"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/01/2022

Jurisprudência 2021 (106)


Embargos do executado;
caso julgado; efeitos*


I. O sumário de RC 25/5/2021 (4886/19.7T8CBR-A.C1) é o seguinte: 

I) Os executados têm o ónus de concentrar nos embargos de executado todos os fundamentos de oposição de que se possam socorrer, substantivos e/ou adjectivos, sob pena de não mais o poderem fazer no âmbito da acção executiva e de não mais os poderem invocar em acção autónoma através da qual pretendam obter decisão com eficácia directa na acção executiva.

II) A sentença de mérito proferida nos embargos de executado faz caso julgado material quando à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda, que impede a propositura de uma nova acção de repetição do indevido fundada em idêntica causa de pedir.

III) O referido em II) impede a propositura de uma nova acção de repetição do indevidamente cobrado na acção executiva fundada em idêntica causa de pedir, mas não prejudica a possibilidade de em acção autónoma se obter tal repetição com base em fundamento não invocado nos embargos.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O novo Código de Processo Civil veio dispor, no seu artigo 732º, nº5, que “a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constituiu, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda”.

Tratando-se de um preceito novo, introduzido pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, e remetendo-nos para os “termos gerais” do caso julgado, veio por termo à querela surgida a tal respeito no domínio anterior: a decisão proferida em sede de embargos de executado tem força de caso julgado material [Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Os Artigos da Reforma, 2014, Vol. II, Almedina, p. 253].

Com a presente ação, pretendem os autores que o tribunal lhes reconheça que a quantia que têm de devolver à Ré, em consequência da anulação do contrato de compra e venda celebrado com esta, relativa ao preço e benfeitorias, seja deduzida do valor das obras necessárias à sua reposição no estado da venda, bem como do valor do proveito respeitante ao uso e fruição do imóvel, de que os autores se viram privados nestes últimos 20 anos.

A obrigação que os autores pretendem aqui ver modificada corresponde exatamente ao direito exequendo em cobrança coerciva no âmbito da execução nº 684/11.4TB8CBR-C. – que tem por título executivo a decisão proferida no âmbito da ação de anulação do contrato celebrado com a Ré – e que foi já objeto de decisão de mérito, transitada em julgado, na oposição aos embargos por si aí deduzidos.

Ou seja, com a presente ação, os autores pretendem novamente discutir a existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda que constituiu objeto da execução nº 684/11.4TB8CBR-C.

Dos princípios atrás expostos e face aos termos em que se configura o princípio da concentração da defesa no âmbito da ação executiva, retiramos que os executados têm o ónus de, por meio de oposição à execução/ embargos de executado, no prazo que para tal efeito lhes é concedido, deduzir todos os fundamentos de oposição de que se possam socorrer, quer contendam com a existência ou configuração do direito exequendo seja com alguma questão processual, sob pena de não o poderem mais fazer no âmbito da ação executiva.

Isto sem prejuízo de, posteriormente, e mediante ação autónoma, poderem vir peticionar a repetição do que indevidamente lhes possa ter sido cobrado no âmbito da ação executiva, desde que com fundamento em diferente causa de pedir, não invocada em sede de oposição à execução.

Contudo, nunca com esta ação autónoma se poderia obter o reconhecimento de uma pretensão com vista a fazer repercutir os seus efeitos na ação executiva.

Ainda que se viesse a concluir que os autores fundamentam o direito que invocam na presente ação em causa de pedir não invocada na oposição à execução e que, como tal, pudessem não se encontrar preenchidos os pressupostos do caso julgado, nunca os autores poderiam, por via da presente ação, obter o efeito por si pretendido mediante a dedução dos pedidos formulados sob os pontos 3.4., e 5., de redução da quantia exequenda aí sob cobrança mediante dedução de determinados montantes.

A entender-se que a decisão proferida na oposição à execução não produz efeitos de caso julgado (por se entender encontrar-se em causa um fundamento aí não invocado), os executados apenas poderiam peticionar a restituição do que indevidamente tivessem pago no processo executivo e/ou para pedir uma indemnização.

