"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/01/2022

Jurisprudência 2021 (112)


Filhos maiores; alimentos;
legitimidade processual; substituição processual


1. O sumário de RP 11/5/2021 (108/17.3T8VCD-G.P2) é o seguinte:

O progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos, tem legitimidade para exigir judicialmente ao outro progenitor o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação desses filhos, nos mesmos termos em que o podia fazer para os filhos menores. Isto é, exigindo-lhe o pagamento de uma nova prestação alimentar, a alteração da prestação já fixada ou a cobrança coerciva de qualquer delas. E isso, nos dois primeiros casos, quer a título cautelar, quer definitivo.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Trata-se [...] de saber se a Apelante, ao contrário do que se concluiu na decisão recorrida, tem legitimidade para a presente demanda; ou seja, para vir a juízo pedir que o Apelado contribua, a título provisório e também definitivo, para os alimentos da filha de ambos. Isto, partindo do princípio que a mesma já é maior de idade e alegadamente ainda não completou a sua formação profissional.

Vejamos então.

Sobre o direito a alimentos nessas circunstâncias, dispõe o artigo 1880.º, do Código Civil, que, se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação alimentar decorrente do vínculo da filiação[...], “na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete”.

O artigo 1905.º do mesmo Código, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 122/2015, de 01 de Setembro, veio esclarecer o alcance deste preceito. E estipulou: “Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência”.

Trata-se, como é maioritariamente entendido, de uma norma interpretativa que veio fixar o sentido do preceituado no artigo 1880.º do Código Civil[Neste sentido, Ac. RP de 16/6/2016, processo n.º 422/03.5TMMTS-E.P1, Ac. RLx de 14/06/2016, Processo n.º 6954/16.8T8LSB.L1-7, Ac. RC de 15/11/2016, Processo n.º 962/14.0TBLRA.C1, consultáveis em www.dgsi.pt]. E esse sentido é, no essencial, que a obrigação alimentar dos pais para com os filhos maiores se mantém ininterruptamente, tal como no período da menoridade dos filhos, até que estes completem 25 anos de idade, “salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência”.

Sabida a controvérsia anterior sobre a questão de saber se a pensão de alimentos fixada de pais para filhos se extinguia, ou não, com a maioridade destes[...], este é um passo importante. A partir da entrada em vigor da Lei n.º 122/2015, deixou de haver qualquer margem para defender que o direito a alimentos decorrente dos laços da filiação se extingue, por caducidade, com a maioridade. Pelo contrário, mantém-se nos termos sobreditos, devendo, ao invés do que antes sucedia, ser o devedor de alimentos a alegar e provar que o processo de educação ou formação profissional do seu filho/credor foi concluído, livremente interrompido ou ainda que é irrazoável a prestação que lhe está a ser exigida.

Até lá, tudo se mantém inalterado, do ponto de vista jurídico.

E percebe-se que assim seja. Na verdade, reconstituindo o elemento histórico (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), verifica-se que esta alteração legislativa foi motivada, justamente, pela perceção de que o anterior regime de exercício das responsabilidades parentais penalizava “de forma desproporcionada as mulheres que são mães de filhos ou filhas maiores e que estão divorciadas ou separadas dos respetivos pais”.

Como se assinalou na proposta de lei (Projeto de Lei 975/XII)[...], “[é] hoje comum que, mesmo depois de perfazerem 18 anos, os filhos continuem a residir em casa do progenitor com quem viveram toda a sua infância e adolescência e que, na esmagadora maioria dos casos, é a mãe.

Tem vindo a verificar-se, com especial incidência, que a obrigação de alimentos aos filhos menores cessa, na prática, com a sua maioridade e que cabe a estes, para obviar a tal, intentar contra o pai uma ação especial.

Esse procedimento especial deve provar que não foi ainda completada a educação e formação profissional e que é razoável exigir o cumprimento daquela obrigação pelo tempo normalmente requerido para que essa formação se complete.

Como os filhos residem com as mães, de facto são elas que assumem os encargos do sustento e da formação requerida.

A experiência demonstra uma realidade à qual não podemos virar as costas: o temor fundado dos filhos maiores, sobretudo quando ocorreu ou ocorre violência doméstica, leva a que estes não intentem a ação de alimentos.

Mesmo quando o fazem, a decretação dos processos implica, por força da demora da justiça, a privação do direito à educação e à formação profissional.

Há, também, por consequência do descrito, uma desigualdade evidente entre filhos de pais casados ou unidos de facto e os filhos de casais divorciados ou separados”.

Por isso, “[a] alteração legislativa proposta vai ao encontro da solução acolhida em França, confrontada, exatamente, com a mesma situação, salvaguardando no âmbito do regime do acordo dos pais relativo a alimentos em caso de divórcio, separação ou anulação do casamento, a situação dos filhos maiores ou emancipados que continuam a prosseguir os seus estudos e formação profissional e, por outro lado, conferindo legitimidade processual ativa ao progenitor a quem cabe o encargo de pagar as principais despesas de filho maior para promover judicialmente a partilha dessas mesmas despesas com o outro progenitor”.

Nesse contexto, após a referida Lei n.º 122/2015, o artigo 989.º do Código de Processo Civil, passou a dispor o seguinte:

“1- Quando surja a necessidade de se providenciar sobre alimentos a filhos maiores ou emancipados, nos termos dos artigos 1880.º e 1905.º do Código Civil, segue-se, com as necessárias adaptações, o regime previsto para os menores.
2- Tendo havido decisão sobre alimentos a menores ou estando a correr o respetivo processo, a maioridade ou a emancipação não impedem que o mesmo se conclua e que os incidentes de alteração ou de cessação dos alimentos corram por apenso.
3- O progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos pode exigir ao outro progenitor o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação dos filhos, nos termos dos números anteriores.
4- O juiz pode decidir, ou os pais acordarem, que essa contribuição é entregue, no todo ou em parte, aos filhos maiores ou emancipados”.

