"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/12/2016

Sobre o arresto post sententiam



1. Nos termos do art. 619.º, n.º 1, CC, "o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor, nos termos da lei de processo". A parte final do preceito remete para o estabelecido, em matéria de  providências cautelares especificadas, nos art.391.º a 396.º CPC. O disposto no art. 391.º, n.º 1, CPC limita-se a repetir o regime substantivo: "o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor".

Do disposto no art. 619.º, n.º 1, CC e no art. 391.º, n.º 1, CPC não resulta que o arresto tem de ser requerido antes de o crédito por ele garantido se encontrar reconhecido em juízo, ou seja, não decorre que a providência provisória de arresto tem de ser confirmada pelo reconhecimento posterior do crédito garantido. Isto só resulta do disposto no art. 364.º, n.º 1, CPC (aplicável ao arresto ex vi do estabelecido nos art. 376.º, n.º 1, CPC) quanto à dependência do arresto de uma causa que tenha por fundamento o direito de crédito garantido e do estabelecido no art. 373.º, n.º 1, al. a), CPC (aplicável ao arresto por força do estatuído nos art. 376.º, n.º 1, e 395.º CPC) quanto à caducidade do arresto na hipótese de o arrestante não propor a acção relativa ao crédito garantido dentro de 30 dias contados da data da notificação da decisão que o tenha ordenado.

Sendo assim, cabe perguntar se é admissível requerer o arresto quanto a um crédito que já se encontra judicialmente reconhecido, ou seja, importa perguntar se é admissível um arresto que é dependência de um crédito já reconhecido e que não caduca pela falta da propositura de uma acção postertior.

2. A resposta à pergunta colocada nem sempre pode ser afirmativa, mas também pode ser afirmativa. Pressupondo que se verifica o fundamento geral de decretamento do arresto -- que é o justo receio de perda da garantia patrimonial (cf. art. 619.º, n.º 1, CC; art. 391.º, n.º 1, CPC) --, há que distinguir duas situações:

-- Uma delas é aquela em que o credor está em condições, porque o crédito já se encontra vencido ou vence-se com a citação para a execução, de instaurar uma execução contra o devedor;

-- Uma outra é aquela em que o credor ainda não pode instaurar, nomeadamente porque o crédito ainda não se encontra vencido, uma execução contra o devedor.

Na primeira situação, nada impede o credor de propor uma execução contra o devedor. Como o título executivo é a sentença que reconheceu o seu crédito, a execução para pagamento segue, em princípio, a forma sumária (art. 550.º, n.º 2, al. a), e 626.º, n.º 2, CPC), o que significa que o executado só é citado depois da penhora (cf. art. 856.º, n.º 1, CPC). Quer dizer: o credor tem à sua disposição um meio processual próprio para assegurar a garantia patrimonial do seu crédito, o que significa que, como não necessita do arresto para salvaguardar esse crédito, não tem interesse processual para requer o arresto de bens do devedor.

Na segunda situação, o credor não pode instaurar uma execução contra o devedor, porque, como se  sabe, a execução pressupõe a exigibilidade da obrigação exequenda (cf. art. 713.º CPC). Coloca-se então a questão de saber se o credor, que ainda não pode propor o processo executivo, pode requerer o arresto de bens do devedor para garantia do seu crédito.

3. Não se vislumbra nada que impeça um arresto post sententiam, ou seja, um arresto posterior ao reconhecimento judicial do crédito garantido. Pressupõe-se, naturalmente, que há por parte do credor um justificado receio de perda da sua garantia patrimonial. 

Este arresto não deixa de ser uma providência cautelar, quer porque continua a acautelar o efeito útil de uma acção (cf. art. 2.º, n.º 2, CPC) -- que é, in casu, o da acção na qual foi reconhecido o crédito --, quer porque fica dependente da subsistência do crédito acautelado (cf. art. 373.º, n.º 1, al. e), CPC; cf. art. 376.º, n.º 1, e 395.º CPC). 

Esta verificação não deixa de ter consequências para a caracterização e função das providências cautelares, mas não é este o momento adequado para as explorar. Agora apenas importa referir que a generalização das providências cautelares post sententiam corresponderia a uma mudança na sua referência: essas providências destinar-se-iam não tanto a assegurar o efeito útil de uma acção (como se dispõe no art. 2.º, n.º 2, CPC), mas antes a assegurar a utilidade de um direito (o que significa que se passaria de uma instrumentalidade processual para uma instrumentalidade substantiva). Este aspecto é particularmente interessante e muito apelativo sob um ponto de vista doutrinário, mas, em todo o caso, há um limite à aceitação dessas providências: elas nunca podem ser admitidas quando o títular do direito possa defender os seus interesses através da propositura de um processo executivo.

Porque continua a ser uma providência cautelar, o arresto post sententiam observa o disposto nos art. 391.º a 396.º CPC, mas apresenta duas característica específicas: 

-- A prova da existência do crédito (e não apenas a prova da probabilidade dessa existência: cf. art. 368.º, n.º 1, CPC) decorre da sentença que o reconheceu;

-- O arresto não caduca pela falta de propositura da acção declarativa para reconhecimento do crédito garantido, dado que este crédito já se encontra reconhecido; em contrapartida, o arresto caduca se a acção executiva não for proposta no prazo de dois meses a seguir ao vencimento do crédito garantido ou se, promovida a execução, o processo ficar sem andamento durante mais de 30 dias, por negligência do exequente: é o que resulta da aplicação analógica do disposto no art. 395.º CPC à situação em análise.

4. Um último apontamento: a história do arresto (quer o de origem alemã, quer o de feição italiana) mostra que o instituto preencheu no passado tanto uma função de garantia, como uma função de satisfação (cf. Planitz, Grundlagen des deutschen Arrestprozesses (1922), 70 ss. (arresto alemão) e 90 ss. (arresto italiano)). É precisamente esta função de satisfação que justifica tanto a caducidade do arresto estabelecida no art. 395.º CPC (a caducidade verifica-se quando a função de satisfação não é realizada), como a conversão do arresto em penhora estatuída no art. 762.º CPC (a conversão permite a transformação de uma função de garantia numa função de satisfação). Este regime também é comum ao arresto ante e post sententiam.

MTS