"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/01/2022

Jurisprudência 2021 (107)


Processo de despejo;
despejo imediato; requisitos


1. O sumário de RL 20/5/2021 (273/20.2.T8AMD.B.L1-6) é o seguinte:

I) No incidente de despejo imediato o Requerido tem disponíveis outras opções de defesa para além do pagamento ou depósito dos montantes das rendas vencidas na pendência da causa, sem o que se incorreria em situação de violação do princípio da proibição de indefesa.

II) O incidente de despejo imediato implica que a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa pelo Requerido não sejam objecto de discussão na acção principal.

II) Todavia, a controvérsia que constitui obstáculo à procedência do incidente tem de ser uma controvérsia séria, susceptível de ser apreciada na acção principal.

III) A permissão de uma defesa que não coloque o requerido numa situação de indefesa vai de par com a necessidade de ponderar os termos desta defesa de modo a não colocar o senhorio, ao invés, numa situação de indefesa.

IV) Entre os valores da “proibição da indefesa” e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica existe uma relação de equivalência constitucional.

V) A mera invocação de que o Autor deixou de passar recibos, não é idónea a constituir uma controvérsia séria sobre a mora do inquilino quanto ao pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, não constituindo obstáculo à procedência do incidente.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. Nos termos do artigo 14.º, do NRAU, na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais, dispondo o n.º 4 que se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos e o n.º 5 que, em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato.

Estas normas dispõem sobre o incidente de despejo imediato, enxertado em acção de despejo pendente, mediante o qual é facultada ao senhorio a possibilidade de pedir o despejo quando o arrendatário incumpra a obrigação de pagar as rendas vencidas na pendência da acção.

Pretende o legislador obstar à manutenção de uma situação de ocupação do locado sem pagamento de rendas cujo prolongamento decorra da duração do processo de despejo[António Pais de Sousa in Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, Rei dos Livros, 5.ª edição, anotação 1 ao artigo 58.º, que mantém actualidade].

Esta faculdade foi prevista em diversos regimes que se sucederam no tempo, embora com alterações, sempre obedecendo à mesma razão justificativa.

3. Da literalidade do artigo 14.º, n.º 4, da Lei 6/2006, pareceria resultar que ao Requerido do incidente apenas era admissível defender-se do despejo imediato pagando ou depositando as rendas e comprovando-o nos autos.

Na longa história do incidente no nosso sistema jurídico já se entendeu, aliás, que essa era a única alternativa e que a prova aceitável era meramente documental[Cf. Miguel Teixeira de Sousa in A acção de despejo, Lex, 1991, p. 64].

Não é essa a interpretação da norma no conjunto do sistema jurídico encimado pela Constituição da República Portuguesa, como já o não era no regime do artigo 58.º do RAU e mesmo do artigo 979.º do Código de Processo Civil, segundo o entendimento maioritário da jurisprudência.

Aliás, o próprio n.º 3 do artigo 14.º, do NRAU, quando conjugado como o n.º 4, impõe se considere o regime geral de pagamento de rendas, excluindo qualquer cominatório autónomo decorrente da notificação que o n.º 4 prevê[É também o que defende Maria Olinda Garcia in Arrendamento Urbano Anotado – regime substantivo e processual (alterações introduzidas pela Lei 31/2012, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2014, p. 194].

No regime do RAU (quanto a tal similar ao actual), foi aliás tirado o acórdão 673/2005, do Tribunal Constitucional[...],  no qual se decidiu que na apreciação da questão o parâmetro constitucional mais pertinente se centra no princípio da proibição da indefesa, que decorre, em primeira linha, do princípio do contraditório, a que se deve subordinar todo o processo, uma vez iniciado, para concluir que pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.

Já na vigência do NRAU (na redacção da Lei 31/2012, de 14 de agosto) o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se sobre questão similar no acórdão 327/2018[...], em idêntico sentido, indicando aliás o sentido interpretativo da norma a seguir no processo, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC.

Lê-se no aresto:

23. Em concreto, e no que importa para os presentes autos, justificar-se-á proferir uma decisão interpretativa ao abrigo do artigo 80.º, n.º 3 da LTC, nomeadamente «nas situações em que, não obstante se conclua pela inconstitucionalidade do sentido normativo relevante para a decisão da situação sub judice, se verifique que o preceito legal em causa comporta ainda uma outra interpretação (conforme à Constituição), em razão do elemento teleológico da norma em causa e que encontre na sua formulação um mínimo de correspondência verbal (sendo, assim, verdadeira interpretação e não a criação de uma norma para o caso)» (cfr. Acórdão n.º 401/2017). (…)

25. Pelo exposto, o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, deve, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, ser interpretado em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto a outras questões, que não digam exclusivamente respeito à falta de pagamento de rendas, o réu não está impedido de exercer o contraditório mediante a utilização de outros meios de defesa.

