1. Em MTS, CPC online (2021.12), art. 299.º, 22, defende-se, contrariando uma prática jurisprudencial comum, que a alteração do valor da acção decorrente de uma circunstância superveniente -- como, por exemplo, a reconvenção ou a intervenção de um terceiro referidas no art. 299.º, n.º 1, CPC -- só se verifica depois de o tribunal da causa ter considerado admissível essa reconvenção ou essa intervenção. O mesmo vale para qualquer outra circunstância que implique uma alteração do valor da causa.
Ocorre agora que faltou referir o argumento decisivo que mostra que assim tem de ser. Esse argumento decorre da regra da Kompetenz-Kompetenz, ou seja, da regra segundo a qual compete ao tribunal da causa controlar a sua própria competência.
Suponha-se que, numa acção pendente num juízo local cível, o réu deduz um pedido reconvencional e que, através da soma do valor deste pedido ao valor do pedido do autor, esse tribunal deixa de ser competente em função do valor para apreciar aquela acção. Pergunta-se: o juízo local cível deixa, ipso facto, de ser competente para apreciar a acção e deve remeter, de imediato, o processo para o juízo central cível ou só o deve fazer depois de verificar a admissibilidade da reconvenção e, por isso, a perda da sua competência em função do valor?
A regra da Kompetenz-Kompetenz responde sem qualquer dúvida ou hesitação a esta pergunta: porque, de acordo com essa regra, cabe ao juízo local cível controlar a sua própria competência, é a esse tribunal que incumbe verificar se deixou de ser competente em consequência da dedução do pedido reconvencional, pelo que tem de competir a esse tribunal controlar a admissibilidade da reconvenção. Quer dizer: segundo a regra da Kompetenz-Kompetenz, é ao juízo local civil que cabe verificar se continua a ser competente, e não ao juízo central cível que incumbe controlar se o juízo local cível deixou de ser competente. A regra da Kompetenz-Kompetenz não deixa outra alternativa.
Cabe acrescentar que o juízo local cível e o juízo central cível são ambos tribunais de comarca, pelo que, não havendo entre eles nenhuma hierarquia judiciária, nada pode impedir que decisões de qualquer desses tribunais possam ser vinculativas para os tribunais da outra categoria. Aliás, é precisamente isso que sucede numa vulgar situação de incompetência relativa do juízo local cível: se este se considerar incompetente em função do valor ou da forma do processo e remeter o processo para o juízo central cível, este tribunal fica vinculado pela decisão daquele juízo local (art. 105.º, n.º 2, CPC).
2. a) Para quem entenda que o valor da acção se encontra automaticamente alterado através da dedução da reconvenção ou da intervenção do terceiro, o réu reconvinte ou o terceiro interveniente pode invocar a "incompetência automática" do juízo local cível e este tribunal deve remeter, de imediato, o processo para o juízo central cível (art. 117.º, n.º 3, LOSJ). Salvo o devido respeito, as coisas não podem, de forma alguma, ser assim: não há nenhum automatismo nem na modificação do valor da causa, nem na incompetência do tribunal da causa, nem na aplicação do art. 117.º, n.º 3, LOSJ.
A modificação do valor não pode ser automática, porque há que apreciar se ocorre alguma das situações previstas nos art. 299.º, n.º 2, e 530.º, n.º 3, CPC, nas quais, apesar da dedução da reconvenção ou da intervenção do terceiro, o valor da causa não se altera e, portanto, o tribunal da causa não deixa de ser competente em função do valor. Não se imagina que este controlo das condições para a alteração do valor da causa possa ser realizado por outro tribunal que não aquele em que a causa se encontra pendente.
Também parece claro que não pode haver nenhuma "incompetência automática" decorrente da dedução da reconvenção ou da intervenção do terceiro. Esta incompetência tem sempre de ser apreciada pelo tribunal da causa, o que, naturalmente, pressupõe considerar a admissibilidade da reconvenção ou da intervenção. Se -- como acabou de se referir -- o tribunal da causa tem de apreciar se ocorre alguma das situações previstas nos art. 299.º, n.º 2, e 530.º, n.º 3, CPC, não se imagina que esse tribunal esteja proibido de "olhar" para a admissibilidade da reconvenção ou da intervenção. Ou será que se pretende retirar ao tribunal da causa o poder de controlar se, por hipótese, a dedução da reconvenção ou da intervenção não teve como único objectivo obter um desaforamento ilícito da acção?
Na ordem jurídica portuguesa vigora -- como, na generalidade das ordens jurídicas -- a regra da perpetuatio fori (art. 38.º LOSJ), ou seja, a regra de que a competência do tribunal da causa se fixa no momento da propositura da acção. Caberá então perguntar como se pode compatibilizar a regra da perpetuatio fori com uma alegada "incompetência automática" do tribunal da causa, ou seja, com uma incompetência que não decorre de nenhuma decisão daquele tribunal. A regra é a de que o tribunal da acção mantém a sua competência enquanto a acção estiver pendente; neste contexto legal, não é aceitável que o tribunal possa perder a sua competência de forma automática, ou seja, sem qualquer possibilidade de controlo da sua eventual incompetência.
Convém ainda não esquecer que, quando, na sequência da reconvenção ou da intervenção do terceiro, a incompetência em razão do valor do tribunal da causa seja invocada por alguma das partes, esse tribunal tem de ouvir previamente, como impõe o art. 103.º, n.º 2, CPC, a outra parte e que, quando esse tribunal pretenda conhecer oficiosamente daquela incompetência, tem mesmo, de molde a evitar uma decisão-surpresa, de ouvir ambas as partes (art. 3.º, n.º 3, CPC). Todo este regime seria inconsequente se afinal tudo se resumisse a somar o valor indicado pelo réu para o pedido reconvencional ou pelo terceiro para o incidente de intervenção com o valor inicial da acção.
Do exposto decorre que, ao contrário do que parece ser uma ideia muito difundida, o art. 117.º, n.º 3, LOSJ não é de aplicação automática. Este preceito tem um pressuposto implícito (mas indiscutível): o de que o juízo local cível se considera incompetente para apreciar a acção.
Qualquer outro entendimento leva a concluir que o réu ou um terceiro tem um verdadeiro poder potestativo de tornar o tribunal da causa incompetente em função do valor. Cabe perguntar: isto é aceitável? Sinceramente, a resposta parece ser óbvia por muitas e variadas razões, entre as quais há que incluir, como já se demonstrou, a regra da Kompetenz-Kompetenz.
b) Em suma: (i) não há nenhuma "incompetência automática" do tribunal da causa em função do valor na sequência do pedido reconvencional ou da intervenção do terceiro; a regra da Kompetenz-Kompetenz impõe que a incompetência tenha de ser apreciada e decidida por esse tribunal; (ii) por conseguinte, o disposto no art. 117.º, n.º 3, LOSJ só opera depois de o juízo local cível se considerar incompetente em função do valor.
3. Do anteriormente referido decorre que, qualquer prática que aceite que o tribunal da acção fica impedido de controlar a sua própria competência e que, na sequência de uma alteração do objecto da acção, pode ocorrer uma "incompetência automática" daquele tribunal, viola a regra da Kompetenz-Kompetenz.
MTS