Divórcio; atribuição da casa de morada da família;
tribunal competente
Ao abrigo do atual regime jurídico do processo de atribuição da casa de morada de família, o pedido de atribuição da casa de morada de família, sustentado pelo disposto no artigo 1793.º do CC, deve ser apresentado no tribunal quer nos casos em que ali corre ou correu uma ação de divórcio/separação litigiosos (caso em que a ação será apensada a esta última), quer nas situações em que se verifique ab initio uma elevada improbabilidade de vir a ocorrer uma conciliação da vontade das partes no processo de atribuição da casa de morada de família, numa perspetiva de economia processual (princípio subjacente ao regime criado pelo D/L n.º 272/2001), e ainda que o divórcio/separação haja sido por mútuo consentimento.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"II. FUNDAMENTAÇÃO
[...] II.2.
A única questão que cumpre apreciar consiste em saber se a presente ação de atribuição de casa de morada de família deveria ter sido intentada na conservatória do registo civil (como decidiu o tribunal recorrido) ou, ao invés, no tribunal, por apenso à ação de divórcio sem consentimento dos cônjuges. [...]
II.4.
Apreciação do objeto do recurso
A presente ação de atribuição da casa de morada foi intentada ao abrigo do artigo 1793.º do Código Civil, na decorrência da dissolução do vínculo matrimonial entre a recorrente e o recorrido, ocorrido no ano de 2016.
Pretende a autora/recorrente que seja constituída uma relação de arrendamento entre ela e o requerido/recorrido tendo por objeto um imóvel que é bem próprio do segundo.
A recorrente insurge-se contra a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, o qual indeferiu liminarmente a petição inicial por considerar que, pelo menos de início, é a conservatória do registo civil a entidade competente para a ação atentas as suas competências previstas no D/L 272/2001, de 13/10.
Vejamos se lhe assiste razão.
Previamente se dirá que nos termos do artigo 1793.º do Código Civil o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, ainda que esta seja um bem próprio do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
Nos termos do artigo 2.º, n.º 2, do CPC, a todo o direito corresponde a ação adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, exceto quando a lei determine o contrário. É a garantia do direito de ação, componente do direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República.
Os tribunais não têm o monopólio da resolução dos conflitos. No particular domínio que nos ocupa, o D/L n.º 272/2001, de 13 de outubro, veio, designadamente:
(i) atribuir competência decisória exclusiva ao conservador de registo civil em matéria de separação e divórcio por mútuo consentimento (excetuando os casos de conversão de divórcio litigioso)[...]; e(ii) operar a transferência de competência para as conservatórias de registo civil em determinados processos de jurisdição voluntária desde que se verifique ser a vontade das partes conciliável, e sem prejuízo da remessa para o tribunal quando haja oposição do requerido.
Com efeito, o D/L n.º 272/2001 contempla um procedimento perante o conservador de registo civil tendente à formação de acordo das partes, o qual é aplicável aos pedidos enunciados no n.º 1 do artigo 5.º (entre os quais a atribuição da casa de morada de família a um dos dois ex-cônjuges – cfr. alínea b)). Tal procedimento inicia-se com a apresentação de um pedido entregue na conservatória, fundamentado de facto e de direito, com indicação das provas e junção de prova documental (cfr. artigo 7.º), após o que se seguirá a citação do requerido para deduzir oposição, juntar e indicar provas (artigo 7.º, n.º 2); se for apresentada oposição, é marcada uma tentativa de conciliação (artigo 7.º, n.º 3) e se se frustrar o acordo, o processo é remetido ao tribunal judicial competente (artigo 8.º).
O procedimento previsto no artigo 5.º comporta, portanto, duas fases: a primeira, materialmente administrativa, desenrola-se na conservatória e visa a obtenção de um rápido consenso, seja por formação de acordo seja por revelia operante; a segunda, após a junção da oposição do requerido, não se conseguindo acordo na conservatória, com a remessa do processo para o tribunal, de natureza contenciosa, formalmente judicial – assim, Ac. STJ de 31.05.2011, processo n.º 2563/09.6TMPRT.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
O n.º 2 do citado artigo 5.º preceitua que:
«O disposto na presente secção não se aplica às pretensões referidas nas alíneas a) a d) do número anterior que sejam cumuladas com outros pedidos da mesma ação judicial, ou constituam incidente ou dependência de ação pendente, circunstâncias em que continuam a ser tramitadas nos termos previstos no Código de Processo Civil» [...].
Como conciliar este preceito com o regime previsto no Código de Processo Civil relativo à atribuição da casa de morada de família? E será que a última parte do referido preceito se aplica ainda que a ação de divórcio/separação esteja finda?
Quando o D/L n.º 272/2001 entrou em vigor (01.01.2002; cfr. artigo 22.º), a ação especial de atribuição da casa de morada de família estava regulada no artigo 1413.º do CPC, com a redação emergente do D/L n.º 329-A/95, e cujos n.ºs 1 e 4 tinham a seguinte redação:
«1- Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transferência do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 84.º do Regime do Arrendamento Urbano, deduzirá o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito. (…)«4 – Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou de separação litigiosos, o pedido é deduzido por apenso» [...]