E no dispositivo:

III – Decisão
 
Nestes termos, decide-se:
 
a) Interpretar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa.
 
b) E, em consequência, julgar procedente o presente recurso, ordenando a reforma da decisão recorrida de modo a aplicar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, com o sentido interpretativo fixado em a).

Não tendo força obrigatória geral, é padrão de decisão, nomeadamente acompanhado pela generalidade da jurisprudência dos tribunais judiciais superiores[...].

Em suma, impõe-se considerar que no presente incidente ao Requerido se devem manter disponíveis outras opções de defesa para além do pagamento ou depósito dos montantes das rendas vencidas na pendência da causa, sem o que se incorreria em situação de violação do princípio da proibição de indefesa.

O incidente implica que a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa pelo Requerido não sejam objecto de discussão na acção principal.

Temos assim como requisitos de procedência do incidente:

1) não pagamento ou depósito das rendas na sequência da notificação a que alude o artigo 14.º, n.º 4, da Lei 6/2006.
 
2) pendência de acção de despejo.
 
3) não pagamento de rendas vencidas na pendência da acção.
 
4) inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à existência e validade do arrendamento.
 
5)inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à obrigação de pagamento das rendas e à mora do devedor.

No caso, o recurso funda-se exactamente na existência de controvérsia, o que cumpre, então apreciar.

4.  O Autor fundou o pedido de despejo imediato (apresentado em 22 de Outubro de 2020) no não pagamento das rendas referentes aos meses de Fevereiro a Outubro de 2020, ambos inclusive. A acção foi instaurada em 11 de Fevereiro de 2020 e contestada em 13 de Março de 2020.

É apodíctico que não foi comprovado o pagamento ou depósito das rendas vencidas a que se refere o requerimento de despejo imediato.

Não oferece dúvida que a acção se encontra pendente, verificando-se assim os dois primeiros requisitos, o que não é controverso nos autos.

5. Fundando-se a acção principal na falta de pagamento de rendas, visto o disposto no artigo 1048.º, n.º 1, do Código Civil, deve entender-se que estão em causa as rendas vencidas após o prazo para a contestação[Por todos, o acórdão de 13 de Julho de 2017, proferido no processo 783/16.6T8ALM-A.L1.S1 (Maria da Graça Trigo)], o que exclui as vencidas nos meses de Fevereiro e Março. Mesmo assim sendo, é respeitado o lapso temporal a que alude a norma - período igual ou superior a dois meses – verificando-se o segundo requisito.

6. Nas suas alegações a Recorrente defende que não pode ser considerado assente que as partes concordam quanto à existência e validade do contrato. Adiante-se que não vemos que tenha razão.

Estriba-se a argumentação em estar em causa nos autos a cedência do locado a terceiro mediante cessão de exploração.

Nada tem esse facto a ver com o requisito que se analisa, o qual impõe tão somente que as partes na acção principal concordem em que estão vinculadas entre si por um contrato de arrendamento e que o mesmo se encontra em vigor. O que é o caso dos autos, com a Ré a assumir expressamente na contestação a existência e validade do contrato, como resulta do que supra consta no facto indicado sob 2 e 3.

Não se vê como pode considerar que está impugnada a existência ou validade do arrendamento. Verifica-se também este requisito de procedência.

7. Não foi comprovado o pagamento ou depósito das rendas vencidas, como já dissémos.

No entanto, como resulta do que se expôs antes, é ainda necessário que não exista controvérsia sobre a obrigação de pagamento das rendas ou sobre a mora do arrendatário.

Ao aceitar a existência do contrato, a Ré aceita também a obrigação de pagamento de rendas que decorre do artigo 1038.º, alínea a), do Código Civil.

Mas não basta esta aceitação do dever geral de o inquilino pagar renda, importa saber se é incontroverso que as rendas em que cuja falta de pagamento o incidente se funda eram devidas e se o arrendatário se encontra em mora quanto ao seu pagamento.

Não foi invocado qualquer acordo em sentido contrário ao indicado dever geral, mas a Ré alegou que o Autor deixou de passar recibos desde Janeiro de 2020 (cf. ponto 5 dos factos pertinentes).