Não tem sido pacífica a interpretação deste preceito. Seja, por exemplo, quanto ao procedimento a seguir em cada uma das situações[...], seja quanto à legitimidade para o desencadear e/ou com ele prosseguir.

Para o caso presente, interessa-nos este último aspeto. E particularmente aquele que diz respeito à legitimidade do progenitor que tem a seu cargo o filho maior e que pretende obter do outro progenitor, por via judicial, a comparticipação nas despesas inerentes ao prosseguimento de estudos ou formação.

A lei, como vimos, assegura-lhe a legitimidade processual para o fazer. Mas, não tem sido pacifico na doutrina e jurisprudência, saber a que título. Isto é, se enquanto representante legal do filho maior, como seu substituto, ou no exercício de um direito próprio.

Pois bem, a primeira das hipóteses é, a nosso ver, completamente destituída de sentido. A partir da maioridade, o filho adquire a plena capacidade de exercício de direitos, ou seja, de reger a sua pessoa e dispor dos seus bens (artigo 130.º, do Código Civil) e, portanto, não faz sentido falar de representação legal neste contexto. Por outras palavras, não carece o filho, em razão da idade, da intervenção dos seus pais para exercitar os seus próprios direitos e, se a ela houver lugar, estamos no domínio da representação voluntária e não legal, devendo a legitimidade ser sempre aferida em relação ao representado, isto é, ao filho, e não ao representante, o progenitor, seja ele qual for. Daí que a legitimidade de que fala lei, na descrita norma, não se possa reportar a esta hipótese.

Por outro lado, também não temos por certo que fosse intenção do legislador atribuir ao progenitor que tem a seu cargo o filho maior, “um direito novo e distinto – já não um sucedâneo – do direito a alimentos devidos a filho maior ou emancipado”[Como se defendeu, por exemplo, no Ac. RE de 13/07/2017, Processo n.º 1362/16.3T8PTG.E1, consultável em www.dgsi.pt e parece defender-se também no voto de vencido lavrado no Ac. RLx de 17/12/2020, Processo n.º 373/14.8TMPDL-B.L1-2, consultável no mesmo endereço eletrónico].

Com efeito, como já vimos, o propósito expresso na proposta de lei já referenciada, foi o de conferir a esse progenitor “legitimidade processual”. Não, portanto, outro direito, ainda que – admitimos – a redação da lei se preste a alguns equívocos; mas que, diante da referida motivação e sabendo nós que a epígrafe do artigo 989.º do CPC alude apenas a “alimentos a filhos maiores ou emancipados” e não a outros direitos, não podem ser resolvidos em sentido contrário. Aliás, se fosse outro direito, mal se perceberia que tivesse sido consagrado num compêndio legal de direito adjetivo e sem lhe assinalar outras referências quanto à sua natureza e conteúdo. Nomeadamente, quanto ao modo de o dimensionar, pois que sempre seria instrumental em relação a um outro direito, esse sim, de alimentos devidos ao filho maior.

Tendo presente este contexto e o propósito expresso pelo legislador, tendemos, pois, a considerar que se trata de uma hipótese de legitimidade indireta, em que o progenitor que tem a seu cargo o filho maior nas referidas circunstâncias, tem um interesse próprio na tutela processual de um direito alheio, ou seja, o direito a alimentos desse filho[...].

E, vista deste ângulo, essa legitimidade permite-lhe não só prosseguir, no confronto com o outro progenitor, na ação destinada à fixação da pensão iniciada durante a menoridade, como intentar outra ação com a mesma finalidade ou recorrer aos procedimentos necessários à efetivação do direito anteriormente reconhecido sobre alimentos aos filhos maiores que ainda não concluíram a sua formação profissional[...].

Não há razões para qualquer distinção; que, de resto, a lei também não faz. Como dela resulta (artigo 989.º, n.º 3, do CPC), o progenitor que assume a título principal o encargo de pagar as despesas dos filhos maiores que não podem sustentar-se a si mesmos, pode exigir ao outro progenitor o pagamento de uma contribuição para o sustento e educação dos filhos, “nos termos dos números anteriores”. Isto é, segundo o regime previsto para os menores, o que pode traduzir-se no estabelecimento de uma nova prestação alimental, na alteração da prestação já fixada ou na cobrança coerciva de qualquer delas[...]. Em qualquer das hipóteses, assiste-lhe legitimidade para o efeito; se bem que, atualmente, a doutrina e jurisprudência, tendam a considerar que o direito assim conferido é de carácter subsidiário em relação ao filho maior titular dos alimentos[...].

Ora, na situação em apreço, não havendo, como não há, notícia de que a filha da Apelante já se tenha proposto exercer judicialmente o seu direito a alimentos contra o seu pai, aquela, isto é, a Apelante pode fazê-lo por sua iniciativa; seja pedindo a fixação de uma nova prestação alimentar a título definitivo, seja, como reclama também, a título cautelar. Dispõe de legitimidade, como vimos, para ambos os pedidos.

E, assim, porque o despacho recorrido decidiu em sentido contrário, esse despacho só pode ser revogado, procedendo na íntegra o presente recurso.

[MTS]