Factos complementares;
consideração oficiosa*
1. O sumário de RC 25/5/2021 (118/20.3T8SCD.C2) é o seguinte:
I) Os factos não alegados pelas partes, mas que representem um complemento ou concretização dos alegados, só podem ser atendidos pelo tribunal se, cumulativamente: i) resultarem da instrução da causa; ii) a parte interessada em prevalecer-se do facto o declare em 1.ª instância ou que o juiz dê conhecimento às partes de que o poderá tomar em consideração; iii) a parte a quem é oposto tal facto tiver a possibilidade de se pronunciar sobre ele, para o admitir ou impugnar e, no caso de o impugnar, para opor contraprova destinada a torná-lo duvidoso.
II) Apesar de existir uma probabilidade séria de o requerente do procedimento cautelar comum ser titular do direito que invoca e de se mostrar suficientemente fundado o receio da sua lesão, a providência requerida pode ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.
III) O prejuízo a ponderar na decisão de recusa da providência tem de ser futuro, isto é, terá de ocorrer do decretamento da providência e por causa do decretamento.
IV) Além disso, só releva o prejuízo patrimonial ou não patrimonial que atinge a esfera jurídica daquele contra quem é requerida a providência, sendo irrelevante aquele que atinja quem não é parte no procedimento.
V) Finalmente, é necessário que o prejuízo resultante da providência exceda em muito o dano que se quer evitar, razão pela qual a providência não será de recusar quando os factos não permitam afirmar o referido excesso.
VI) A alteração de forma e substância de um prédio causada pela exploração de uma pedreira que se pretende evitar representa um dano claramente superior ao prejuízo consistente no não recebimento de rendas que o arrendamento desse prédio poderia proporcionar e que, no máximo, atingem, num período de sete anos, um valor de 16 mil euros.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"III) Excesso de pronúncia da sentença
A recorrente I… acusa, em segundo lugar, a decisão recorrida de ter incorrido em excesso de pronúncia por ter conhecido da matéria que julgou provado sob o ponto n.º 25, uma vez que tal matéria não foi alegada pelo requerente da providência e não era de conhecimento oficioso. A matéria em causa é a seguinte:
“Do parecer técnico junto aos autos a fls. 277-280, que aqui se dá por reproduzido consta além do mais o seguinte:
i. O valor do m2 do prédio identificado em 6.1, é de 3,82 euros;
ii. O prédio aludido em 6.1., com a área de extracção referida em 23.i., com a vida útil de 4 anos e os produtos a comercializar identificados em 23.iii, tem: 1) antes de iniciar a exploração, o valor de € 117 427,00; 2) após terminar a exploração o valor de € 6 148,00”.
Esta matéria remete para o documento junto aos autos sob a designação de parecer técnico e também para o que foi alegado no artigo 8.º da resposta do requerente à oposição da requerida M….
Apreciação do tribunal
Pelas razões a seguir expostas, é de julgar improcedente a arguição de nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
A sentença é nula por excesso de pronúncia quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC). O excesso de pronúncia previsto neste preceito está directamente relacionado com o dever de o juiz não se ocupar das questões não suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento delas [2.ª parte do n.º 1 do artigo 608.º do CPC].
À semelhança do que se disse a propósito da omissão de pronúncia, questões, para efeitos de excesso de pronúncia, são, no essencial, as pretensões e os meios de defesa deduzidas pelas partes. E, assim, o que constitui a causa de nulidade prevista pela 2.ª parte da alínea d) do n.º 1 do artigo 618.º é a pronúncia do tribunal sobre tais pretensões ou meios de defesa.
Fora do âmbito do preceito está a pronúncia indevida sobre um facto. Nesta hipótese, a decisão não é nula; a decisão incorre em erro de julgamento. Socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis, em comentário ao artigo 668.º do CPC de 1939 [correspondente ao artigo 615.º do CPC em vigor], a propósito do excesso de pronúncia “… mesmo quando o juiz tome conhecimento de factos de que não podia servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (…), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do artigo 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão” [Código de Processo Civil anotado, volume V, Coimbra Editora, Limitada, páginas 144 e 145].
Se, na realidade, a matéria em causa não podia ser tomada em consideração pelo juiz na decisão e se o foi, o vício em que incorre a decisão é o da ilegalidade. E será nesta sede que a questão será apreciada.
Apreciando a questão sob o ponto de vista da legalidade, cabe dizer que estava vedado ao tribunal tomar em consideração tal facto. Vejamos.
A resposta à questão de saber que factos é que o juiz pode tomar em conta na decisão é dada pelo artigo 5.º, n.ºs 1 e 2. Para o caso interessam-se os números 1 e 2, alínea b). As restantes alíneas do n.º 2 do artigo 5.º não interessam para o caso. Com efeito, elas dizem respeito aos factos instrumentais que resultam da instrução da causa e aos factos notórios e àqueles que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções e o facto em causa não cabe em nenhuma destas categorias.
Resulta do artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea b), que o tribunal pode tomar em consideração na decisão os seguintes factos:
1. Os factos alegados pelas partes;
2. Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
Como resulta do acima exposto, embora o facto tenha sido alegado pelo requerente, foi alegado num momento processual em que tal lhe não era consentido. Deste modo, estava vedado ao tribunal a quo servir-se dele como facto alegado pela parte.
Como lhe estava vedado servir-se dele como facto resultante de um documento junto aos autos.
Vejamos.
Embora o tribunal possa tomar em consideração factos, cuja fonte sejam meios de prova que tenham sido produzidos no processo, a alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC faz depender essa tomada em consideração das seguintes condições:
1. É necessário que tais factos sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado;
2. É necessário que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre eles. Esta possibilidade pressupõe, primeiro, que o juiz da causa ou uma partes, manifeste a intenção de servir desse facto e em segundo lugar que a parte contrária àquela que se queira prevalecer tenha oportunidade de o impugnar ou reconhecer e de, impugnando-o, oferecer prova destinada a torna-lo duvidoso.
No caso, falece logo a primeira condição. Com efeito, a Meritíssima juíza do tribunal a quo não deu a conhecer às partes, antes de proferir a decisão, a intenção de tomar em consideração tal facto ao abrigo da alínea b) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC.
Segue-se do exposto, que estava vedado ao tribunal servir-se de tal facto na decisão. Ao fazê-lo, a sentença recorrida violou o artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea b) do CPC.
Esta decisão prejudica o conhecimento da impugnação da decisão de julgar provado o ponto n.º 25, deduzida pela ora recorrente."
*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, o iter decisório do acórdão é muito pouco claro. A recorrente afirma que o tribunal a quo não podia ter considerado o facto complementar ou concretizador e a prova documental junta aos autos, por aquele não ter sido alegado no momento oportuno e por esta não ter sido apresentada no momento adequado. No entanto, perante esta alegação, a RC responde que a decisão recorrida não podia ter considerado o facto e a sua prova, porque o tribunal a quo não observou o disposto no art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC.
Crê-se que esta resposta se baseia num equívoco. A RC pressupõe que a consideração do facto complementar ou concretizador pelo tribunal exige que a parte manifeste a intenção de se servir desse facto. A verdade é que, ao contrário do que se dispunha no art. 264.º, n.º 3, CPC/61, a redacção actual do art. 5.º, n.º 2, al. b), CPC não exige esse requisito.
Portanto, de acordo com o direito vigente, a única coisa que a RC deveria ter apreciado era se a alegação do facto e a sua prova tinham ocorrido no momento adequado. Tudo o mais é irrelevante.
MTS