"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/01/2022

Jurisprudência 2021 (113)


Excepção de litispendência;
requisitos


1. O sumário de RL 26/5/2021 (15326/19.1T8LSB.L1-4) é o seguinte:

I– Há litispendência quando, estando pendente instância para a qual foi citado o réu, surge uma nova acção entre as mesmas partes e com o mesmo objecto e na nova acção, com fundamento na mesma causa de pedir, se pede o mesmo, ou o inverso, se houver inversão das partes.

II– É patente o risco da existência de decisões antinómicas sobre o mesmo e único conflito de interesses que se verifica entre as partes, entre uma acção em que é formulado o pedido de integração do trabalhador num Banco e uma acção, anterior, em que é peticionada a declaração de inexistência do direito a tal integração, na medida em que a procedência do pedido formulado na segunda acção entra em flagrante contradição com a procedência do pedido formulado na primeira.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Enfrentemos a questão essencial que se coloca à apreciação desta instância de saber se, no caso dos autos, se verifica uma situação de litispendência entre a presente acção e a acção n.° 18925/17.2T8LSB, que corre termos na Comarca de Lisboa, Juízo de Trabalho de Lisboa – Juiz 5.

Nos termos do preceituado no artigo 580.º do Código de Processo Civil, "[a]s excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado” (n.º 1).

Traçando a directriz substancial destes institutos, o n.º 2 do mesmo preceito dispõe que “[t]anto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior", em homenagem ao princípio da certeza e segurança jurídica, próprio do Estado de Direito e consagrado no artigo 2.º da Constituição (evitando que o tribunal contradiga uma decisão anterior), bem como ao princípio da economia processual (evitando que o tribunal pratique actos inúteis ao conhecer de uma segunda acção idêntica à primeira, reproduzindo o que já foi decidido). Mas também em homenagem ao prestígio das instituições judiciárias e da função constitucional que lhes está atribuída, que seria comprometido no mais alto grau se a mesma situação concreta, uma vez definida por um órgão de soberania em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente [...].

É o artigo 581.º do Código de Processo Civil que densifica os requisitos da litispendência e do caso julgado estabelecendo no seu n.º 1 que a repetição da causa se verifica “quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir" e enunciando nos seus n.ºs 2 a 4 que:
“2 — Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 — Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 — Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.”

A decisão da 1.ª instância julgou procedente a excepção dilatória da litispendência, absolvendo o R. da instância nesta acção, com base nos seguintes fundamentos:

«[…] No presente caso, verifica-se que o autor, na petição inicial desta acção, narra factos idênticos aos que constam petição inicial do processo n.° 18925/17.2T8LSB, que corre termos na Comarca de Lisboa, Juízo de Trabalho de Lisboa – Juiz 5, e que fundamentam o pedido aí formulado pelo aqui réu em acção de simples apreciação.

Porém, em face aos pedidos formulados em ambas as acções e aos factos jurídicos invocados, tendo em conta a definição concreta do direito peticionado em ambos os processos, verifica-se que o processo n.° 18925/17.2T8LSB, que corre termos na Comarca de Lisboa, Juízo de Trabalho de Lisboa – Juiz 5, abrange integralmente os factos jurídicos que o autor invoca na presente acção relativamente à relação jurídica que invoca existir entre si e o réu.

Como consta do sumário doutrinal do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.04.1999, proferido no processo n° 99B174 (a propósito do caso julgado, mas igualmente aplicável), disponível em www.dgsi.pt, a tripla identidade da excepção da litispendência tem de ser conexionada com a regra basilar imposta pelo artigo 497°, n° 2 do C. P. Civil - finalidade de evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir decisão anterior.

Nesta conformidade, importa concluir que entre o processo n.° 18925/17.2T8LSB, que corre termos no Juiz 5 deste Juízo do Trabalho, e a presente acção, há identidade de sujeitos, de pedidos e de causa de pedir, sendo esta repetição daquela, apesar do uso de forma processual diversa e da inversão das posições activa e passiva das partes, uma vez que ambos os processos e pedidos neles formulados visam decidir o mesmo e único conflito de interesses entre as partes.

