"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/10/2022

Jurisprudência 2022 (35)


Partilha de bens comuns; inventário;
competência material; competência territorial


1. O sumário de RP 24/1/2022 (1240/21.4T8AVR.P1) é o seguinte:

I - As alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro criaram um regime de repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário, sem excluir em qualquer caso o recurso ao tribunal judicial. Apenas torna obrigatória a sua instauração no tribunal nas situações previstas no art. 1083º/1 CPC.

II - O inventário para partilha dos bens comuns do casal, na sequência de divórcio decretado na competente conservatória do registo civil, pode ser instaurado, por escolha do requerente, no tribunal ou no cartório notarial, nos termos do art. 1087º/2 CPC.

III - Optando o requerente por instaurar o processo no tribunal, determina-se o tribunal competente por aplicação do regime previsto no art. 80º CPC.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A questão a decidir consiste em determinar se o tribunal de família e menores é competente para tramitar e julgar o inventário para partilha de bens comuns, subsequente a divórcio decretado na conservatória do registo civil.

2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os termos do relatório.

3. O direito

- Da competência em razão da matéria -

Nas conclusões de recurso o apelante insurge-se contra a decisão que julgou o Tribunal de Família e Menores de Aveiro incompetente em razão da matéria para tramitar e julgar o processo de inventário para partilha de bens comuns, na sequência de divórcio por mútuo consentimento decretado na competente conservatória do registo civil.

A questão a decidir consiste em determinar se ao abrigo do atual regime do processo de inventário, perante as alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, o tribunal de família e menores tem competência em razão da matéria para julgar estas ações, quando o divórcio foi decretado na competente conservatória do registo civil ou se o regime previsto no art. 122º/2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei 62/2013 de 26 de agosto) impõe uma interpretação restritiva do regime previsto no art. 1083º/2 CPC.

A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.

A competência abstrata de um tribunal designa a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.

A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada ação, significa que a ação cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstrata do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas.

Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito [---].

A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal [---].

Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.

Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.

A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição [---].

A incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria constitui exceção dilatória que pode ser conhecida em qualquer estado da causa e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo até ao trânsito em julgado da sentença – artigos 96.º e 97.º, n.º 2 CPC.

Nos termos do art. 99º/1 CPC a verificação da incompetência absoluta implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comporta.

Na situação concreta a petição deu entrada a 16 de abril de 2021 na Secção de Família e Menores de Aveiro. A requerente peticiona o inventário para partilha dos bens comuns do casal na sequência de divórcio que foi decretado na conservatória do registo civil.

Atendendo à data da instauração da ação tem plena aplicação o novo regime do processo de inventário previsto na Lei 117/2019 de 13 de setembro.

Como se sabe é a lei substantiva que define os direitos, mas é a lei processual que estabelece o meio ou forma de os exercer (art. 2º/2 CPC).

A Lei 117/2019 de 13 de setembro, que entrou em vigor no dia 01 de janeiro de 2020 ( art. 15º) veio reintroduzir no Código de Processo Civil o regime do inventário judicial.

Resulta do disposto no art. 1082º CPC que o processo de inventário cumpre entre outras as seguintes funções: partilhar bens comuns do casal.

O processo de inventário constitui o meio próprio para partilhar os bens comuns do casal.

Nos termos do art. 1133º/1 CPC decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns.

O processo de inventário judicial constitui o meio processual próprio para obter a partilha dos bens comuns do casal por cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges com fundamento numa das situações previstas no preceito; vigore entre os cônjuges um regime de bens diverso do da separação; inexistência de acordo quanto à forma de efetuar a partilha.

Contudo, a Lei 119/2019 de 13 de setembro, veio estabelecer uma repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário.

O art. 1083º/1 CPC passou a prever que “o processo de inventário é da competência exclusiva dos tribunais judiciais:

a) nos casos previstos nas alíneas b) e c) do nº2 do art. 2102º do Código Civil;
b) sempre que o inventário constitua dependência de outro processo judicial;
c) quando o inventário seja requerido pelo Ministério Público”.

Determina o nº2 do mesmo preceito que: ”nos demais casos, o processo pode ser requerido, à escolha do interessado que o instaura ou mediante acordo entre todos os interessados, nos tribunais judiciais ou nos cartórios notariais”.

Tratando-se de divórcio ou de separação judicial decretados por sentença judicial, a competência para o inventário é exclusiva dos tribunais judiciais, nos termos do art. 1083º/1 b) CPC conjugado com o art. 206º/2 CPC.

Nas situações em que o processo de inventário é decorrência de decisão de divórcio ou separação por mútuo consentimento proferida na Conservatória do Registo Civil o requerente pode optar entre o tribunal judicial competente e o cartório notarial, nos termos do art. 1083º/2 CPC.

