"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/01/2022

Jurisprudência 2021 (110)


Impugnação pauliana;
título executivo


1. O sumário de STJ 13/5/2021 (2215/16.0T8OER-A.L1.S3) é o seguinte:

I. Segundo o n.º 5 do artigo 10.º do CPC, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determina o fim e os limites da ação executiva.” Estes limites respeitam quer ao objeto da obrigação exequenda quer aos respetivos sujeitos nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 53.º do CPC.

II. Por sua vez, dos títulos executivos taxativamente previstos no atual artigo 703.º, n.º 1, correspondente ao anterior artigo 46.º do CPC destacam-se a sentença condenatória, compreendendo a de condenação implícita, e os títulos negociais, mormente os documentos particulares não autenticados assinados pelo devedor previstos na alínea c) do n.º 1 dos indicados normativos, em que se incluem os títulos de crédito, ainda que com valor de meros quirógrafos.

III. A execução pode ser promovida pelo credor contra o terceiro adquirente do bem que se pretende penhorar, quando a aquisição do mesmo por este tenha sido objeto de ação de impugnação pauliana julgada procedente nos termos conjugados dos artigos 616.º, n.º 1, 818.º, 2.ª parte, do CC e 735.º, n.º 2, do CPC.

IV. A ação de impugnação pauliana tem como pressuposto essencial, além de outros, o reconhecimento do crédito do impugnante, pelo que tal reconhecimento conferido pela sentença ali proferida delimitará necessariamente o âmbito ou alcance objetivo e subjetivo desse crédito, posto que só assim se poderão estabelecer os parâmetros da dupla ineficácia do ato impugnado, mormente em vista da restituição do bem alienado ou da sua execução no património do terceiro adquirente nos termos do artigo 616.º, n.º 1, do CC.

V. Nessa medida, pode afirmar-se que com esse reconhecimento ficarão traçados os limites objetivos e subjetivos do crédito exequendo a observar na execução a promover pelo credor contra o terceiro adquirente.

VI. Assim, a exequibilidade da sentença proferida em ação de impugnação pauliana, para efeitos de instauração da execução contra o terceiro adquirente, deverá ser aferida em função do que ali for dado como provado e concretamente reconhecido relativamente ao crédito em causa e ao modo como o mesmo se encontra titulado.

VII. Quando da sentença proferida em sede de ação de impugnação pauliana resulte não só o reconhecimento do crédito do exequente sobre o devedor, mas também que esse crédito consta de uma livrança, a qual constitui, por sua vez, título executivo nos termos do artigo 46.º, n.º 1, alínea c), e do atual artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC, essa sentença conterá então os requisitos de exequibilidade necessários à determinação dos limites objetivos e subjetivos da pretensão executiva a deduzir contra o terceiro adquirente do bem a penhorar no respetivo património, nos termos conjugados dos artigos 616.º, n.º 1, e 818.º, 2.ª parte. do CC e dos artigos 10.º, n.º 5, e 735.º, n.º 2, do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é sabido, nos termos do n.º 5 do artigo 10.º do CPC, “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determina o fim e os limites da ação executiva.” Estes limites tanto respeitam ao objeto da obrigação exequenda como aos respetivos sujeitos como decorre do disposto no artigo 53.º, n.º 1, do CPC.

Por sua vez, os títulos executivos encontram-se taxativamente previstos no atual artigo 703.º, n.º 1, correspondente ao anterior artigo 46.º, n.º 1, do CPC, com destaque, no que aqui interessa, para a sentença condenatória, compreendendo a de condenação implícita, e para os títulos negociais, mormente os documentos particulares não autenticados assinados pelo devedor previstos na alínea c) do n.º 1 dos indicados normativos, em que se incluem os títulos de crédito, ainda que com valor de meros quirógrafos.

Todavia, a execução pode ser promovida pelo credor contra o terceiro adquirente do bem que se pretenda penhorar, quando a aquisição do mesmo por este tenha sido objeto de impugnação pauliana julgada procedente, nos termos conjugados dos artigos 616.º, n.º 1, 818.º, 2.ª parte, do CC e 735.º, n.º 2, do CPC.

Ora a impugnação pauliana prevista e regulada nos artigos 610.º a 618.º do CC consiste num meio judicial através do qual é facultada ao credor a obtenção da declaração da ineficácia de negócio jurídico celebrado entre devedor e um terceiro, envolvendo a diminuição da garantia patrimonial daquele credor.

Nos termos conjugados dos artigos 616.º e 818.º, 2.ª parte, do CC, julgada procedente a impugnação, ao credor impugnante assiste o direito à restituição do bem alienado, na medida do seu interesse, podendo executá-lo no património do próprio adquirente.

