Decisão arbitral;
anulação; omissão de pronúncia*
1. O sumário de RG 13/5/2021 (44/21.9YRGMR) é o seguinte:
I- A impugnação da sentença arbitral, estabelecida no artigo 46.ª da Lei de Arbitragem Voluntária, para além de outras características, tem a natureza de contencioso de anulação e não, como no processo civil, de substituição, pelo que não pode comportar qualquer norma idêntica ao artigo 662.º n.º 2 c) do Código de Processo Civil.
II- No específico contexto do processo arbitral, tem que se considerar que, excluindo as exceções referidas na segunda parte do n.º 3 do artigo 42.º da Lei de Arbitragem Voluntária, o não conhecimento na sentença arbitral de factos alegados pelas partes que, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, sejam suscetíveis de ter relevância para a decisão da causa, traduz-se numa violação do dever de a fundamentar, estabelecido na parte inicial desse n.º 3, o que, à luz do disposto na subalínea vi) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º do mesmo diploma, constitui motivo para a sua anulação.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Segundo a requerente "o Tribunal deixou de se pronunciar sobre questões essenciais para a boa decisão da causa e que eram suscetíveis de alterar a decisão" (...), pelo que, face ao disposto no artigo 46.º n.º 3 a) subalínea v) da Lei de Arbitragem Voluntária (...), esta deve ser anulada. Na sua perspetiva há uma omissão de julgamento dos factos mencionados nas conclusões 29.ª a 33.ª e 42.ª, os quais considera relevantes, por permitirem "provar a legitimidade do corte" (11).
A requerida respondeu afirmando que "os factos alegados pela Ré foram analisados e referidos na sentença, contrariamente ao alegado pela Autora. Aliás, veja-se a parte da sentença referente à forma como o Tribunal formou a sua convicção, onde, na alínea c) faz referência expressa aos documentos carreados ao processo pela aqui Autora, dizendo que "quanto ao facto n.º 1 da matéria de facto que resultou não provada pelo Doc. 5 junto com a contestação escrita da demandada "Y Distribuição" (...).
Vejamos.
Examinada a certidão do processo de arbitragem, verifica-se que no pedido de arbitragem apresentado, a 17-1-2020, pela agora requerida esta dizia que "no início de 2015 recebi um Aviso que referia como data limite de pagamento 09/01/2015, sob pena de interrupção de fornecimento de energia elétrica".
Na sua contestação a requerente alegou, para além do mais, que:
"24.º A X Eletricidade (então Y Serviço Universal) emitiu e expediu, com destino ao endereço oportunamente indicado pela Requerente para receção da correspondência, o pré-aviso regulamentar que se mostra como documento 4;25.º No qual se previa a interrupção do fornecimento, assim o pagamento não fosse efetuado, a partir de 21 de novembro de 2014;26.º Uma vez que o pagamento não foi efetuado até essa data - momento em que a Requerente já era devedora, no local, ela quantia de 164,44 € conforme doc. 7, e que corresponde a extrato de conta corrente do sistema de gestão comercial, o fornecimento foi interrompido no dia 7 de janeiro de 2015".
Assim, nessa peça não se alegou o que agora figura nas conclusões 29.ª, 30.ª, 32.ª, 33.ª e 44.ª, esta com exceção do que figura nos citados artigos 24.ª a 26.ª.
Diz a requerente que "todos estes pontos resultam de factos e documentos trazidos aos autos pelas 3 partes e que no entendimento da Autora deviam ser merecedoras da análise e pronuncia por parte do Tribunal." (...)
Os factos a que faz alusão, realmente, encontram-se em documentos juntos aos autos. Porém a maioria deles, incompreensivelmente, não foi alegada na contestação, sendo certo que é nesta peça que o demandado tem que alegar os factos em que assenta a sua defesa, como estabelece o artigo 33.º n.º da Lei de Arbitragem Voluntária (...). Os documentos servem de meio de prova dos factos alegados e não de meio de alegação da matéria de facto.
Portanto, só importa averiguar se há alguma omissão de pronúncia em relação aos factos alegados nos artigos 24.ª a 26.ª da contestação; quanto a todos os outros, não tendo eles sido alegados em devido tempo, não tinha o tribunal arbitral que os julgar provados ou não provados.
Feito este esclarecimento, temos que do alegado nos artigos 24.ª a 26.ª da contestação resulta que terá sido a ausência do pagamento do crédito da requerente a que se refere "o pré-aviso regulamentar que se mostra como documento 4" que determinou a interrupção do fornecimento de energia elétrica.
Ora, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, é evidente a potencial pertinência destes factos alegados pela requerente, visto que, se eles se provarem, então a interrupção do fornecimento de energia elétrica realizou-se após a data concedida à requerida para o pagamento da dívida que motivou esse corte e não, como esta alega, no último dia do respetivo prazo (...).
O artigo 46.º n.º 3 a) subalínea v) da Lei de Arbitragem Voluntária estabelece que a sentença arbitral "pode ser anulada pelo tribunal estadual (…) se (…) o tribunal arbitral (…) deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar".
Pela simples leitura dos factos provados e não provados verificamos que o tribunal arbitral não tomou posição relativamente à matéria de facto alegada naqueles três artigos da contestação.
Contudo, salvo melhor juízo, essa omissão não se refere a uma questão "que [se] devia apreciar", pois a expressão "deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar" significa, sim, que ao tribunal arbitral cabe "conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções que oficiosamente lhe cabe conhecer". (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª Edição, pág. 704.) Com efeito, esta omissão é um "vício (…) [que] se reporta ao incumprimento do dever de conhecer as questões suscitadas pelo pedido, pela causa de pedir e pelas exceções." (Ac. STJ de 1-3-2018 no Proc. 4290/09.5TBCSC.L1.S1, www.gde.mj.pt). E importa ter em mente que "o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão." (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 1952, pág. 145.)