Neste caso, optando a parte, por instaurar o processo no tribunal judicial deve atender-se ao critério do art. 80º CPC, para determinar o tribunal competente em razão do território, pois a lei não estabeleceu qualquer norma especial sobre tal matéria.

Como observa ABRANTES GERALDES:” [n]este caso, embora o inventário ainda encontre nessa decisão a sua motivação, o cônjuge requerente pode optar entre o cartório notarial (art. 1083º/2 CPC) ou o juízo de família e menores que for territorialmente competente em função do critério definido pelo art. 80º” [ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES et al Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2020, pag. 630].

O mesmo AUTOR defende, ainda, “como a competência para aquelas ações de estado (divórcio, separação ou anulação de casamento) é atribuída aos juízos de família e de menores (sem prejuízo da competência atribuída às conservatórias do registo civil quanto ao divórcio ou separação por mútuo consentimento), compete-lhes também tramitar, por apenso, os inventários subsequentes, quer por via do art.122º/2 da LOSJ, devidamente adaptado ao facto de ter sido restaurada a competência dos tribunais judiciais para o processo de inventário, quer por via do art. 206º/2 (competência por conexão)” [ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES et al Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, ob. cit., pag. 528].

Efetivamente, o art. 122º/2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei 62/2013 de 26 de agosto, com a redação da Lei 40-A/2016 de 22 de dezembro) prevê:

“ Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”.

São os juízos de família e menores os tribunais competentes em razão da matéria para a tramitação e julgamento do processo de inventário para partilha dos bens comuns do casal na sequência de divórcio decretado na conservatória do registo civil, caso seja esse o tribunal territorialmente competente por aplicação da regra do art. 80º CPC.

Argumenta-se na decisão recorrida que a norma do art. 122º/2 da Lei da Organização do Sistema Judiciário foi criada no pressuposto da competência dos cartórios notariais para a tramitação do processo de inventário e não sofreu qualquer alteração com as alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, o que justifica uma interpretação restritiva do art. 1083º/2 CPC, excluindo da competência dos tribunais os processos de inventário para partilha dos bens comuns na sequência do divórcio decretado na conservatória do registo civil.

Nos termos do art. 9º/3 CC na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.

A alteração legislativa foi motivada “pela frustração dos objetivos que o legislador se propusera alcançar com a desjudicialização operada pela Lei 23/13” e ainda, “perante objeções que se suscitaram em torno do princípio constitucional da reserva do juiz” [ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES et al Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, ob. cit., pag. 519].

Perante a dimensão da alteração operada, com a reintrodução do regime do processo de inventário judicial, necessariamente esteve presente na mente do legislador as situações em que o processo de divórcio correu os seus termos na conservatória do registo civil.

As alterações introduzidas pela Lei 117/2019 de 13 de setembro criaram, como se referiu, um regime de repartição de competências quanto à tramitação do processo de inventário, sem excluir em qualquer caso o recurso ao tribunal judicial. Apenas torna obrigatória a sua instauração no tribunal nas situações previstas no art. 1083º/1 CPC.

A redação do art. 122º/2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário garante tal regime concorrente, na medida em que não só prevê a competência dos tribunais de família e menores para a tramitação do processo, como ainda, prevê a intervenção do juiz no processo, quando este seja instaurado no cartório notarial.

Uma interpretação restritiva da norma contida no art. 1083º/2 CPC não tem apoio na lei e ignora as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, aspetos a ter presente na sua interpretação ( art. 9º/2 CC).

Conclui-se que ao abrigo do art. 1087º/2 CPC pode o interessado requerer no tribunal competente processo de inventário para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio por mútuo consentimento decretado na conservatória do registo civil.

Neste sentido se pronunciou o Ac. TRP 24 de maio de 2021, Proc. 171/20.0T8ILH.P1 (acessível em www.dgsi.pt) subscrito pela aqui relatora e 1º adjunto na qualidade de 1º e 2º adjuntos.

No caso concreto, a requerente veio requerer o inventário para partilha dos bens comuns, na sequência do divórcio por mútuo consentimento decretado na conservatória do registo civil, por não existir acordo quanto à partilha e ter vigorado no casamento o regime de comunhão de adquiridos.

O requerido reside em Ílhavo. O Município de Ílhavo faz parte da área de competência territorial da Secção de Família e Menores da Instância Central do Tribunal de Aveiro.

Tendo presente o pedido e causa de pedir, a Secção de Família e Menores de Aveiro é competente em razão da matéria para julgar o presente processo, nos termos do art. 122º/2 da Lei de Organização do Sistema Judiciário, conjugado com o art. 80º/1 CPC, art. 68º/1 h) Anexos – Mapa III do Regulamento da Organização do Sistema Judiciário (DL 49/2014 de 27 de março) e art. 1082º/d), 1087º/2 e 1133º CPC."

[MTS]