"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/01/2022

A posição em juízo do administrador do condomínio analisada sem confusões


1. Infelizmente, para prejuízo da boa aplicação do direito e da segurança jurídica, continuam as confusões sobre a interpretação do disposto no art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC, como pode ser atestado pelo relativamente recente acórdão do STJ de 10/5/2021 (90/19.2T8LLE.E1.S1).

2. No caso concreto, verificou-se o seguinte:

-- Um condómino propôs uma acção para demolição de uma rampa exterior cuja construção afectava a sua fracção; a acção foi proposta contra a administradora do prédio, mas o tribunal de 1.ª instância entendeu que, realmente, a acção tinha sido proposta contra o condomínio, representado por essa administradora; a acção foi julgada procedente;

-- "Na Relação […] foi decidido que a ação, atentos os efeitos que com ela se pretendiam obter, havia de ter sido dirigida contra os diversos condóminos, de sorte que ocorria uma situação de incapacidade judiciária da entidade demandada" (que a Relação entendeu que era a administradora do condomínio); nestes termos, a administradora foi absolvida da instância com base em incapacidade judiciária;

-- Desta decisão foi interposta revista, mas o STJ confirmou a decisão da Relação.

Não importa analisar o caso concreto (embora a única decisão aceitável proferida sobre ele tenha sido a da 1.ª instância), mas aproveita-se o caso sub iudice para procurar desfazer algumas confusões que, infelizmente, se tornaram habituais na matéria.

Fica naturalmente ressalvada toda a consideração pessoal e institucional. Importa referir, no entanto, que a questão analisada não é uma questão de opinião, mas antes estritamente de Ciência Processual Civil e de direito positivo.

3. No seu acórdão, o STJ afirma que

"o art. 1437.º do CCivil não regula sobre a legitimidade propriamente dita (a chamada legitimidade ad causam), mas sim sobre a legitimidade ad processum, isto é, a capacidade processual (capacidade judiciária, que se traduz na suscetibilidade de estar, por si, em juízo)",

que

"importa saber [...] se a respetiva representante (a administradora) detém capacidade judiciária"

e ainda que 

"[...] o administrador pode ser demandado (neste caso possui capacidade judiciária passiva, goza da suscetibilidade de estar, por si, em juízo) nas ações respeitantes às partes comuns do edifício".

Salvo o devido respeito, nenhuma destas afirmações é aceitável. Importa procurar demonstrar porquê.

4. a) O art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC refere que "o administrador tem legitimidade para agir em juízo" e que "o administrador pode [...] ser demandado". Disto retira o acórdão do STJ (bem como o da Relação) que o preceito regula a capacidade judiciária do administrador do condomínio. Ressalvada a devida consideração, a conclusão não é sustentável pelas seguintes razões:

-- Se, a propósito da posição do administrador do condomínio, se coloca o problema no domínio da capacidade judiciária, então do que se pode falar é da posição desse administrador como representante do condomínio, isto é, como representante de uma parte incapaz ou de uma parte que necessita de uma representação orgânica; a primeira situação verifica-se quanto às pessoas singulares, a segunda quanto às pessoas colectivas e às pessoas meramente judiciárias;
 
-- É equivocada a afirmação que consta do acórdão de que "importa saber [...] se a respetiva representante (a administradora) detém capacidade judiciária"; a capacidade judiciária afere-se em relação à parte, não em relação ao representante da parte; nunca se disse que a necessidade da representação do filho menor pelos seus progenitores é um problema de capacidade judiciária destes progenitores; o que se diz é que essa necessidade de representação decorre da incapacidade judiciária do filho; quer dizer: a capacidade (ou incapacidade) judiciária reporta-se sempre à parte, nunca ao representante da parte;

 -- Assim, falar da capacidade judiciária do representante da parte é algo que, sob o ponto de vista da Ciência Processual Civil, é incompreensível; a única coisa que se consegue imaginar é que, de acordo com o critério do art. 15.º, n.º 2, CPC, se pretende discutir se o representante tem capacidade de exercício; no entanto, nunca se ouviu dizer que um representante necessita de ser representado, porque não tem capacidade de exercício (ou, em termos mais técnicos, que a incapacidade judiciária do representante tem de ser suprida pela sua representação em juízo (art. 16.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, CPC));

-- No entanto, é a esta conclusão que conduz a afirmação de que "importa saber [...] se a respectiva representante (a administradora) detém capacidade judiciária", dado uma eventual resposta negativa a esta questão conduz necessariamente ao indispensável suprimento da incapacidade daquela representante através sua representação em juízo, tal como é imposto pelo estabelecido nos art. 16.º, n.º 1, e 27.º, n.º 1, CPC; isto é: a referida afirmação do STJ conduz a ter de aceitar a representação do representante incapaz (!);

-- Aliás, dentro da óptica adoptada, o que o STJ (assim como a Relação) deveria ter feito era ter mandado suprir a incapacidade da administradora do condomínio; recorde-se que a absolvição da instância com fundamento em incapacidade da parte (art. 577.º, al. c), e 278.º, n.º 1, al. c), CPC) nunca pode ocorrer antes de, nos termos do art. 27.º, n.º 1, CPC, o tribunal ter possibilitado a sanação do vício; assim, não é lógico afirmar que se trata de uma situação de incapacidade judiciária da administradora do condomínio e depois não aplicar o regime próprio da sanação dessa incapacidade;

-- Esta afirmação também é reversível: se não faz sentido -- como, efectivamente, não faz -- sanar a alegada incapacidade judiciária da administradora do condomínio através do disposto no art. 27.º, n.º 1, CPC (e, portanto, através da sua representação na acção), então o problema nunca pode respeitar à capacidade ou à incapacidade judiciária daquela administradora;