Isto sem prejuízo de, em ação autónoma, os autores verem reconhecido o seu direito à alegada indemnização compensatória, quer correspondente ao montante necessário à reposição do imóvel no estado em que se encontrava à data do negócio anulado, quer ao montante correspondente à privação do seu e fruição durante estes 20 anos – pedidos estes relativamente aos quais, se desligados da sua pretensão a que os respetivos montantes sejam deduzidos à obrigação exequenda nos termos em que se mostra fixada na oposição à execução, não se coloca a questão do caso julgado.

Face à decisão proferida em sede de oposição à execução, ficou indiscutido naquela execução que, relativamente às quantias em que foram condenados na ação ordinária nº 151/2002, os executados não têm direito à dedução de quaisquer outros valores para além dos que lhe foram reconhecidos em sede de oposição à execução. A execução prosseguirá, assim, até integral pagamento das quantias em dívida, nos exatos termos definidos na sentença proferida em sede oposição à execução, confirmada por Acórdão da Relação.

Quanto aos efeitos fora desse mesmo processo, aplicar-se-ão “as regras gerais”, ou seja, necessário se torna a repetição da causa, definida pela verificação simultânea da tríplice identidade – sujeitos, causa de pedir e pedido (artigo 581º, nº1, CPC).

Apesar da alegação de alguma factualidade nova, respeitante à concretização do estado do locado, ao valor das obras para reposição do imóvel no estado em que se encontrava e ao valor correspondente à privação do uso, verifica-se a identidade do efeito jurídico: os autores pretendem pôr aqui em causa a existência/montante da obrigação exequenda que constituiu o objeto da execução pendente entre as partes, precisamente com um dos fundamentos que haviam invocado na oposição à execução: de que a determinação da quantia exequenda se encontrava dependente de “relações de liquidação”, e de que às quantias peticionadas haveria que deduzir o valor da depreciação do imóvel, bem como o valor correspondente à privação do seu proveito.

E se é certo que o âmbito da presente ação não é inteiramente coincidente com o objeto da oposição à execução, socorrendo-se os autores de alguns factos novos, nomeadamente quanto à concretização do valor necessário à reposição do imóvel ao estado em que se encontrava à data do negócio anulado ou quanto ao critério de avaliação da perda do proveito do respetivo uso e fruição,

a sua pretensão de que a obrigação de restituição emergente da anulação do negócio que sobre eles impende – fixada pela sentença de anulação –, se encontraria dependente de uma liquidação (havendo que contabilizar: i) a desvalorização do imóvel – em virtude dos estragos causados no imóvel pela executada, o mesmo valer hoje não mais do que 75.000 € –, ii) bem como o direito a uma indemnização correspondente à privação do uso e fruição do imóvel),

constituíra já fundamento de oposição à execução.

Peticionando aqui o reconhecimento do seu direito à obtenção da Ré dos montantes necessários à reposição do imóvel à data da celebração do negócio anulado e a uma indemnização pela perda do proveio do imóvel, há uma “repetição da causa”, na parte, e na medida, em que pretendem que os mesmos tenham relevância na determinação do montante da quantia exequenda da referida execução, ou seja, na medida em que peticionam que os mesmos sejam deduzidos aos valores em que foram anteriormente condenados e cuja existência e configuração foram já objeto de decisão em sede de oposição à execução.

Mais uma vez, pretendem que o tribunal proceda à liquidação daquilo a que é referido no artigo 289º do CC, como “repristinação das coisas no estado anterior ao negócio”, insistindo em que, na liquidação da restituição, para além da dedução do valor dos estabelecimentos, já contabilizada na oposição à execução, seja ainda descontada a desvalorização do imóvel e o valor do proveito de que se viram privados, pretensões que estas que lhes viram aí ser negadas.

