"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/01/2022

Jurisprudência 2021 (111)


Penhora de "benfeitorias";
efeitos; propriedade do imóvel


1. O sumário de STJ 13/5/2021 (2399/18.3T8STR.E1.S1) é o seguinte:

I – Na acessão industrial imobiliária, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas inovar e alterar a substância do objecto da posse, construir uma coisa nova, atribuindo a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa; nomeadamente a junção de um edifício ao solo ou à porção de um determinado solo vem a constituir, no seu conjunto, uma coisa nova, mediante alteração da substância daquela em que a obra é feita.

II – Penhorado determinado edifício, construído em solo alheio, como uma benfeitoria, em execução movida contra aquele que construiu o edificado, a Autora, proprietária do solo, é alheia a quaisquer ocorrências na execução, que não podem ser feitas valer contra si – não apenas não era a executada, como também foi citada nos termos do actual artº 773º CPCiv, pela consideração da norma relativa à penhora de direitos ou de expectativas de aquisição do bem pelo executado – actual artº 778º CPCiv.

III – Na acessão imobiliária, a aquisição do direito de propriedade sobre o terreno pelo autor da obra não se dá pelo simples fenómeno da união material de coisas distintas, tornando-se necessário, por parte do autor da obra incorporada, uma declaração de vontade sem a qual não existe aquisição do direito de propriedade – artº 1317º al. d) CCiv.

IV – Se até ao exercício do direito, as propriedades se mantêm distintas e cada um dos sujeitos puder exercer o seu direito ou cedê-lo a outrem, não pode descurar-se a situação possessória de facto verificada, com relação a ambas as coisas.

V – Se o possuidor pode gozar da presunção da titularidade do direito – artº 1268º nº 1 1ª parte CCiv, já não pode fazer valer tal direito contra a Autora, que goza da presunção juris tantum do artº 7º CRegPred, fundada em registo anterior ao início do domínio empírico do Réu.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

AA intentou a presente acção contra BB.

Pediu a condenação do Réu a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre a casa composta por ... e primeiro andar, destinada a habitação, tendo o rés-do-chão uma sala, cozinha, quatro casas de banho, duas arrecadações, adega, garagem e dois logradouros, e, o primeiro andar, quatro divisões, cozinha, duas casas de banho, corredor, duas despensas e duas varandas, inscrito na matriz predial urbana da freguesia .... sob o artº 72.... e, em consequência, restituir-lha, livre e devoluta de pessoas e bens, e a sua condenação no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais, a título de lucros cessantes, contabilizada desde Novembro de 2007 até à entrega efectiva da casa devoluta de pessoas e bens, no montante de € 910,97 por cada mês em que se encontrar, por isso, impedida de arrendar o imóvel, liquidando-se as rendas vencidas, até à data do petitório, em € 118.426,23 (€ 910,97 x 130 meses), à qual acrescem juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data de citação do R. até integral e efectivo pagamento.

Acrescenta a A. que, à indemnização peticionada, deverá ser deduzido o valor do direito de crédito arrematado pelo R., a apurar nos presentes autos, mas que não poderá ser superior ao valor que o R. pagou pela arrematação do mesmo, no âmbito da acção executiva n.º 305/..., ou seja, € 40.150,00.

Alega ser proprietária do prédio urbano sito na Rua da ..., ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial .... sob o n.º …90, adquirido por sucessão hereditária de CC, com quem foi casada. Ao longo dos anos foram edificadas várias construções no prédio, entre elas, a casa de rés-do-chão e primeiro andar, destinada a habitação, e logradouros, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 72… da freguesia de ..., cujo … a A. deu de arrendamento desde Janeiro de 2001, recebendo a respectiva renda, mantendo o primeiro andar por acabar. Em 2000, cedeu ao seu afilhado o primeiro andar, comprometendo-se este a executar as obras de acabamento, o que ele fez.