Assim, ocorre a excepção dilatória da litispendência, a qual obsta ao prosseguimento deste processo e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do disposto no art.° 576.°, n.° 2 do C. P. Civil. […]»

Nas suas alegações o recorrente admite a existência de “identidade de sujeitos” nos processos em apreço – sujeitos que ocupam alternadamente a posição de autor e réu numa e noutra acção – e, afirma, também que não se suscitam dúvidas quanto à “identidade da causa de pedir”, a qual, segundo aduz, radica em ambas as situações, na deliberação do … que determinou a transmissão do contrato de trabalho de AAA (ora Recorrente) para o BBB.[...]

Já quanto à identidade de pedidos, refuta que a mesma se verifique.

E sustenta, do mesmo modo, que não há risco de contradição ou repetição de decisão anterior por parte do tribunal.

Não podemos acompanhar esta sua perspectiva.

Com efeito, é patente, e o recorrente aceita-o quando admite a existência de identidade de causas de pedir, que em ambas as acções em cotejo se discute a mesma questão jurídica: saber se por força das medidas de resolução do …. por deliberação do Conselho de Administração do … – que, entre outras medidas, definiu as situações em que a posição contratual do … nos contratos de trabalho com os seus trabalhadores se transmitiam para o BBB. ou para o veículo de gestão de activos –, a posição contratual do trabalhador, ora recorrente, no contrato de trabalho que à data mantinha com o ….desde 1998 teria transitado para o veículo de gestão de activos (actualmente … ) ou para o Banco R., ora recorrido.

A diferença está em que na acção primeiramente intentada, declarativa de simples apreciação, o ali A., ora recorrido, peticionou se declare a “inexistência do direito do Réu a ser integrado no … ao abrigo de contrato de trabalho, por não preencher os requisitos definidos na medida de resolução para efeitos de transferência para o … ou por tal direito já se encontrar prescrito” (facto 1.) e na presente acção, intentada cerca de dois anos depois pelo ora recorrente, este peticionou a condenação do R. a “integrar o Autor no banco Réu com todos os efeitos legais reportados à data da Deliberação do banco de Portugal e em cumprimento da mesma, sem prejuízo da sua categoria profissional e antiguidade e dos direitos resultantes da aplicação do ACT do sector bancário” (facto 2.).

A individualização da acção faz-se pelas partes (autor e réu) e pelo objecto (causa de pedir e pedido).

Ao conceito de repetição da causa – que inclui a identidade de pedidos questionada na presente apelação – é indiferente que seja, ou não, a mesma a posição das partes nos primeiro e segundo processos, podendo ser autor na segunda acção o réu da primeira e vice-versa e, consequentemente, é também irrelevante que, na segunda acção, se peça o mesmo da primeira ou o inverso do que nela se pediu [Vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª Edição, Coimbra, 2018, p. 592].

Por isso, e como ensina Lebre de Freitas, haverá litispendência quando, estando pendente instância para a qual foi citado o réu, surge uma nova acção entre as mesmas partes e com o mesmo objecto e na nova acção, com fundamento na mesma causa de pedir, “se pede o mesmo ou o inverso, se houver inversão das partes” [Vide José Lebre de Freitas, in A Acção Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, Coimbra, 2013, p. 111].

Aliás, como decorre do disposto no artigo 564.º do Código de Processo Civil que rege sobre os efeitos da citação, esta, além de outros efeitos especialmente prescritos na lei, inibe o réu da primeira acção – in casu o ora recorrente que foi demandado no referido processo n.° 18925/17.2T8LSB – de propor contra o autor da mesma – in casu o ora recorrido, que a instaurou – acção destinada à apreciação da mesma questão jurídica. É o que claramente resulta da alínea c) do preceito.

