Suspensão de deliberações sociais;
"dano apreciável"
I. O sumário de RC 1/6/2021 (3553/20.3T8CBR.C1) é o seguinte:
1. - O procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais (art.º 380.º, n.º 1, do NCPCiv.) depende do preenchimento de três pressupostos cumulativos: ser o requerente sócio da associação ou sociedade que tomou a deliberação; ser essa deliberação contrária à lei, aos estatutos ou ao pacto social; poder da sua execução resultar dano apreciável.
2. - Impende sobre o requerente do procedimento cautelar o ónus da alegação e prova dos factos concretos tendentes a demonstrar, ainda que em termos de prova sumária, o periculum in mora, a existência do perigo dos prejuízos e da sua gravidade.
3. - Uma deliberação social expulsiva (de sociedade ou associação), tendo em conta a sua natureza e os seus efeitos práticos e jurídicos, ocasiona um total afastamento da pessoa excluída, que fica impedida de exercer quaisquer direitos como membro do ente coletivo (quanto a deliberações, acompanhamento/informação e controlo/fiscalização).
4. - O que aconselha à adoção de especiais cautelas quanto ao perigo – e sua prevenção – de dano apreciável no caso de deliberação de exclusão de sócio ou associado, por se tratar de situação que tipicamente envolve um risco agravado para o excluído, ao ficar no desconhecimento da gestão e direção do ente coletivo.
5. - Tratando-se de associação de reconhecido interesse público, com mais de 500 alunos, que procedeu a avultadas aquisições imobiliárias, existindo um clima de conflito entre associados e ficando o associado expulso impedido, por isso, de escrutinar os negócios aquisitivos e a gestão da pessoa coletiva, é de concluir, em juízo de prognose cautelar, pela possibilidade de dano apreciável para o efeito de suspensão daquela deliberação expulsiva.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Do invocado “dano apreciável”
1. - Dispõe o art.º 380.º, n.º 1, do NCPCiv. que “se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justificando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável” [...].
Assim sendo, o procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais, como procedimento nominado que é, assenta na verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
a) Que o requerente tenha a qualidade de sócio da associação ou da sociedade que tomou deliberação;b) Que tal deliberação seja contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato/pacto social;c) Que a execução dessa deliberação possa causar dano apreciável.
Vem sendo entendido por setor significativo da jurisprudência que o primeiro requisito aludido constitui pressuposto de legitimidade ativa e os dois restantes são constitutivos da causa de pedir, esclarecendo-se que a
«… qualidade de sócio e a ilegalidade da deliberação bastam-se com um mero juízo de verosimilhança, mas, quanto ao “dano apreciável”, exige-se, pelo menos, uma probabilidade muito forte da sua verificação. (…) A exigência legal de demonstração de que a execução da providência pode causar “dano apreciável” reclama a alegação de factos concretos que permitam aferir da existência dos prejuízos e da correspondente gravidade (…). O “dano apreciável” não é toda ou qualquer possibilidade de prejuízo que a deliberação ou a execução em si mesmas comportam, mas sim a possibilidade de prejuízos imputáveis à demora da acção de anulação, pois a providência cautelar visa prevenir o “periculum in mora”, ou seja, acautelar a utilidade prática da sentença de anulação da deliberação social contra o risco da duração do respectivo processo» ([Cfr. Ac. Rel. Lisboa, de 08/03/2012, Proc. 10903/11.2TBBNV.L1-8 (Rel. Isoleta Almeida Costa), disponível em www.dgsi.pt]).
Pretende-se, por isso, evitar o denominado periculum in mora – o prejuízo apreciável/significativo causado pela demora inevitável da ação principal, o processo de anulação dessas deliberações a intentar pelo sócio requerente, com vista à declaração da sua invalidade –, de molde a que a sentença favorável que venha a ser proferida assuma o seu efeito útil.