Lembremos os exactos termos em que a questão é suscitada na contestação:

20. Acontece que o A deixou de passar recibos de renda desde inícios do ano de 2019. (…) 49. [A Ré apresentou uma queixa crime contra a filha do Autor] onde inclusivamente alega que a referida senhora não tem passado recibos de renda.
 
Implica esta alegação da contestação da acção principal que a mora do devedor é controversa, por deduzir a Ré a excepção de não cumprimento decorrente de mora do credor?

Nos termos do artigo 787.º, n.º 1, do Código Civil, quem cumpre uma obrigação tem o direito de exigir quitação ao credor, estatuindo o n.º 2 que pode recusar a prestação enquanto a quitação não for dada.

A questão coloca-se então em termos de apreciação da alegação e da sua virtualidade a ser considerada defesa excipiente quanto à mora.

8. Um facto é um acontecimento da vida real necessita desde logo de duas circunstâncias fundamentais para ser narrado/alegado: o tempo e o espaço.

Sendo o facto inexistente sem um outro que o precede, como é o caso, implica ainda a narrativa daqueloutro que é seu pressuposto necessário. Nada disto temos na alegação que se transcreveu, para além da referência ao mês de Janeiro de 2020.

Ou seja, não se encontra alegado o oferecimento da renda e suas circunstâncias de tempo, lugar, modo e quantidade, ou a recusa concreta de emissão de recibo que foi oposta a esse oferecimento.

Ora, apenas a alegação nesses termos era idónea a permitir considerar que se encontrava alegada a legitimidade da recusa da prestação e a inexistência de mora do devedor inquilino, com a consequência de ser esta, a mora, controversa.

Dito de outro modo, a controvérsia que constitui obstáculo à procedência do incidente tem de ser uma controvérsia séria, susceptível de ser apreciada na acção principal.

Reconhecendo-se, como demonstrámos, a enorme relevância de permitir uma defesa quanto ao incidente que não coloque o requerido numa situação de indefesa, impõe-se igualmente reconhecer a necessidade de ponderar os termos desta defesa de modo a não colocar o senhorio, ao invés, numa situação de indefesa. O que o legislador quis justamente salvaguardar com a consagração do instituto do despejo imediato.

É que importa não esquecer o que a respeito foi dito pelo Tribunal Constitucional no acordão 20/2010:

(…) da estrutura complexa que detém o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da CRP, decorrem, para o legislador ordinário, várias obrigações, para além daquela que se cifra em não lesar o princípio da “proibição da indefesa”. A lei de processo, nos termos da Constituição, não está só obrigada a garantir “um correcto funcionamento das regras do contraditório”, de modo a que “cada uma das partes [possa] deduzir as suas razões (…), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras”. Para além disso, deve o legislador ordinário conformar o processo de modo tal que através dele se possa efectivamente exercer o direito a uma solução jurídica dos conflitos, obtida em tempo razoável e com as todas as garantias de imparcialidade e independência.
 
Assim, entre os valores da “proibição da indefesa” e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica existe à partida, e como se disse no Acórdão n.º 508/2002, uma relação de equivalência constitucional: todos estes valores detêm igual relevância e todos eles são constitucionalmente protegidos. Ora, quando vinculado por vários valores constitucionais, díspares entre si pelo conteúdo mas iguais entre si pela relevância, deve o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em benefício exclusivo de outro ou de outros.
  
Concordância prática que nos coloca na perspectiva de ponderação recíproca dos direitos não prevalecentes de modo a que cada um deles obtenha o maior nível possível de satisfação.

Exigir a possibilidade de ampla dedução de defesa no incidente tem de ir a par com a exigência de que essa defesa assente numa controvérsia séria que possa ser atendida na acção principal.

Tal não pode sequer considerar-se uma restrição ao direito de defesa do Requerido por cedência ao interesse do Requerente em não ver prolongar-se uma ocupação do locado sem contrapartida. Pelo contrário, tal exigência é a expressão da seriedade da ponderação da defesa e da necessidade de não permitir ao Réu o afastamento do regime do despejo imediato mediante uma vaga impugnação do direito em que o Autor o funda. Vaga impugnação que, aliás, a lei processual civil lhe veda - artigo 574.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.  

Em conclusão, a mera invocação de que o Autor deixou de passar recibos não é idónea a constituir uma controvérsia séria sobre a mora do inquilino quanto ao pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, por não caracterizar facticamente uma situação de mora do devedor passível de ser apreciada na acção principal."

[MTS]