Nesse sentido, um dos efeitos da citação é, precisamente, a restrição e coarctação imposta ao réu de propor contra o autor acção destinada à apreciação do mesmo objecto processual, isto é, de um pedido normalmente deduzido ao contrário.

Se o fizer, “haverá litispendência e a segunda acção não poderá prosseguir” [Vide Lebre de Freitas, in ob. singular citada p. 74. Vide também o mesmo autor com Isabel Alexandre, in ob. citada, p. 527 e, ainda no mesmo sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, p. 24] nos termos das disposições conjugadas dos artigos 580.º, n.º 1, 581.º, n.º 1 e 582.º, do Código de Processo Civil.

Analisando os termos dos pedidos formulados nas duas acções em cotejo – o da primeira acção no sentido da declaração da inexistência do direito do trabalhador ali réu, ora recorrente, a ser integrado no BBB., ora recorrido, e o desta acção no sentido de se condenar este Banco a integrar o ora recorrente –, não temos qualquer dúvida quanto à existência de identidade de pedidos, entendida esta identidade nos termos acima apontados [Vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in ob. it, p. 597, referindo expressamente, a propósito do requisito da identidade de pedidos na excepção do caso julgado, que “não pode pedir-se a condenação do réu no cumprimento da obrigação cuja existência haja sido negada em acção de simples apreciação].

Pelo que, além da incontestada identidade de partes e de causas de pedir, se mostra igualmente presente no caso sub judice a contestada identidade de pedidos, verificando-se a tripla identidade que é crucial para a afirmação da excepção dilatória em apreço nos termos do artigo 580, n.º 1 e 581.º do Código de Processo Civil.

E o mesmo deve dizer-se quando à regra basilar da litispendência consignada no artigo 580.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Com efeito, perante a configuração de ambas as acções – a primeira com vista à declaração da inexistência do direito do ora recorrente a ser integrado no BBB por não preencher os requisitos definidos na Medida de Resolução do …e a presente com vista ao reconhecimento de uma relação laboral entre as partes por força da transmissão, para o BBB, do vínculo que o A. mantinha com o … por força da mesma Medida de Resolução –, é patente que o tribunal pode ver-se, na presente acção, na contingência de contradizer a decisão final que venha a ser proferida na primeira.

Uma vez que em ambas as acções judicias se está a discutir a existência, ou não, do direito do ora recorrente de ver o seu vínculo laboral com o … transmitido para o Banco recorrido, se no âmbito do Processo n.º 18925/17.2T8LSB for proferida decisão no sentido da inexistência desse direito, é patente que qualquer decisão que venha a ser proferida nestes autos, das duas uma: ou contradiz a anterior, reconhecendo o direito nela negado, o que é inadmissível e susceptível de contrariar o valor da segurança jurídica, conduzindo a julgados contraditórios, ou a reproduz, o que por sua vez atenta contra os mais elementares comandos da economia processual. Em ambas as hipóteses se põe em causa o prestígio das instituições judiciárias, surgindo o mecanismo da litispendência como forma de responder às preocupações de natureza pública que se evidenciam em casos como o presente, quer de evitar o acto inútil (o tribunal decidir duas vezes sobre o mesmo objecto de maneira idêntica), quer de precaver a possibilidade de um órgão de soberania se contradizer sobre a mesma questão.

Segundo o Professor José Alberto do Reis [In Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, Coimbra 1950, p. 95], quando haja dúvidas sobre a identidade das acções, deve lançar-se mão do princípio segundo o qual o tribunal pode correr o risco de contradizer ou reproduzir decisão proferida na primeira acção. Se isso acontecer – tal como acontece no caso sub judice – então estaremos perante duas acções idênticas.

Concluímos pois que se verifica in casu, para além do elemento formal da litispendência (identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido), igualmente a directriz substancial consignada no artigo 580.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, traduzida no perigo de o tribunal ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior."

[MTS]