Assim, nesta perspetiva, “dano apreciável não é toda ou qualquer possibilidade de prejuízo que a deliberação ou a execução em si mesmas comportam, mas sim a possibilidade de prejuízos imputáveis à demora da acção de anulação, pois que não faria sentido que o legislador desse relevo, para efeitos da concessão da providência cautelar, à eventualidade de danos diferentes dos originados pelo retardamento da sentença a proferir naquela acção” ([Cfr. Ac. S. T. J., de 20/05/1997, BMJ, 467.º - 529]).
Nesta senda, depois de se concluir, na decisão recorrida, que “a deliberação de exclusão do requerente tomada em Assembleia Geral Extraordinária de 5 de Setembro de 2020 é contrária à lei e aos Estatutos da A... uma vez que os comportamentos imputados ao requerente não são susceptíveis de violar qualquer norma estatutária da A...”, expendeu-se assim (quanto ao “dano apreciável”):
«(…) a requerida é uma Associação sem fins lucrativos, (…) o requerente não tem participações sociais, nem investimentos e (…) não assumiu compromissos financeiros, com hipotecas ou garantias pessoais com a A...Ora, (…) “o Autor apenas alega um receio genérico de prejuízo, uma eventualidade, medo cujo fundamento não encontra qualquer apoio ou guarida na matéria de facto provada”. (…)Efectivamente, (…) “Não é subsumível ao referido conceito de dano apreciável o facto de, com a exclusão, o requerente ficar privado da qualidade de associado, porquanto tais danos são inerentes à execução da própria deliberação”.Por outro lado, como fundamento para a existência de dano apreciável, alega o requerente que, com a sua expulsão, os Associados impediram a análise, apreciação, discussão e deliberação sobre todo o processo de Aquisição do Património à B... ou à Massa Insolvente da B... e/ou ao Banco...Todavia, o que resulta dos factos provados é que no dia 28 de Maio de 2019, a A... comprou as fracções “D” e “E” que ocupava em parte com as suas instalações de ensino e que no dia 14 de Maio de 2020, a A... adquiriu as fracções “A”, “B” e “C”.Para além disso, ficou provado que o associado ... levantou todos os documentos pedidos sobre as aquisições de todas as fracções “A” a “E” e que as fracções “D” e “E” foram adquiridas no âmbito do processo de insolvência da B..., com acompanhamento do Administrador da Insolvência.Por outro lado, os Associados foram informados do conteúdo do negócio nas Assembleias-Gerais Extraordinárias marcadas para obter aprovação, como se obteve, sendo que o mesmo se passou na aquisição das restantes fracções.Ora, se a aquisição das fracções à B... ocorreu em Maio de 2019 e Maio de 2020 e se todos os Associados foram informados dos negócios, tendo-os aprovado, não faz sentido invocar, agora, passado mais de um ano desde a primeira aquisição, o requerente a existência de dano apreciável com a sua expulsão por tal expulsão o impedir de escrutinar os contornos desse negócio. (…)Não está, pois, verificado, o requisito do dano apreciável.».
2. - O preceito do art.º 380.º, n.º 1, do NCPCiv. não deixa dúvidas sobre a imposição ao sócio requerente de mostrar o perigo de ser causado dano apreciável (de acordo, aliás, com o disposto, em matéria de ónus probatório, no art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.).
Daí que os mesmos aqui decisores já se tenham vinculado ao entendimento no sentido de que:
«1. - O procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais (art.º 380.º, n.º 1, do NCPCiv.) depende do preenchimento de três pressupostos cumulativos: ser o requerente sócio da associação ou sociedade que tomou a deliberação; ser essa deliberação contrária à lei, aos estatutos ou ao pacto social; poder da sua execução resultar dano apreciável.2. - Impende sobre o requerente do procedimento cautelar o ónus da alegação e prova dos factos concretos tendentes a demonstrar, ainda que em termos de prova sumária, o periculum in mora, a existência do perigo dos prejuízos e da sua gravidade.» ([Cfr. Ac. TRC de 26/03/2019, Proc. 1762/18.4T8LRA-A.C1 (Rel. Vítor Amaral), em www.dgsi.pt [...]]). [...]