-- Quando muito, no plano da capacidade judiciária, o que, no caso concreto, se poderia afirmar era que o condomínio não tem capacidade judiciária, por necessitar de uma representação orgânica, e que, por isso, tem de ser representado em juízo pelo seu administrador; o problema é que esta interpretação do art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC não tem nenhuma correspondência verbal com o seu texto, dado que este, em parte alguma, fala da incapacidade do condomínio e da necessidade da sua representação em juízo pelo administrador;

-- Mais até: para que o art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC se pudesse referir à capacidade judiciária seria necessário que dele resultasse a presença em juízo do condomínio como parte e a sua representação pelo administrador; é preciso não esquecer que, quando há uma representação numa acção, a parte representada tem sempre de estar em juízo; o representante age em juízo em nome e em vez da parte demandante ou demandada e o tribunal e a outra parte praticam actos perante o representante como se fosse perante a própria parte representada (numa obra clássica, Rosenberg, Stellvertretung im Prozess (1908), 5, distinguia, para abranger cada uma daquelas situações, entre a representação activa e passiva); quer dizer: uma situação de representação em juízo é sempre dual, dado que pressupõe uma parte e um representante dessa parte; ora, dado que o artigo permite a presença em juízo do administrador do condomínio sem a presença simultânea deste condomínio, é impossível que o mesmo se refira a uma situação de representação e de capacidade judiciária.

Em conclusão: (i) corresponde a uma premissa básica da Ciência Processual Civil que quem é representante não pode ser parte e quem é parte não pode ser representante; (ii) é desprovido de sentido discutir a capacidade judiciária do representante; a capacidade judiciária só pode ser discutida em relação ao representado; (iii) o disposto no art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC nada tem a ver com a capacidade judiciária, muito menos com uma dogmaticamente insustentável capacidade judiciária do administrador do condomínio.

b) Ao afirmado acresce que o art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC atribui ao administrador do condomínio "legitimidade para agir em juízo" e para "ser demandado". Qualquer destas expressões é incompatível com a posição do administrador como representante do condomínio, dado que nenhum representante tem "legitimidade" e "pode [...] ser demandado". A razão é elementar: a parte é sempre o representado, e nunca o representante, pelo que não tem sentido falar de legitimidade para demandar ou para ser demandado a propósito de representantes de partes.

Sendo assim, o artigo, ao atribuir ao administrador "legitimidade para agir em juízo" e para "ser demandado", só pode estar a referir-se à legitimidade processual e, em concreto, a esse administrador como parte legítima (como demandante ou como demandado).

5. a) Na última das afirmações acima transcritas, o STJ refere que "[...] o administrador pode ser demandado (neste caso possui capacidade judiciária passiva, goza da suscetibilidade de estar, por si, em juízo) nas ações respeitantes às partes comuns do edifício". Salva a devida consideração, esta afirmação encerra uma confusão entre a capacidade judiciária e a legitimidade processual. Não é possível justificar que o administrador possa ser demandado "nas ações respeitantes às partes comuns do edifício" com a capacidade judiciária desse administrador. Efectivamente, das duas uma:

-- Ou o administrador actua em juízo como representante do condomínio e então não é correcto afirmar que esse administrador "pode ser demandado", dado que nenhum representante é demandante ou demandado; só a parte representada é demandante ou demandada;

-- Ou o administrador actua no processo como parte e então a questão de saber se pode estar em juízo "nas ações respeitantes às partes comuns do edifício" nada tem a ver com a sua capacidade judiciária (legitimatio ad processum), mas antes com a sua legitimidade processual (legitimatio ad causam).

Assim, a única coisa que se pode concluir do disposto no art. 1437.º, n.º 2, CC é que, quanto às "ações respeitantes às partes comuns do edifício", o administrador tem legitimidade para estar em juízo. Qualquer alusão neste contexto à capacidade judiciária -- e, em especial, à capacidade judiciária do administrador -- é, como acima se julga ter demonstrado, fonte das maiores confusões.

b) Num outro acórdão do STJ (que é citado no acórdão em análise em apoio da sua orientação) afirma-se o seguinte:

"Fica claro, com o preceito em apreço [art. 1437.º CC], que o administrador da propriedade horizontal, na execução das funções que lhe pertencem ou quando munido de autorização da assembleia de condóminos – relativamente a assuntos que, exorbitando da sua competência, cabem, todavia, na competência desta assembleia – pode accionar terceiros ou qualquer dos condóminos, ou por eles ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício".

Subscreve-se inteiramente esta afirmação. O que não se pode subscrever é que esta afirmação tenha alguma coisa a ver com a capacidade judiciária do administrador do condomínio. Quem "pode accionar terceiros ou qualquer dos condóminos, ou por eles ser demandado" só pode ser uma parte, nunca um representante de uma parte. O problema é, portanto, de legitimidade processual, e não de capacidade judiciária.

6. Por tudo o que se expôs, cabe reafirmar, em termos simples, o que já várias vezes se afirmou neste Blog:

-- O art. 1437.º, n.º 1 e 2, CC admite a presença em juízo do administrador do condomínio como parte demandante ou demandada;

-- Esses preceitos concedem legitimidade processual activa e passiva ao administrador do condomínio;

-- Em concreto, aqueles preceitos atribuem a qualidade de substituto processual ao administrador do condomínio, já que permitem que este administrador possa, como parte processual, demandar ou ser demandado em substituição do condomínio.

MTS