Portanto, não estamos perante uma omissão de pronúncia "sobre questões que [o tribunal arbitral] devia apreciar".
3.º
Subscrevemos o entendimento de que no processo civil a insuficiência da decisão de facto, quando isso faz com que esta, por essa razão, seja "deficiente", se enquadra no disposto no artigo 662.º n.º 2 c) do Código de Processo Civil (Cfr. Ac. STJ de 22-3-2018 no Proc. 290/12.6TCFUN.L1.S1, Ac. Rel. Coimbra de 19-12-2012 no Proc. 31156/10.3 YIPRT.C1, Ac. Rel. Coimbra de 20-01-2015 no Proc. 2996/12.0TBFIG.C1, Ac. Rel. Porto de 16-12-2015 no Proc. 12203/05.7TBMAI.P2, Ac. Rel. Lisboa de 13-4-2015 no Proc. 6834/12.6TBVNG.P1 e Ac. Rel. Lisboa de 16-3-2016 no Proc. 37/13.0TBHRT.L1-4, todos em www.gde.mj.pt), conhecendo logo o tribunal ad quem a matéria de facto em causa se o processo já reunir os elementos necessários para esse efeito; tal vício não se traduz, assim, na nulidade da sentença prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil (...).
Mas, há quem não concorde com esta posição e considere que "toda a decisão final de uma causa comporta elementos de facto e de direito (cf. art. 607.º, n.º 3, CPC), pelo que essa decisão deve integrar uma fundamentação quanto à matéria de facto e uma fundamentação distinta quanto à matéria de direito. A nulidade da sentença (…) decorre da falta da especificação dos fundamentos de facto e de direito (cf. art. 615.º, n.º 1, al. b), CPC) (…), [sob pena de não haver um] tratamento unitário da omissão de qualquer destas fundamentações no art. 615.º, n.º 1, al. b), CPC." (Teixeira de Sousa, Comentário de 30-7-2015 no blogue do IPPC. No mesmo sentido veja-se Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Edição, pág. 605)
Todavia, "a nulidade da sentença arbitral não deve (…) ser vista à luz do regime da sentença judicial fixado no CPC, não podendo, de modo algum, ser atacada senão por violação do dever de fundamentação de uma sentença do tipo arbitral e conforme as características do processo arbitral, despido assim do formalismo rígido da sentença do tribunal estadual. Mas, a sentença arbitral não pode deixar de cumprir o requisito da fundamentação adequada, de facto (…), nos termos que acima se deixam ditos." (Manuel Pereira Barrocas, Lei de Arbitragem Comentada, 2013, pág. 155). Na verdade, "a decisão deve responder a todos os factos relevantes, invocados por qualquer das partes: sempre com justificação." (Menezes Cordeiro, Tratado da Arbitragem, 2016, pág. 402.)
Note-se que a impugnação da sentença arbitral, para além de outras características, tem a natureza de contencioso de anulação (...) e não, como sucede no processo civil, de substituição (...); tal impugnação "conduz à cassação da decisão arbitral" (...), pelo que no respetivo processo não pode haver qualquer solução idêntica à do artigo 662.º n.º 2 c) do Código de Processo Civil.
Neste específico contexto tem que se concluir que, excluindo as exceções referidas na segunda parte do n.º 3 do artigo 42.º da Lei de Arbitragem Voluntária, o não conhecimento na sentença arbitral de factos alegados pelas partes que, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, sejam suscetíveis de ter relevância para a decisão da causa, traduz-se numa violação do dever de a fundamentar, consagrado na parte inicial desse mesmo n.º 3.
Ora, no capítulo da fundamentação verifica-se que a subalínea vi) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º da Lei de Arbitragem Voluntária estabelece a anulabilidade da sentença arbitral quando ela for "proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.os 1 e 3 do artigo 42.º".
Portanto, no nosso caso, deve, ao abrigo desta subalínea vi), anular-se a sentença prolatada pelo tribunal arbitral, em virtude desta não se ter pronunciando quanto aos factos alegados nos artigos 24.ª a 26.ª da contestação, julgando-os provados ou não provados."
*3. [Comentário] Salvo o muito devido respeito, não se compreende como é que a omissão de pronuncia do tribunal arbitral sobre determinados factos relevantes para a decisão da causa não é subsumível ao disposto no art. 46.º, n.º 3, al. a), subal. v), LAV, que expressamente refere a hipótese de esse tribunal ter deixado de se pronunciar sobre questões que devia apreciar.
Talvez importe ter presente o seguinte:
-- Uma coisa é a falta de pronúncia do tribunal sobre um aspecto da matéria de facto, outra bem distinta é uma pronúncia sobre esse aspecto que não é acompanhada de qualquer fundamentação: no primeiro caso, há uma omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC), no segundo uma falta de fundamentação (art. 615.º, n.º 1, al. b), CPC;-- Uma coisa é uma decisão deficiente sobre um aspecto da matéria de facto, outra bem distinta é a ausência de qualquer decisão sobre esse aspecto; a primeira situação está prevista no art. 662.º, n.º 2, al. c), CPC, a segunda no art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC.
Sendo assim, se a RG entende que, no caso sub iudice, o tribunal arbitral não se pronunciou sobre determinados factos alegados pela agora requerente, o vício só pode ser o da omissão de pronúncia previsto como fundamento de anulação da decisão arbitral no art. 46.º, n.º 3, al. a), subal. v), LAV.
MTS