3. - Invoca o Recorrente, no intuito de mostrar que ocorre no caso o periculum in mora (possibilidade de dano apreciável), um aresto deste TRC, o Ac. de 02/04/2019 ([...]), em cuja fundamentação foi enunciado assim:
«(…) o “dano apreciável” a prevenir é um dano futuro, porém, (…) não raras vezes as deliberações produzem efeitos duradouros, persistentes e prolongados.É bem o caso dos efeitos da deliberação de exclusão de sócias imposta à requerente e à C (…); já que tal deliberação tem como consequência a perda da qualidade de sócias, sendo-lhes retirada a titularidade da participação social, enquanto conjunto unitário de direitos e deveres da socialidade.O que, só por si, mantendo-se tal perda durante o lapso de tempo que leva a ser tomada uma decisão definitiva, evidencia um prejuízo significativo, de importância relevante, longe dos danos irrisórios ou insignificantes.Não divergimos pois da requerida, quando a mesma sustenta que “o dano que serve de fundamento à medida cautelar tem de transcender e destacar-se do valor da quota”, porém, é essa “transcendência” que em boa verdade sempre ocorre quando se exclui alguém de sócio, ou seja, quando alguém é excluído de sócio, não perde apenas e só a quota.Do ponto de vista cautelar, isto é, circunscrevendo-nos apenas ao dano que decorre da natural demora da decisão definitiva, a perda da quota e do valor da quota até será o dano menos “significante”, na medida em que a decisão definitiva poderá reconstituir a titularidade da quota.A questão – o “dano apreciável” que cautelarmente merece tutela – está no que significa e representa, em termos de efeitos jurídicos, o simples facto de alguém deixar de ser proprietário duma participação social; o “dano apreciável” está nos direitos sociais que se retiram ao sócio excluído (está na extinção da relação jurídica que liga permanentemente o sócio à sociedade).Está, concretizando, na perda da qualidade de sócia da requerente, em ver-se afastada da vida da sociedade, não podendo participar e influir nas decisões (designadamente, não podendo opor-se à entrada de novos sócios), passando os restantes sócios da requerida a poder deliberar, da forma como bem entenderem, sobre o destino da sociedade.E não é pouca e insignificante coisa, principalmente se não perdermos de vista a globalidade dos factos e o modo, já apreciado, bastante irregular que rodeou a deliberação de exclusão da requerente e da C (…).O “dano apreciável”, repete-se, é um dano futuro e sobre o futuro é sempre difícil fazer previsões (quanto mais ter certezas), porém, pelo modo como a AG decorreu e como a requerente e a C (…) foram excluídas de sócias – não as deixando sequer participar, por razões descabidas, na AG que visava excluí-las de sócias e invocando-se, em relação à requerente, uma causa de exclusão que claramente não se verifica – pode/deve extrair-se que é muito séria e forte a probabilidade de serem significativos os prejuízos decorrentes da perda de qualidade de sócia da requerente, ou seja, o modo atrabiliário como a requerente e a C (…) foram, na AG sub judice, afastadas da participação na vida da sociedade, não augura nada de bom e faz legitimamente temer (preenchendo o perigo do “dano apreciável”) que, quem assim procedeu, visou ter campo livre para, no entretanto (até à decisão definitiva), poder deliberar, da forma como bem entender, sobre o destino e gestão da sociedade/requerida.».
A perspetiva adotada neste aresto do TRC direciona-se, pois, desde logo, para a especificidade de uma deliberação no sentido da perda da qualidade de sócio/membro de uma pessoa coletiva, com a decorrente retirada da “titularidade da participação social, enquanto conjunto unitário de direitos e deveres da socialidade”.
