"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/01/2022

Jurisprudência 2021 (119)


Procedimento cautelar;
facto complementar; convite ao aperfeiçoamento


1. O sumário de RG 27/5/2021 (1106/21.8T8BRG.G1) é o seguinte:

I- Tanto a gravidade da lesão como a sua difícil reparabilidade são aferidas pela respetiva repercussão na esfera jurídica do requerente do procedimento cautelar.

II- Tendo sido alegados factos concretizadores da lesão e do montante dos danos, apenas faltando factos relativos ao reflexo na esfera patrimonial do requerente, de modo a permitir apreciar da sua alegada difícil reparação, não é possível concluir logo pela não verificação do requisito do periculum in mora.

III- A manifesta improcedência a que se referem os artigos 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, do CPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre os quais figura a falta da causa de pedir, a qual não se confunde com uma causa de pedir deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta.

IV- No caso de serem suscetíveis de sanação, a existência de deficiências no requerimento inicial não implica rejeição liminar, caso em que o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como resulta do preceituado no nº 4 do aludido artigo 590º.

V- Uma deficiência suscetível de ser corrigida ou suprimida através de intervenção da parte na sequência de despacho de aperfeiçoamento não constitui motivo legal para o indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na manifesta improcedência.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O indeferimento liminar do procedimento cautelar só é admissível nas situações previstas no artigo 590º, nº 1, do CPC (conjugado com o artigo 226º, nº 4, alínea b), do mesmo diploma), isto é, quando «o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente».

Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 674), «os casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios substanciais ou formais de tal forma graves que permitem antever, logo nessa fase, a improcedência inequívoca da pretensão apresentada pelo autor ou a verificação evidente de exceções dilatórias insupríveis, incluindo a ineptidão da petição».

Acrescentam os referidos autores que «mesmo quando, na intervenção liminar, o juiz se deparar com falhas de inferior gravidade, não está afastada a possibilidade de proferir despacho de aperfeiçoamento». Referem ainda que nas «situações em que se verifique imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência de algum articulado, o juiz profere o despacho de convite ao aperfeiçoamento (…). O convite ao aperfeiçoamento procura completar o que é insuficiente ou corrigir o que é impreciso, na certeza de que a causa de pedir existe (na petição) e é perceptível (inteligível); apenas sucede que não foram alegados todos os elementos fácticos que a integram, ou foram-no em termos pouco precisos. Daí o convite ao aperfeiçoamento, destinado a completar ou a corrigir um quadro fáctico já traçado nos autos» (Ob. cit., pág. 679). [...]

No despacho recorrido considerou-se preenchido o primeiro pressuposto necessário ao decretamento das providências requeridas, mas não o segundo.

Portanto, no âmbito deste recurso, atenta a impugnação daquela decisão, importa apreciar se o quadro factual alegado torna fundado o receio de que a Requerida cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito da Requerente. [...]

[...] tanto a gravidade da lesão como a sua difícil reparação são aferidas pela sua repercussão na esfera jurídica do requerente do procedimento cautelar.

Como se afirma no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.11.2020, proferido no processo 7692/20.2T8LSB-A.L1-7, relatado por José Capacete, «a providência cautelar comum, ao pressupor designadamente que haja fundado receio de que outrem antes de proferida a definitiva decisão de mérito cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito ameaçado, implica, estando tão só em causa lesões que gerem meros prejuízos materiais, que o grau de dificuldade deva ser encontrado entre o montante desses prejuízos e a possibilidade do seu ressarcimento.

Verifica-se tal requisito (o fundado receio de lesão grave e de difícil reparação), caso estejam em causa danos de avultado montante».

Na decisão recorrida começa-se por referir que o tempo relativo ao decurso de uma acção declarativa não é susceptível de pôr «em risco a efetividade do direito da requerente à nulidade e/ou à redução ou conversão dos contratos de compra e venda celebrados com a requerida».

Porém, a lesão invocada pela Requerente respeita a danos de natureza patrimonial, em especial os que decorrem da circunstância de estar impedida de circular com os cinco veículos adquiridos à Requerida.

Nessa parte, argumenta-se que os factos alegados «não são claramente suficientes para concluir pelo carácter grave das lesões aparentemente sofridas pela requerente, sendo certo que esta omitiu por completo qualquer alusão à dificuldade de reparação de tais danos».

Quanto a este argumento, verifica-se que a Requerente alegou nos artigos 92º, 93º, 101º, 102º, 103º e 193º o prejuízo concreto que está a sofrer mensalmente, pois afirma que suporta, descriminando todos os pagamentos feitos entretanto, «uma média mensal de € 4.465,47 (artigos 92º, 93º, 101º, 102º e 103º) a título de custos com o aluguer de viaturas que lhe permitam suprir a proibição de circular com as viaturas que a requerida vendeu, e apenas para o transporte de trinta trabalhadores». Além disso, alega que, com o aludido recurso ao aluguer de viaturas, ainda se verifica uma situação deficitária, «pois só permite o transporte, de uma só vez, de 30 (trinta) trabalhadores, com as consequências já alegadas nos artigos 107º a 110º» - v. art. 194º.

