"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/01/2022

Jurisprudência 2021 (102)


Registo; impugnação; 
legitimidade; MP

1. O sumário de RG 29/4/2021 (7074/18.6T8BRG.G1) é o seguinte:

I- Só a estrita impugnação do ato de registo e, por via disso, a eventual afetação da fé pública que enforma os correspondentes atos (e que visa a salvaguarda da segurança jurídica inerente à fé pública que os registos oficiais devem inspirar) poderá explicar a atribuição de legitimidade ao Ministério Público para propor uma ação judicial de declaração de nulidade do registo, tal como taxativamente prevista nos artigos 16.º-B, n.º 3, e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial.

II- Nestes casos, o pedido só pode visar a declaração de uma nulidade de um ato de registo, assente por isso nas concretas causas objetivas legalmente enunciadas e determinativas do vício registal, pelo que a ação correspondente configura uma ação de “registo”.

III- Ao interesse público traduzido na fidedignidade do registo importa apenas que sejam expurgados os vícios do registo após o que permanecerá como titular inscrito o que resultar do último registo válido, só nesta medida resultando reflexamente protegido o interesse particular daquele que aproveita do facto registado.

IV- Perante a invocação do direito de propriedade exclusiva sobre um concreto veículo automóvel, e estando em causa pedido expresso de declaração ou de reconhecimento da existência de um direito a favor de quem não é parte no processo, nem está regularmente representado no mesmo, conforme configuração dada à ação pelo autor, importa reconhecer que o objeto da ação não se insere no âmbito direto da prossecução de interesses coletivos ou genericamente tutelados pelo direito, antes implicando o exercício de direito dependente de legitimação singular pelo correspondente titular.

V- Daí que face aos termos e aos pedidos concretamente enunciados pelo autor na petição inicial se deva concluir que o Ministério Público atua fora das suas atribuições, carecendo efetivamente de legitimidade processual para demandar os réus nos presentes autos.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O recorrente, nas respetivas alegações, expressa a sua discordância quanto ao despacho saneador proferido nos autos em referência, na parte em que apreciou oficiosamente a exceção de ilegitimidade ativa, julgando-o parte ilegítima com a consequente absolvição dos réus da instância.

O despacho recorrido, na parte que entendemos relevante para o objeto da presente apelação, tem o seguinte teor:

«(…) No caso em apreço, há, ainda, de ter presente a circunstância de estar em causa ação instaurada pelo Ministério Público, cumprindo aferir se o foi no âmbito das suas atribuições e competências ou não.

Importa, neste âmbito, ter presente o Estatuto do Ministério Público, Lei 47/86, de 15 de Outubro.

De acordo com o artigo 3º da Lei 47/86, de 15 de Outubro, compete ao MP “1 - Compete, especialmente, ao Ministério Público: a) Representar o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta; b) Participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania; c) Exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade; d) Exercer o patrocínio oficioso dos trabalhadores e suas famílias na defesa dos seus direitos de carácter social; e) Assumir, nos casos previstos na lei, a defesa de interesses coletivos e difusos; f) Defender a independência dos tribunais, na área das suas atribuições, e velar para que a função jurisdicional se exerça em conformidade com a Constituição e as leis; g) Promover a execução das decisões dos tribunais para que tenha legitimidade; h) Dirigir a investigação criminal, ainda quando realizada por outras entidades; i) Promover e realizar ações de prevenção criminal; j) Fiscalizar a constitucionalidade dos atos normativos; l) Intervir nos processos de falência e de insolvência e em todos os que envolvam interesse público; m) Exercer funções consultivas, nos termos desta lei; n) Fiscalizar a atividade processual dos órgãos de polícia criminal; o) Recorrer sempre que a decisão seja efeito de conluio das partes no sentido de fraudar a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa; p) Exercer as demais funções conferidas por lei. 2 - A competência referida na alínea f) do número anterior inclui a obrigatoriedade de recurso nos casos e termos da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional. 3 - No exercício das suas funções, o Ministério Público é coadjuvado por funcionários de justiça e por órgãos de polícia criminal e dispõe de serviços de assessoria e de consultadoria.”

Dir-se-á que, de acordo com os esclarecimentos prestados a atuação do Ministério Público se inscreve na alínea e) do n.º 1 do artigo 3º do EMP, contudo, se é certo que parte da alegação (causa de pedir) autoriza tal leitura, não o faz o petitório formulado, que é estritamente privado e mais se inscreve na defesa da propriedade dos alegados atuais detentores do trator descrito em 1º da PI, sendo os demais pedidos decorrentes do primeiro 3 e com ele conexionados, acrescentando-se que mesmo da leitura da causa de pedir ressalta que as nulidades apontadas aos registos cujo cancelamento é peticionado decorrem da alegada falta de título para o registo.

