Prestação de contas;
direito à prova; nulidade processual*
1. O sumário de RC 11/5/2021 (459/20.0T8CBR.C1) é o seguinte:
I – A decisão de mérito sobre a (prévia) obrigação de prestar contas, numa ação de prestação de contas, só deve ter lugar, sem mais, após os articulados se for uma questão exclusivamente de direito.
I – A decisão de mérito sobre a (prévia) obrigação de prestar contas, numa ação de prestação de contas, só deve ter lugar, sem mais, após os articulados se for uma questão exclusivamente de direito.
II – Deve ser qualificada como prematura a decisão de, no enquadramento de pura questão de direito, declarar sem mais improcedente a pretensão do Autor que instaurou um ação de prestação de contas, quando uma decisão conscienciosa sobre tal, por se colocarem também questões de facto, estava necessariamente dependente da produção de provas (cf. art. 942º, nº3, 1ª parte, do n.C.P.Civil).
III – O direito à prova, sendo uma das dimensões em que se concretiza o direito a um processo equitativo, significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.
2. Na fundamentação do acórdão afirmou-se o seguinte:
"A consagração, no nº 4 do artigo 20º, da Constituição da Republica Portuguesa, do direito a um processo equitativo, envolve a opção por um processo justo em cada uma das suas fases, constituindo o direito fundamental à prova [Habitualmente deduzido do disposto no art. 6º, nº3, al. d), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem] uma das dimensões em que aquele se concretiza. O direito à prova emana da necessidade de se garantir ao cidadão a adequada participação no processo e de assegurar a capacidade de influenciar o conteúdo da decisão.
«O direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» [Citámos agora o acórdão do Tribunal Constitucional de 11.11.2008, relatado por Carlos Fernando Cadilha, acessível em www.pgdlisboa.pt; entendimento similar tem vindo a ser definido pela demais jurisprudência do Tribunal Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da República, II série, de, respetivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto de 1988 e 17 de Setembro de 1990).].
Nesta linha de entendimento, o direito à prova significa que as partes conflituantes, por via de ação e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, donde, as partes têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal bem como o direito à contraprova.
Haverá que constatar que, na prática, as partes têm sempre interesse em produzir provas, seja em relação aos factos que lhe são favoráveis, seja quanto à inexistência dos factos que a podem prejudicar (contraprova ou prova contrária). E se é verdade que o ónus da contraprova só surge quando o onerado com a contraprova tenha feito prova bastante (prova livre ou não plena), cabendo então à parte contrária fazer prova que crie no espírito do juiz dúvida ou incerteza acerca do facto questionado, as restrições impostas ao momento até ao qual cada uma das partes pode apresentar a sua prova/contraprova, levam a que parte não onerada com a prova de um facto não possa ficar à espera que a contraparte faça, ou não, a prova de tal facto, para aí e só então, em caso afirmativo, apresentar a sua contraprova.
Assim, já foi doutamente sustentado a este propósito que «as partes devem, pois, ter a oportunidade de demonstrar os fatos que servem de fundamento para as respetivas pretensões e defesas, sob pena de não conseguirem influenciar o órgão julgador no julgamento da causa. A noção de direito à prova aumenta as possibilidades das partes influenciarem na formação do convencimento do juiz, ampliando as suas chaces de obter uma decisão favorável aos seus interesses. Assim, as partes têm liberdade para demonstrar quaisquer factos, mesmo que não possuam o respetivo ónus da prova, desde que entendam que a sua comprovação diminuirá os seus riscos processuais» [Vide EDUARDO CAMBI, “O direito à prova no Processo Civil”, in Revista da Faculdade de Direito UFRP, v34, 2000, disponível na net – http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs/index.php/direito/article/viewFile/1836/1532].
Situação que, como visto, não ocorreu no caso vertente!
O que tudo serve para dizer que a situação carecia de ser aprofundada, tendo sido prematura a decisão de, no enquadramento de pura questão de direito, ter sido declarada sem mais improcedente a pretensão do Autor que instaurou um ação de prestação de contas, quando uma decisão conscienciosa sobre tal, por se colocarem também questões de facto, estava necessariamente dependente da produção de provas (cf. art. 942º, nº 3, 1ª parte, do n.C.P.Civil)."
*3. [Comentário] Não há nada a objectar ao decido no acórdão. Aproveita-se a ocasião para duas observações:
-- O tribunal de 1.ª instância cometeu uma nulidade processual inominada (art. 195.º, n.º 1, CPC), dado que proferiu uma decisão num momento processualmente inadequado pela falta da prévia produção da prova; a situação não deve ser confundida com a da decisão-surpresa, já que esta é uma decisão proferida no momento processualmente apropriado, mas com um conteúdo inadmissível por falta de audição prévia das partes (art. 3.º, n.º 3, CPC); a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC);
-- São frequentes os equívocos sobre a "hierarquia" do direito à prova; sobre a matéria, cf. Teixeira de Sousa, RFDUL 61 (2020-2), 41 ss.
-- O tribunal de 1.ª instância cometeu uma nulidade processual inominada (art. 195.º, n.º 1, CPC), dado que proferiu uma decisão num momento processualmente inadequado pela falta da prévia produção da prova; a situação não deve ser confundida com a da decisão-surpresa, já que esta é uma decisão proferida no momento processualmente apropriado, mas com um conteúdo inadmissível por falta de audição prévia das partes (art. 3.º, n.º 3, CPC); a decisão-surpresa é uma decisão nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC);
-- São frequentes os equívocos sobre a "hierarquia" do direito à prova; sobre a matéria, cf. Teixeira de Sousa, RFDUL 61 (2020-2), 41 ss.
MTS