Em termos gerais, a ação pauliana traduz-se numa ação constitutivo-modificativa, posto que tem por fim operar a ineficácia, duplamente relativa, do negócio impugnado, mais precisamente quanto ao credor impugnante e na medida do que se mostre necessário à satisfação do seu crédito.

Tal espécie de ação tem como pressuposto essencial, além de outros, o reconhecimento desse crédito, cujo ónus de prova incumbe ao credor conforme se preceitua no artigo 611.º do CC. E não obsta ao exercício da impugnação pauliana o facto de o direito do credor não ser ainda exigível, tal como se estatui no artigo 614.º, n.º 1, do mesmo Código.

Obtida que seja a procedência da impugnação, o credor poderá então promover a execução contra o terceiro adquirente com vista a executar o bem objeto dessa impugnação no próprio património deste (artigos 616.º, n.º 1, do CC e 731.º, n.º 2, do CPC).

A legitimidade passiva do terceiro adquirente decorrerá, segundo uns, da aplicação analógica do disposto no n.º 2 do atual artigo 54.º, correspondente ao anterior art.º 56.º, do CPC [Nesse sentido, veja-se AMÂNCIO FERREIRA, Curso de Processo de Execução, Almedina, 13.ª Edição, 2010, p. 78, e LEBRE DE FREITAS, A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil de 2013, GESTLEGAL, 7.ª Edição, 2017, p. 148] e, segundo outros, da eficácia do caso julgado, em relação a terceiros, emergente da sentença proferida na ação pauliana, em consonância com o disposto no artigo 55.º/57.º do mesmo diploma.

Assim, tendo sido instaurada execução contra o devedor, no âmbito da qual se tenha frustrado a penhora de um bem deste por, entretanto, o mesmo ter sido alienado a terceiro, se o credor obtiver ganho de causa em sede de impugnação pauliana contra esse ato de alienação, poderá, com base na respetiva sentença, requerer a intervenção do terceiro adquirente naquela execução com vista a executar o bem no próprio património deste [Neste sentido veja-se MARCO CARVALHO GONÇALVES, Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, 2.ª Edição, 2018, p 201]. Em alternativa, poderá também instaurar execução autónoma contra o terceiro adquirente.

Neste caso, a execução contra o terceiro adquirente da sentença proferida na ação de impugnação pauliana dependerá, ainda assim, da existência de título executivo contra o próprio devedor, de que conste a exequibilidade do crédito em causa.

É certo que pode muito bem suceder que, na própria ação pauliana, tenha também sido formulado pedido e obtida a condenação do devedor no pagamento do crédito que lhe serve de base, o que não se verifica no caso presente.

Noutros casos, porém, o credor impugnante, em especial quando já disponha de um título executivo contra o devedor, limitar-se-á a alegar o seu crédito incorporado nesse título para que, desse modo, seja reconhecido como pressuposto da respetiva pretensão.

Nesta hipótese, o reconhecimento do crédito constante da sentença proferida na ação de impugnação pauliana delimitará necessariamente o âmbito ou alcance objetivo e subjetivo desse crédito, posto que só assim se poderão estabelecer os parâmetros da dupla ineficácia do ato impugnado, mormente em vista da restituição do bem alienado ou da sua execução no património do terceiro adquirente nos termos do artigo 616.º, n.º 1, do CC.

Nessa medida, poderá afirmar-se que com tal reconhecimento ficarão traçados os limites objetivos e subjetivos do crédito exequendo a observar na execução a promover pelo credor contra o terceiro.

Todavia, se a sentença proferida em ação pauliana se limitar simplesmente a reconhecer o crédito em causa sem condenar o devedor no cumprimento da respetiva obrigação e sem que o crédito conste sequer de título executivo, poderá então tornar-se pertinente a questão da exequibilidade desse crédito, a menos que se possa então considerar tal reconhecimento como condenação implícita do devedor. E, por exemplo, nos casos em que o crédito reconhecido em sede de impugnação pauliana não seja ainda exigível (art.º 614.º, n.º 1, do CC), dificilmente se poderá considerar tal reconhecimento idóneo para a respetiva execução mesmo contra o terceiro adquirente do bem a penhorar.

Neste quadro diversificado, a exequibilidade da sentença proferida em ação de impugnação pauliana, para efeitos de promover a execução contra o terceiro adquirente, não deverá ser aferida de forma categorial, genérica ou abstrata, mas sim em função do que ali for dado como provado e concretamente reconhecido relativamente ao crédito em causa e ao modo como o mesmo se encontra titulado.

Por isso mesmo, foi determinada a baixa do processo à Relação para a sobredita ampliação da matéria de facto, ao que foi dado integral cumprimento.