Mais a mais, em momento algum o MP alega que os alegados atuais detentores são incapazes ou estão ausentes.

Seja, os pedidos não permitem enquadrar a atuação do MP em nenhuma das alíneas do artigo 3º, n.º1 do EMP e a verdade é que o Tribunal está limitado pelo pedido e só no âmbito do pedido pode conhecer (cfr. artigos 3º, n.º1 e 609º, n.º1 do CPC), não podendo a interpretação dos pedidos formulados abstrair-se do sentido dos mesmos para os interpretar de forma que não tem um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento ainda que imperfeitamente expresso (cfr. 236º e 238º do CC).

Como tal, cumpre concluir, face à configuração dada à ação e, particularmente, aos pedidos formulados, que o MP atua fora das suas atribuições e competências, carecendo, pois, de legitimidade processual para demandar os réus nestes autos e até de interesse processual para tal, o que determina a absolvição dos réus da instância – cfr. artigos 576º, n.º2, 577º, al. e), 578º, todos os CPC».

Como se sabe, a lei procede à classificação das exceções entre dilatórias e perentórias (artigo 576.º, n.º 1 do CPC), estabelecendo que as primeiras obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal (n.º 2 do citado preceito), enquanto as exceções perentórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (artigo 576.º, n.º 3 do CPC).

Ora, a legitimidade das partes, incluindo em todas as situações em que se considere que existe preterição de litisconsórcio necessário ativo ou passivo, configura um pressuposto processual que a lei classifica expressamente como exceção dilatória, de conhecimento oficioso, e cuja verificação dá lugar à absolvição do réu da instância, sem prejuízo dos casos em que tal exceção é sanável, nos termos conjugados dos artigos 30.º, 33.º, 261.º, 576.º, nºs 1 e 2, 577.º, al. e), todos do CPC.

Deste modo, no direito substantivo o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo, ao passo que como pressuposto processual (geral), ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjetivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão ou pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o (...).

Assim, a questão da legitimidade tem que ser apreciada e decidida à luz do que dispõe o artigo 30.º do CPC, que reporta a legitimidade do autor ao interesse direto em demandar (n.º 1 do referido preceito), o qual, por sua vez, se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação (n.º 2 do referido preceito).

Tal como resulta da redação do n.º 3 do artigo 30.º do CPC, o legislador consagrou o critério da determinação da legitimidade em função da titularidade da relação material controvertida com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial, ao dispor que «Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».

Deste modo, «[a] partir da introdução de um preceito com a redação do actual n.º 3, ficou claro que tal pressuposto processual é identificado em função da relação jurídica configurada pelo autor. Assim, avaliado tal pressuposto por um critério formal, o autor é parte legítima se, atenta a relação jurídica que invoca, surgir nela como sujeito suscetível de beneficiar directamente do efeito jurídico pretendido; já o réu terá legitimidade passiva se for diretamente prejudicado com a procedência da ação. A exigência de um “interesse” emergente da pronúncia judicial, reconduz-nos a um interesse direto e indica que é irrelevante para o efeito um mero interesse indireto, reflexo ou mediato, ou ainda um interesse diletante ou de ordem moral ou académica» (Cf. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pg. 59). [...]

Porém, a par do critério residual em que assenta a legitimidade direta, pautado pela titularidade da relação controvertida tal como esta é configurada pelo autor, hipóteses há em que o próprio legislador indica quais os titulares do direito de ação ou de defesa, tal como decorre do segmento inicial do n.º 3 do artigo 30.º do CPC. [...]

No caso em apreciação vem invocada pelo autor a legitimidade da intervenção do Ministério Público para propor ações que tenham por objeto a validade do registo, atribuição que decorre da natureza pública do sistema registal português, que visa, primeiro que tudo, “a tutela dos interesses de terceiros indeterminados e do público e reflexamente o interesse privado daquele que aproveita do facto registado”. Para o efeito, alude o autor aos artigos 16.º-B, n.º 3 e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial, aplicáveis ao registo automóvel por força do disposto no artigo 29.º, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12-02 ( «Registo Automóvel»), preceitos que conferem expressamente ao Ministério Público a legitimidade para propor «ação judicial de declaração de nulidade do registo (…) logo que tome conhecimento do vício».

Conclui que a autenticidade dos registos oficiais e a defesa da fé pública que os mesmos devem inspirar em todos os seus elementos é do interesse do Estado. A falsidade do registo constitui uma lesão desse interesse do Estado pelo que não podem subsistir dúvidas sobre a legitimidade da intervenção do Ministério Público para propor uma ação judicial de declaração de nulidade do registo automóvel, inserida que se encontra nas competências oficiosas que lhe são conferidas pelos aludidos preceitos.