Isto é, o enfoque é colocado na singularidade da decisão/deliberação de exclusão – do sócio da sociedade, mas também (diremos nós), de modo semelhante, do associado de uma associação, como a ora Apelada, que, não tendo fins lucrativos, se dedica ao ensino, tendo mais de 500 alunos e com reconhecido interesse público (cfr. factos provados dos pontos 47, 113, 114), para o que tem de dotar-se de meios adequados e necessários, também no plano patrimonial, com a correspondente tomada de decisões (cfr. pontos 110 a 112 provados) –, vista então ([...]) como uma “pena capital” (expressão usada no mesmo aresto).
4. - Mas poderá dizer-se que, também no caso em apreciação, a deliberação de exclusão de um dos membros/associados da pessoa coletiva, levando à perda da qualidade de associado – com privação, pois, dessa posição/participação social, enquanto conjunto unitário de direitos e deveres no interior da respetiva associação –, implica já, visto o contexto fáctico dos autos, a possível ocorrência (perigo) de um dano apreciável/significativo para o associado excluído?
E sustentar-se, nessa senda, que a situação, só por si, mantendo-se tal perda durante o lapso de tempo até ser tomada uma decisão definitiva, evidenciará um prejuízo significativo, de importância relevante, longe dos danos irrisórios ou insignificantes?
Pensamos – com todo o devido respeito por diverso entendimento – que a resposta, também in casu, deverá ser afirmativa.
Desde logo, deve ponderar-se que, efetivamente, uma deliberação de exclusão de um membro (de uma sociedade ou de uma associação), pelas suas consequências para o excluído, não pode ser confundida (ou equiparada, sem mais) com uma qualquer outra deliberação do ente coletivo ([...]).
É que, pela sua natureza e pelos seus efeitos práticos e jurídicos, aquela deliberação de exclusão logo ocasiona um total afastamento da pessoa excluída, que fica impedida de exercer quaisquer direitos como membro do ente coletivo, do mesmo modo que fica arredada da vida e atividade desse ente, não podendo, por isso, nelas tomar parte, seja no âmbito deliberativo, seja no âmbito informativo e/ou de controlo/fiscalização.
Assim, um associado que, como o aqui Apelante, seja excluído da respetiva associação é forçado – contra a sua vontade – a uma posição de desconhecimento/afastamento de tudo o que se passa no interior do ente coletivo, não podendo participar nas respetivas deliberações (futuras), sejam elas quais forem e tenham as implicações que tiverem, nem no acompanhamento da gestão/atividade da pessoa coletiva, nem sequer no controlo/fiscalização de umas e outra.
Bem se compreende que um tal associado se sinta receoso quanto ao que possa vir a acontecer no futuro, na sua ausência, com repercussões na pessoa coletiva, por se encontrar impossibilitado, na falta de suspensão da deliberação de exclusão, de sequer conhecer o que vai sendo deliberado e executado por quem se mantém ao leme da associação e a pode vincular, também em termos patrimoniais, com possíveis consequências até na sustentabilidade do ente coletivo e no cumprimento do fim a que se destina.
O que, em devida ponderação, logo aconselha a que se adotem especiais cautelas quanto ao perigo – e sua prevenção – de dano apreciável no caso de a deliberação tomada ser de exclusão de sócio ou associado, por em tal caso se tratar de situação que tipicamente transporta consigo um inerente risco agravado para o excluído, que fica na impossibilidade, sem mais, de conhecer sequer o que vai sendo deliberado e executado/implementado na sua ausência forçada, mesmo que possa estar em causa uma gestão que, no limite, contenda com a subsistência da sociedade ou associação. [...]
Tudo ponderado, afigura-se-nos estar preenchido, no caso, todo o requisitório legal de que depende a cautelar suspensão da deliberação social expulsiva ([...]), posto ser de concluir – em divergência, nesta parte, com o sentido adotado na decisão impugnada – que a respetiva execução pode causar dano apreciável."
[MTS]