Ora da factualidade dada como provada nos autos consta o seguinte:

i) - O exequente intentou a ação executiva contra os executados/embargantes, apresentando como título executivo a sentença proferida a 02.03.2015, no âmbito da ação declarativa n.º 2245/11…, da … Instância Central Cível ... – J…, transitada em julgado em 24.02.2016.

ii) - Foram partes na referida ação declarativa o ora exequente, na qualidade de autor e réus os ora executados embargantes.

iii) - O exequente indicou, no requerimento executivo apresentado nos autos principais, como finalidade da execução, o “Pagamento de Quantia Certa”, tendo consignado, na exposição dos factos, que o crédito exequendo, tal como reconhecido na sentença em execução, é no valor de € 58.673,17 de capital, incorporado em livrança avalizada pelo executado BB, a tal capital, acrescendo juros legais calculados à taxa de 4% ao ano, desde 22.02.2010, até efetiva e integral liquidação.

iv) - Do dispositivo da sentença apresentada como título executivo consta o seguinte:

«Pelo exposto, julga-se a presente ação procedente e em consequência decide-se declarar INEFICAZ - relativamente ao Autor Banco BPI e na medida da satisfação do seu crédito, sem prejuízo dos direitos que assistam ao cônjuge do Io Réu - o contrato de doação supra referido no ponto 10 dos factos provados, através do qual os Réus BB e mulher AA doaram aos Réus DD, e CC, com reserva de usufruto, o prédio urbano descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ...05, freguesia ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo …..28.»

v) - O crédito do Banco Autor remonta a 13 de dezembro de 2005 (data da celebração do contrato de abertura de crédito e da prestação do aval pelo 1.º R.), ainda que o respetivo valor fosse diminuindo ao longo do tempo, ascendendo actualmente a, pelo menos, € 59.589,31.

E na fundamentação da sentença exequenda, com base na factualidade dada como provada, foi consignado o seguinte:

«No caso em apreço, ficou demonstrada a existência do crédito do Autor relativamente ao 1º Réu, resultante da celebração de um contrato de abertura de crédito entre o autor e a Sociedade de Urbanização e Construção Quinta Nova, Lda., em 13 de Dezembro de 2005, no qual o 1º Réu interveio em representação desta sociedade, mas também como avalista, ou seja, a título pessoal, a fim de garantir o cumprimento das obrigações assumidas pela dita sociedade (cfr. factualidade supra referida em 2 a 6). (…)

De resto, o crédito em causa já foi alvo de acção executiva que se encontra pendente e onde não foram penhorados bens.»

Em face disto, não sofre dúvida que, na sentença exequenda se encontra reconhecido o crédito do Banco exequente contra o devedor BB, titulada pela livrança em referência, no valor de € 58.673,17, por este avalizada, como consta dos pontos 1.7 e 1.8 dos factos acima descritos.

Ou seja, da sentença exequenda resulta não só o reconhecimento do crédito do exequente sobre o referido devedor, mas também que esse crédito consta da mencionada livrança, a qual constitui, por sua vez, título executivo nos termos do anterior artigo 46.º, n.º 1, alínea c), e do atual artigo 703.º, n.º 1 alínea c), do CPC.

Nessa conformidade, a exequibilidade da referida sentença proferida na ação de impugnação pauliana aqui dada à execução, quanto ao crédito ali reconhecido, embora não resulte diretamente do dispositivo dessa sentença, decorre claramente do contexto da respetiva fundamentação não só no respeitante à existência do crédito mas sobretudo a atestação da sua incorporação na livrança em referência, a qual, por sua vez, constitui título executivo nos termos seja do anterior artigo 46.º, n.º 1, alínea a), seja do atual artigo 703.º, n.º 1, alínea c), do CPC. Dir-se-á tratar-se de uma “exequibilidade da sentença por referência” ao título de crédito para que nela se remete.

Nessas exatas circunstâncias, o crédito exequendo encontra-se perfeitamente definido no seu objeto e quanto aos respetivos sujeitos em termos de se poder determinar os limites da pretensão executiva exigidos pelo n.º 5 do artigo 10.º do CPC, nomeadamente para os efeitos da execução do bem a penhorar no património do terceiro adquirente, de harmonia com o disposto nos artigos 616.º, n.º 1, e 818.º, 2.ª parte, do CC e do artigo 735.º, n.º 2, do CPC.

Em suma, no caso presente, afiguram-se reunidas as condições necessárias, em sede de exequibilidade da sentença dada à execução, para que o Banco exequente, com base nela, promova a execução contra os terceiros adquirentes CC (3.º executado-embargante) e DD (4.ª executada-embargante) da nua propriedade do bem que aquele exequente pretende que seja penhorada e vendida, em decorrência da procedência da ação de impugnação pauliana."

[MTS]