Analisada a decisão recorrida temos por evidente que o Tribunal a quo não deixou de ponderar o interesse em que se baseia o autor para instaurar a presente ação, aferindo da existência do interesse relevante que justifica a legitimidade ativa à luz dos preceitos legais antes citados - de resto, oportunamente invocados em sede de petição inicial.

Nesta medida, e tal como decorre da fundamentação vertida na decisão em referência, o Tribunal a quo não deixou de ponderar que de acordo com os esclarecimentos prestados pelo autor/Ministério Público a respetiva intervenção no processo inscreve-se na alínea e) do n.º 1 do artigo 3.º do Estatuto do Ministério Público (...) e que parte da alegação (causa de pedir) autoriza tal leitura.

Porém, o Tribunal a quo ponderou a configuração dada pelo autor à ação e entendeu que estava limitado pelo pedido e só no âmbito do pedido podia conhecer.

Deste modo, reportando-se expressamente à análise do petitório formulado, concluiu que os pedidos não permitem enquadrar a atuação do Ministério Público em nenhuma das alíneas do citado preceito do correspondente Estatuto, inscrevendo-se antes a primeira pretensão formulada na defesa da propriedade dos alegados atuais detentores do trator descrito em 1.º da petição inicial, sendo os demais pedidos decorrentes do primeiro e com ele conexionados.

Em consequência, considerou a decisão recorrida que o Ministério Público atua na presente ação fora das suas atribuições, carecendo de legitimidade processual para demandar os réus nos presentes autos.

Nas alegações da apelação, o recorrente/Ministério Público não discute que os pedidos atinentes à declaração de nulidade dos registos feitos a coberto das apresentações: - n.º 4 de 13-05-1986 - registo de propriedade a favor de D. D.; - n.º 12 de 07-10-1996 - registo de propriedade a favor de A. L.; - apresentação n.º 2645, de 27-07-2006 - registo de propriedade a favor de M. C. e de cancelamento das referidas transcrições sejam dependência do pedido formulado na al. a) do petitório: que se declare que C. S. é o legítimo proprietário do veículo da marca SAME, com a matrícula EV, quadro ... e motor ..., que adquiriu a X - Sociedade ... de Máquinas Agrícolas, Lda., e cuja propriedade se encontra registada a seu favor na Conservatória do Registo Automóvel pela apresentação n.º 9 de 03-06-1978.

Ainda que o recorrente admita ter estruturado e configurado a presente lide como uma ação destinada à declaração de nulidade do ato de registo, e ao seu consequente cancelamento, alega que a declaração de falsidade do registo depende da prévia declaração de que, à data do registo feito a coberto da apresentação n.º 4 de 13-05-1986, o legitimo proprietário do veículo com a matrícula EV (que tinha o quadro n.º ... e motor n.º ...) era o citado C. S. e não, como se fez constar falsamente do registo, D. D. que o adquirira a J. J.. Em suma, sustenta que a declaração de falsidade do registo depende desse pressuposto.

Neste contexto, julgamos pertinentes, em primeiro lugar, os fundamentos invocados pelos intervenientes/habilitados, M. J. e M. L. - no âmbito da resposta apresentada às alegações da apelação - quando referem que a nulidade do registo automóvel, cuja legitimidade processual ativa é também atribuída ao Ministério Público, assenta em causas objetivas que resultem do processo da Conservatória.

Daí que ao interesse público traduzido na fidedignidade do registo importe apenas que sejam expurgados os vícios do registo após o que permanecerá como titular inscrito o que resultar do último registo válido.

Com efeito, o registo automóvel não tem eficácia constitutiva pois tem essencialmente por fim dar publicidade à situação jurídica dos veículos a motor, tendo em vista a segurança do comércio jurídico (...), bastando-se com a mera presunção estabelecida no artigo 7.º do Código do Registo Predial (...), ilidível nos termos do artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo.

Ora, atendendo à natureza das normas atributivas de legitimidade invocadas pelo apelante, concordamos com a alegação dos recorridos de que o pedido de declaração de um determinado particular individualizado como proprietário de determinado veículo extravasa, manifestamente, as atribuições legalmente conferidas ao recorrente Ministério Público pois não constitui pressuposto ou condição da nulidade do registo no âmbito e para os efeitos da ação judicial de declaração de nulidade do registo, tal como prevista nos artigos 16.º-B, n.º 3, e 17.º, n.º 3, do Código do Registo Predial [Aplicável à situação dos autos por força do disposto no artigo 29.º, do Dec. Lei n.º 54/75, de 12-02].

[MTS]