Portanto, o alegado prejuízo seguramente não é insignificante ou de pouca monta.

Quanto à difícil reparabilidade da lesão, que, segundo o alegado, tem carácter de continuidade e é previsível que prolongue no futuro face ao alegado, não se pode ignorar que estão alegados os concretos prejuízos que a situação causa à Requerente, que tem de suportar os custos com o aluguer de outras viaturas e os transtornos operacionais gerados. Se suporta tais custos, a lesão tem repercussões na sua esfera jurídica, pelo que apenas faltam os factos que permitiriam avaliar a respectiva dimensão relativa, o que é decisivo para apurar da alegada difícil reparabilidade da lesão.

Partindo de tal constatação, mesmo que se admita que os factos relativos à lesão carecem de ser complementados ou desenvolvidos, quanto à dimensão do reflexo patrimonial face à situação económica da empresa, isso sempre podia ser viabilizado mediante a formulação de convite ao aperfeiçoamento. Tal convite ao aperfeiçoamento da petição permitiria à Requerente alegar novos factos que melhor explicitem os já invocados, mormente, para a afirmação do requisito que se considerou insuficientemente plasmado.

Concorde-se ou não, foi intenção do legislador estabelecer no nosso ordenamento jurídico positivo uma acentuação dos poderes do juiz de direcção do processo (...), que encontra expressão no artigo 590º, nºs 2 a 4, do CPC, o que conduz a que a existência de deficiências da petição não implica rejeição liminar, pois, se as deficiências forem susceptíveis de sanação, o juiz deverá convidar as partes a supri-las, como resulta do preceituado no nº 4 do aludido artigo 590º.

Dito de uma forma mais incisiva: se a deficiência for susceptível de sanação através de aperfeiçoamento, o requerimento inicial não pode ser liminarmente indeferido. Por isso, perante uma concreta deficiência, o essencial não está em saber as consequências da manutenção da deficiência, mas sim se esta é ou não susceptível de sanação. Se o for, deve ser proferido despacho de aperfeiçoamento.

A manifesta improcedência a que se referem os artigos 226º, nº 4, al. b), e 590º, nº 1, do CPC, consubstancia uma situação de evidente falta de pressupostos de facto ou de direito indispensáveis ao exercício do direito, entre eles a falta da causa de pedir, não uma causa de pedir que seja apenas deficiente, imperfeitamente delineada ou incompleta, por isso aperfeiçoável, sendo evidente naquele código a adopção de mecanismos demonstrativos de séria preocupação com a realização da justiça material e concreta. [...]

Daqui decorre que qualquer deficiência, independentemente da sua gravidade e relevância, se for susceptível de ser corrigida ou suprimida através de intervenção da parte na sequência de despacho de aperfeiçoamento, obsta a que o juiz considere que essa falta conduz ao indeferimento liminar do requerimento inicial com fundamento na manifesta improcedência.

Alinhando por esse mesmo diapasão, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ([Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina], pág. 26) circunscrevem as hipóteses de indeferimento liminar do requerimento inicial de um procedimento cautelar a quatro casos: «por manifesta inexistência do direito, manifesta impossibilidade de a situação receada causar lesão do direito, manifesta inadequação da providência pretendida para afastar a ameaça, não podendo ter aplicação a 1ª parte do art. 376-3, ou a ocorrência de falta de pressuposto insuscetível de sanação».

Nenhum dessas situações se verifica no requerimento inicial da Requerente: as duas últimas hipóteses não ocorrem nem foram invocadas na decisão recorrida, não é caso de manifesta inexistência do direito, pois deu-se por adquirido que foi feita prova sumária do mesmo, e não é impossível a situação receada causar lesão ao direito, na medida em que a Requerente alegou os concretos prejuízos que a actuação da Requerida lhe causou, causa e causará no futuro.

No caso dos autos a causa de pedir está suficientemente exposta na petição (não só a causa de pedir existe como é perceptível) e apenas carecem de explicitação os factos relativos ao periculum in mora, circunscritos à questão da difícil reparabilidade da lesão (reparação dos prejuízos decorrentes dos concretos actos alegados no requerimento inicial), que é a pedra de toque de qualquer procedimento cautelar (...), e justifica a possibilidade de recorrer logo ao procedimento ao invés de intentar a inerente acção declarativa. Mesmo numa situação em que não são alegados todos os factos que compõem a causa de pedir, desde que esta exista e seja perceptível, é admissível o aperfeiçoamento, carreando o demandante para os autos todos os elementos fácticos que a integram. Por isso, parece-nos que uma tal deficiência dificilmente constitui fundamento ou justificação para o indeferimento liminar do requerimento inicial, pois não é evidente, face aos poderes actualmente concedidos ao juiz, que o prosseguimento do processo não seja susceptível de conduzir a qualquer resultado, independentemente de qualquer consideração sobre o mérito da pretensão ou da dificuldade da prova dos factos em que se alicerça."

[MTS]