Em 2003, foi surpreendida com uma notificação do Proc. n.º 305/..., do … Juízo do Tribunal ..., em que era exequente a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo e executados o seu afilhado DD e mulher, no âmbito da qual foi penhorado o direito a benfeitorias realizadas pelos executados no prédio. Contactou o afilhado que lhe transmitiu estar a tratar do assunto e lhe pediu para assinar documentos, sem compreender o seu conteúdo. Em 2005 foi ordenada a venda judicial do direito a benfeitorias, tendo o afilhado lhe pedido para assinar um documento com uma proposta de aquisição. Em 4 de Julho de 2006 foram abertas as propostas apresentadas, estando a A. presente, tendo sido aceite a proposta do R., no montante de € 40.150,00, por ser de valor superior à proposta por si apresentada. Em 12 de Março de 2007, o tribunal emitiu o título de transmissão.

Em consequência da incorrecta descrição do direito a benfeitorias, sucederam equívocos e, apesar das tentativas de esclarecimento pedidas por si, o certo é que o R. passou a considerar-se o proprietário da casa de rés-do-chão e primeiro andar, inscrita na matriz predial urbana sob o artigo 72... da freguesia ..., de que é proprietária, passando a receber a renda do inquilino do rés-do-chão desde Novembro de 2007. Apesar de ter conhecimento de que apenas adquiriu benfeitorias, o R. arroga-se proprietário do imóvel. Opôs-se à criação pelo R. de um novo artigo matricial, tendo recorrido para o Tribunal Administrativo e Fiscal ..., que lhe deu razão. Conclui que é a proprietária do prédio inscrito na matriz sob o artigo 72..., da freguesia .., facto que comunicou ao R., que continua a ocupar ilicitamente o prédio.

Alega ainda a A. que a ocupação do prédio pelo R. lhe causa danos, pois impede-a de receber as rendas desde Novembro de 2007, quer do ..., no valor de € 450,00 mensais, quer do primeiro andar, no valor de € 460,97, quantias a que acrescem juros. [...]

Conhecendo:

I

Como bem inicia de ajuizar o acórdão recorrido, encontrando-nos perante acção de reivindicação de propriedade, e reconhecido esse direito, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei – artº 1311º nº2 CCiv.

Estes “casos previstos na lei” são os de qualquer relação, obrigacional ou real, que confira, a quem a invoca, a posse ou a detenção da coisa – p.e., nos casos da invocação pelo usufrutuário, pelo locatário ou pelo credor pignoratício.

Restaria, em todo o caso, o não reconhecimento à reivindicante do direito de propriedade sobre o imóvel, classificado na execução como “benfeitoria”, penhorado e transmitido nessa sobredita execução.

Esta, em bom rigor, a matéria com que se depararam o acórdão e a sentença.

Esta última, a fim de considerar improcedente a pretensão da Autora, entendeu existir dúvida sobre a acessão imobiliária do solo da construção penhorada (existe, de facto, um prédio, construído em solo alheio, que foi transmitido na execução), dúvida que se deveria resolver contra a Autora reivindicante, proprietária do solo.

O acórdão centrou-se na ideia de que “o que releva é que o bem penhorado foi o direito a benfeitorias e a Autora foi notificada da penhora na qualidade de proprietária, nos termos do disposto nos artºs 856º e 860º-A do CPCiv (então vigente) e o Réu adquiriu esse direito e não a obra, a construção, o imóvel”.

Independentemente da questão de ónus probatório, referido na sentença (artº 342º CCiv), não há dúvida de que o instituto da acessão pressupõe, nos termos da norma do artº 1325º CCiv, que exista determinada coisa, propriedade de alguém, que se une e se incorpora com outra coisa que não lhe pertence, pressupondo-se assim duas propriedades distintas que, por força da acessão, virão a formar uma coisa única.

