo”, para eventual exercício do direito de se pronunciarem, havia consignado que, no caso de se verificarem posições contraditórias e incompatíveis, a conduta das partes poderia ser apreciada nos quadros do instituto da litigância de má fé.

A questão que se poderá eventualmente colocar é a de saber se a solução dada ao presente litígio em que a imediata procedência da ação passou também pela desconsideração do alegado pelos réus na sua contestação, a qual assentou na circunstância de perante a jurisdição administrativa (proc. 330/13.1 BECBR, que corre termos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, Unidade Orgânica 2) ter sido arguida a nulidade da venda da fração em causa nos autos realizada no processo de execução fiscal n.º 0760200701007815, em que era executado o ora réu, e de inexistir até ao momento trânsito em julgado de decisão que rejeitou essa nulidade, não deverá ser encarada como decisão surpresa.

Acontece que a nossa resposta terá de ser negativa.

O tribunal “a quo” na decisão proferida – de procedência de ação de reivindicação - não deixou de se mover no âmbito da causa de pedir invocada pela autora na sua petição inicial, radicando esta na aquisição da fração em processo de execução fiscal, devidamente registada na Conservatória do Registo Predial, e na permanência na fração dos réus, sem o consentimento da autora e contra a sua vontade, tudo factualidade que, sublinhe-se, foi considerada assente e não se mostra posta em causa em sede recursiva.

O não acolhimento da matéria alegada pelos réus na sua contestação era algo que estes não podiam deixar de equacionar, até porque o despacho proferido em 22.10.2019, acima transcrito[...], onde já se referia a natureza extraordinária do recurso interposto pelo ora réu em sede administrativa e se afastava a possibilidade de suspensão dos presentes autos com apoio na parte final do disposto no art. 272º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil, o deixava entrever[...].

Assim, o entendimento de que o acórdão proferido no proc. 330/13.1 BECBR pelo Tribunal Central Administrativo do Norte, que julgou improcedente o recurso da decisão que rejeitou a arguição de nulidade por parte do réu relativamente à venda ocorrida no processo de execução fiscal, se acha transitado em julgado, pese embora dele tenha sido interposto um outro recurso, este para o Pleno da Secção Tributária do Supremo Tribunal Administrativo com fundamento em oposição de acórdãos, não é suscetível de fundar decisão surpresa, porque esse entendimento apoiado em normas processuais precisas deveria ter sido prognosticado pelos réus.

Por isso, neste contexto, consideramos que ouve pleno respeito nos presentes autos pela observância do princípio do contraditório, entendendo-se como desnecessária qualquer comunicação prévia aos réus no sentido de os alertar para a possibilidade de se ter como transitado em julgado o acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo Norte no âmbito do processo nº 300/13.1 BECBR e de, por essa via, não se acolher o alegado por eles em sede de contestação.

3. [Comentário] O acórdão tem a seguinte declaração de voto:

"Não conheceria do recurso no segmento relativo à violação do princípio do contraditório, pois entendo, na esteira dos acórdãos do STJ, de 01.02.2011, proc. 6845/07.3TBMTS.P1.S1, de 14.05.2009, proc. 09B0677; de 22.09.2005, proc. 05B1488; de 13.01.2005, proc. 04B4031, em www.dgsi.pt.jstj, que a nulidade deve ser arguida perante o Tribunal que a cometeu, cabendo recurso do despacho que indeferir essa arguição."

É conhecido que não se acompanha esta orientação. O vício decorrente da omissão da audição prévia das partes tem (apenas) um nome: decisão-surpresa. 

Aliás, se houvesse nulidade processual, então não haveria decisão-surpresa. Haveria uma nulidade processual que teria como consequência a anulação dos actos subsequentes, entre os quais uma decisão posteriormente proferida. Para que se possa falar de decisão-surpresa, é necessário que haja um vício próprio da decisão, e não uma decisão não viciada que é anulada na sequência de uma nulidade anterior.

[MTS]