Verificando-se, relativamente a esta concreta questão, a tal tríplice identidade – de sujeitos, de causa de pedir e de pedido –, poder-se-á questionar se tal será suficiente para que a decisão de improcedência proferida relativamente a tal questão na oposição à execução – foi aí decidido não serem de ponderar as “pretensões indemnizatórias” respeitantes ao gozo do imóvel, para efeitos de alteração do montante a restituir pelos executados – impeça a formulação de igual pretensão nos presentes autos.

Poderia, de facto, levantar-se a questão de os embargos se sujeitarem à regra própria de um meio de oposição a uma pretensão de uma parte ativa: segundo o nº2 do artigo 92º do CPC as questões suscitadas como meio defesa não constituiriam caso julgado fora do processo respetivo [Como refere Castro Mendes, a invocação de uma exceção proprio sensu não altera o thema decidendum, pelo que com a invocação do seu “contradireito” o reu pretenderia apenas atacar os efeitos do direito do autor, tal como se invocasse o pagamento ou negasse a verificação ou a eficácia da causa de pedir].

Contudo, como salienta Rui Pinto [A Ação Executiva, AAFDL Editora, ps. 433], o legislador – ao consagrar expressamente no artigo 732º nº 5 que a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda – veio dar valor de caso julgado aos fundamentos de defesa atinentes à causa de pedir, em exceção às regras dos arts. 91º, nº 2 e 621º.

Segundo tal autor [“A Ação Executiva”, p. 435], embora a sentença de improcedência dos embargos (caso julgado negativo) não defina a situação jurídica controvertida de modo absoluto e excludente, se o executado vir julgados improcedentes os embargos fundados em extinção da dívida por pagamento, não se pode concluir, com força de caso julgado implícito que a divida existe; mas poder-se-á concluir que a dívida não está extinta por aquele fundamento.

A sentença de mérito proferida nos embargos forma caso julgado material que impede a propositura de uma nova ação, ação de repetição do indevido fundada em idêntica causa de pedir, impedimento que só não se mantém se for proposta ação de apreciação ou de condenação baseada em outra causa de pedir [José Lebre de Freitas, “Concentração da Defesa e Formação de caso Julgado em Embargos de Executado”, in Estudos Sobre Direito Civil e processo Civil, Coimbra Editora, p. 459].

A questão da consideração da desvalorização do imóvel e da privação do respetivo uso para efeitos de definição do valor a restituir pelos executados à exequente, constituiu fundamento de oposição à execução, e foi neles julgada improcedente, constituindo tal decisão caso julgado impeditivo da formulação de um novo pedido autónomo a tal respeito.

Tal questão ficou definitivamente decidida.

Isto, independentemente de os autores terem, ou não, direito a obter da Ré alguma indemnização compensatória pelo estado atual do imóvel a restituir ou pela privação do uso durante 22 anos – questões estas que não fizeram parte do objeto da ação de anulação cuja sentença se executou na execução 884/11.

*3. [Comentário] Salvo a devida consideração, os n.º II) e III) do sumário são contraditórios entre si. Se há "caso julgado material quando à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda", não se pode aceitar "a possibilidade de em acção autónoma se obter tal repetição [do indevido] com base em fundamento não invocado nos embargos". Pelo menos, isto significa que, afinal, a obrigação exequenda não é exigível.

Se há caso julgado sobre a existência, a validade e a exigibilidade da obrigação exequenda, então está necessariamente precludida qualquer discussão sobre essa mesma existência, validade e exigibilidade. Pense-se no paralelismo com a preclusão dos fundamentos de defesa. Se, numa acção declarativa, o negócio jurídico foi considerado válido, apesar de o réu ter invocado uma excepção peremptória, não pode mais tarde o mesmo réu invocar a invalidade do negócio com fundamento numa outra excepção.

Assim, o caso julgado sobre a existência, a validade ou a exigibilidade da obrigação exequenda preclude qualquer discussão posterior com um fundamento distinto daquele que foi discutido nos embargos de executado. É, aliás, o que resulta do afirmado no n.º I) do sumário. Ressalva-se, naturalmente, a hipótese de haver um fundamento superveniente (embora, no caso em análise, de muito difícil verificação).

MTS