Com a entrada em vigor do Código Civil de 66 figuraram-se dois critérios de distinção entre benfeitoria e acessão imobiliária – um critério subjectivo e um critério objectivo.

Para o critério subjectivo, a benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com ela – assim, Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, vol.III, 2ª ed., pg. 163. Nesta linha, o quid da distinção deveria achar-se na diversidade, oposição ou conflito de títulos, própria da acessão, uma pertinência de elementos congregados na coisa, mas atribuíveis a diferentes titulares – Antunes Varela, Col. S.T.J. 96/10.

O critério objectivo obtém-se, v.g., da síntese de Menezes Leitão, Direitos Reais, 2ª ed., pg.227: “as benfeitorias correspondem apenas a despesas para conservar ou melhorar a coisa (artº 216º nº 1 CCiv), havendo assim apenas uma manutenção ou desenvolvimento do seu valor económico, que gera apenas obrigações de restituição das despesas ou um jus tollendi, não criando um conflito de direitos; já na acessão vai-se mais longe, efectuando-se uma incorporação de um valor económico novo naquele bem, através da união com outra coisa ou da sua transformação por aplicação de trabalho, o que gera um direito novo sobre a coisa, que entra em conflito com o do proprietário primitivo; assim, por exemplo, se um locatário de um prédio rústico construir um edifício no terreno, a situação é de acessão e não de benfeitoria”.

No mesmo sentido, já Manuel Rodrigues, A Posse, 1981, pg. 312, apontava o critério clássico seguido até à entrada em vigor do Código Civil de 66, esclarecendo que os actos de acessão se distinguem das benfeitorias porque inovam, porque alteram a substância do objecto da posse – melhorar uma construção existente, trata-se de benfeitoria; quando se faz construção nova, há acessão.

Este critério objectivo de distinção entre benfeitoria e acessão veio a ser doutrinado por Vaz Serra, Revista Decana, 108º/253, 255 e 266, na vigência do Código Civil de 66, no sentido de que, “no caso da acessão, não se trata apenas de conservar ou melhorar uma coisa de outrem, mas de construir uma coisa nova, mediante alteração da substância daquele em que a obra é feita, atribuindo assim a lei, em certas condições, ao autor da acessão a propriedade da coisa”.

O critério de distinção preferível é o critério objectivo, tendo-se o mesmo imposto também na jurisprudência – cf. S.T.J. 27/5/99 Col.II/123 (Miranda Gusmão), independentemente de a necessidade de distinção só aparecer nas hipóteses de intervenção de terceiro em terreno alheio (artºs 1340º e 1342º CCiv), posto que a ponderação de direitos e deveres associados às benfeitorias só tem sentido se o beneficiador não for o dono da coisa beneficiada – Quirino Soares, Acessão e Benfeitorias, Col. S.T.J. 96/14.

Sem prejuízo de que o critério objectivo pode ser afastado pelo regime jurídico aplicável à relação em causa ou pela convenção das partes (Vaz Serra, op. cit., pg. 265) - como observa Júlio Vieira Gomes, Da Acessão, Mormente da Acessão Industrial Imobiliária, Porto, 2019, pg. 104, “frequentemente a mesma obra ou construção poderá segundo os casos ser tratada como uma benfeitoria (melhoramento, adição ou inovação), discutindo-se a questão da sua indemnização, ou como uma acessão, havendo que determinar de quem é a propriedade”.

A situação dos autos reconduz-se à construção de um edifício, casa de ... e andar, com arrecadações, garagem, logradouros, com inscrição matricial própria, em terreno da Autora, mas com autorização da Autora. A construção foi também averbada na descrição predial do prédio da Autora.

O prédio/edifício veio a ser penhorado em processo executivo movido contra o autor da obra, como uma benfeitoria.

Não como um “crédito por benfeitorias”, mas como uma coisa, tendo o adquirente em venda executiva beneficiado da entrega efectiva do imóvel – passou aliás até a receber a renda da parte arrendada (...).