Da conjugação do referido artigo 1413.º com o artigo 5.º, n.º 2, do D/L n.º 272/2001, de 13.10 resultava que o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos do artigo 1793.º do CC era necessariamente dependência da ação de ação de divórcio/separação, pendente ou finda, quando aquela fosse/tivesse sido litigiosa. Ou seja, a ação de atribuição da casa de morada de família tinha de correr no tribunal judicial, não se justificando, pois, que o processo se iniciasse na conservatória do registo civil com vista à obtenção de um acordo. O que, à luz da ratio do regime criado pelo D/L n.º 272/2001, de 13.10, bem se compreendia pois que nestes casos em que o divórcio havia sido litigioso, a grande improbabilidade de acordo quanto a matérias decorrentes da dissolução do vínculo matrimonial, justificava que o processo se iniciasse logo junto dos tribunais, a fim de evitar um procedimento inútil que a própria lei proíbe (cfr. artigo 130.º do CPC). Ao invés, nos casos em que o divórcio houvesse sido decretado na conservatória do registo civil – necessariamente divórcios por mútuo consentimento, nos termos previstos no artigo 12.º do D/L n.º 272/2001 – então o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos previstos no artigo 1793.º do CC, deveria iniciar-se na conservatória competente; efetivamente, se o divórcio/separação já hajam sido consensuais, a probabilidade de obtenção de um acordo entre as partes interessados em questões relacionadas com vida familiar justificava que os respetivos processos se iniciassem em instâncias que não os tribunais, privilegiando-se a celeridade, mas sem prejuízo, como supra assinalámos, da remessa do processo para os tribunais existindo oposição de qualquer interessado.
Não existia, portanto, qualquer colisão entre o referido artigo 1413.º do CPC e o artigo 5.º do D/L n.º 272/2001, de 13.10 na medida em que este último diploma não subtraiu à competência dos tribunais a apreciação dos pedidos de atribuição de casa de morada de família nos casos em que também pelos tribunais tivesse corrido a ação de divórcio/separação litigiosos – assim, Ac. RE de 20.10.2016, processo n.º 559/14.5T8TMR-A.E, relatora Maria João Sousa e Faro, consultável em www.dgsi.pt. Ou seja,
Abre-se aqui um parêntesis para discorrer sobre a ratio do D/L n.º 272/2001, na medida em que aquela constitui um importante subsídio para determinar o sentido do referido artigo 5.º, n.º 2. E essa ratio surge evidenciada no Preâmbulo daquele diploma legal, onde se lê: «importa desonerar os tribunais de processos que não consubstanciam verdadeiros litígios, permitindo uma concentração de esforços naqueles que correspondem efetivamente a uma reserva de intervenção judicial. Assim, aproxima-se a regulação de determinados interesses do seu titular, privilegiando-se o acordo como forma de solução e salvaguardando-se simultaneamente o acesso à via judicial nos casos em que não seja possível obter uma composição pelas próprias partes».
O atual artigo 990.º, n.º s 1 e 4, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Atribuição da casa de morada de família, prescreve que:
«1 - Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito»«4 - Se estiver pendente ou tiver corrido ação de divórcio ou separação, o pedido de atribuição da casa de morada de família nos termos do art. 1793.º do Código Civil é deduzido por apenso àquelas ações» [...].
Confrontando o antigo artigo 1413.º do CPC com o atual artigo 990.º, verifica-se que a evolução legislativa do regime jurídico da ação de atribuição/alteração da casa de morada de família foi no sentido de alargamento da competência do tribunal. Com efeito, o atual artigo 990.º, n.º 4, do CPC para além de manter a competência do tribunal para conhecer dos pedidos de atribuição de casa de morada de família (e de alteração) quando o divórcio aí tenha sido decretado (e não apenas quando o processo aí estiver pendente) passou a abranger as situações em que os pedidos de atribuição da casa de morada de família surgem na decorrência de processos de divórcio (ou de separação) por mútuo consentimento, mas em que não existe consenso quanto à questão da atribuição da casa de morada de família, na medida em que suprimiu o adjetivo “litigioso” – assim, Ac. RE de 20.10.2016, supra citado.
A história evolutiva do regime jurídico conjugada com a própria ratio do sistema criado pelo D/L n.º 272/2001, de 13.10, lança luz sobre o sentido que deve ser atribuído ao artigo 5.º, n.º 2, do D/L n.º 272/2001, de 13.10, preceito que foi invocado pelo tribunal recorrido para sustentar o indeferimento liminar da petição inicial; assim, e sempre numa perspetiva de economia processual (princípio subjacente ao regime criado pelo D/L n.º 272/2001, como supra assinalámos), o pedido de atribuição da casa de morada de família, sustentado pelo disposto no artigo 1793.º do CC, deve ser apresentado no tribunal quer nos casos em que ali corre ou correu uma ação de divórcio/separação litigioso (caso em que a ação será apensada a esta última), quer nas situações em que se verifique ab initio uma elevada improbabilidade de vir a ocorrer uma conciliação da vontade das partes no processo de atribuição da casa de morada de família, ainda que o divórcio/separação haja sido por mútuo consentimento.
No caso sub judice, o pedido de atribuição da casa de morada de família surge na decorrência de um processo de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges que foi decretado por sentença já transitada em julgado.
Por conseguinte e em face do exposto, decorre que bem andou a recorrente ao propor a presente ação no tribunal, por dependência da ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
Destarte, impõe-se a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que convoque os ex-cônjuges para a tentativa de conciliação prevista no artigo 990.º, n.º 2, do Código de Processo Civil."
[MTS]