Resta saber se a propriedade do edifício, mais tarde vendido no processo executivo, independentemente da caracterização feita no processo executivo (penhora de “benfeitoria”, que não “penhora de imóvel”), pode ser feita valer contra a propriedade existente na esfera jurídica da Autora.

Não poderia ser feita valer enquanto benfeitoria – como afirma adequadamente o acórdão recorrido, “o benfeitorizante não adquire nunca o direito à propriedade da coisa, mas apenas o direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada, na impossibilidade de separar a construção, do terreno onde está implantada – nº 2 do artº 1273º CCiv”.

A benfeitoria é, em primeira linha, um crédito pelo ressarcimento da despesa de quem a levou a cabo – sem prejuízo de a benfeitoria poder integrar um fenómeno mais vasto de acessão (em sentido lato), na medida em que determinados materiais ou obras incorporadas passem a ser partes componentes da propriedade de outrem, não podendo ser levantadas (artºs 1273º nº 2 e 1275º nº 1 CCiv), mas nunca por nunca dando azo a um direito de propriedade sobre a coisa benfeitorizada.

Diga-se também, que a Autora é alheia a quaisquer ocorrências na execução, que não podem ser feitas valer contra si – não apenas não era a executada, como também foi citada nos termos do actual artº 773º CPCiv, por força da consideração da norma relativa à penhora de direitos ou de expectativas de aquisição do bem pelo executado – actual artº 778º CPCiv.

Como vimos, porém, o critério base, de adoptar no caso concreto do solo e do edifício de habitação dos autos, está em aceitar que a junção de um edifício ao solo ou à porção de um determinado solo vem a constituir, no seu conjunto, “uma coisa nova, mediante alteração da substância daquela em que a obra é feita” (Vaz Serra).

Neste quadro, é à luz da acessão industrial imobiliária que se poderia obstar ao êxito da reivindicação.

II

Inexistindo dúvida sobre a boa fé do autor das obras (artº 1340º nº4 CCiv), nesta matéria rege o artº 1340º CCiv: “1 – Se alguém de boa fé construir obra em terreno alheio… e o valor que as obras tiverem trazido á totalidade do prédio for maior que o valor que este tinha antes, o autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras… 3 – Se o valor acrescentado for menor, as obras pertencem ao dono do terreno, com a obrigação de indemnizar o autor do valor que tinham ao tempo da incorporação.”

Ora, desde o artigo de Oliveira Ascensão (Acessão, in Scientia Juridica, 1973, tomo XXII, pgs. 324ss.) que se vem maioritariamente entendendo que a aquisição do direito de propriedade sobre o terreno pelo autor da obra não é automática, isto é, não se dá pelo simples fenómeno da união material de coisas distintas. Torna-se necessário, por parte do autor da obra incorporada, uma declaração de vontade no sentido de que efectivamente pretende adquirir o terreno, independentemente de os efeitos da declaração de vontade deverem retroagir ao momento da incorporação.

E assim, sem declaração de vontade não existe aquisição do direito de propriedade, tão só um direito potestativo que assiste ao dono da obra, que assim o poderá exercer, ou não – artº 1317º al. d) CCiv, de resto, como visto, também dependente da efectivação de determinado pagamento.

Da mesma forma, também Menezes Cordeiro, Direitos Reais, II, 1979, pgs. 721 a 723 e alguns acórdãos dos tribunais superiores – Ac.R.C. 7/11/89 Col.V/51 (Manuel Pereira da Silva), Ac.R.C. 2/7/91 Col.IV/94 (Virgílio de Oliveira) ou Ac.R.P. 9/3/00 Col.II/190 (João Bernardo), para além de Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ª ed., pgs. 401ss.

Portanto, nada tendo feito o Réu valer, na presente acção, sobre acessão industrial imobiliária, nenhuma consequência poderia advir para os autos do referido instituto."

[MTS]