Providência cautelar;
periculum in mora*
1. O sumário de RL 23/2/2022 (29327/21.6T8LSB.L1-4) é o seguinte:
Não se verifica o periculum in mora quando o trabalhador vê as suas funções alteradas temporariamente, sem perda da garantia base e subsídio de senioridade, e a empregadora, grande empresa, em princípio não levanta dúvidas quanto à sua capacidade para ressarcir quaisquer danos que eventualmente aquele possa sofrer, porventura decorrentes de uma diminuição das prestações acessórias, estando assim assegurado, à partida, o equilíbrio entre os interesses legítimos do trabalhador na manutenção da categoria e recebimento da retribuição, e da empregadora na gestão dos recursos humanos.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Do exposto resulta desde já que parte daquilo que requerente e recorrida pretendem e esgrimem no recurso não é razoável e não pode colher: a recorrente que eventualmente se defira já a providencia pedida - sem a contraparte ter sequer sido ouvida e podido oferecer prova -; a requerida que se aprecie a falta do fumus boni júris que a decisão recorrida não pôs em causa e que a recorrente, por isso, não desenvolveu, e a que, em todo o caso, não logrou, dado o indeferimento liminar, oferecer prova.
Restringir-nos-emos, pois, ao periculum in mora.
Duas áreas articuladas: danos não patrimoniais e perda de rendimentos.
Quanto aos primeiros, não podemos deixar de acompanhar a decisão recorrida, quando refere não "compreender o vexame que a requerente diz sentir quando grande parte dos seus colegas foram abrangidos por um despedimento coletivo recente e a requerente não o foi. Por outro lado, se a mesma estava na situação de incapacidade para o trabalho aquando da comunicação (art. 8º do seu requerimento de providência) não se entende como afirma depois que foi essa decisão que motivou a sua baixa (art. 33º do mesmo requerimento), e como é que surge o vexame e humilhação quando, ao que se percebe, nem chegou a desempenhar as novas funções de técnica comercial". Objetivamente, o que temos é uma mudança temporária de funções, que a requerente nem chegou a iniciar. Estava de baixa, logo também não se vislumbra a pretensa causalidade entre a mudança de funções e a doença; e nem por que motivo haveria de se sentir menosprezada ou ofendida por isso (a argumentação da retroversão por parte da empregadora afigura-se demasiado longínqua para motivar sequer a conduta, até porque carece de prova insuscetivel de efetuar num juízo como o da providência cautelar).
O mais relevante é, pois, a perda patrimonial.
Mas será isso lesão grave e de difícil reparação?
É improvável que, para a requerida, companhia de grande dimensão na qual o Estado tem participação significativa, haja dificuldade de maior em ressarcir eventuais danos que a requerente possa sofrer e que devam ser reparados por aquela. Não são expectáveis tais dificuldades, e, atenta a natureza dos danos, é óbvio que a sua reparação, à partida, é sempre possível.
Nem é de presumir que a requerente tenha uma situação tão melindrosa que uma alteração como a alegada - sem com isto minimizar a expressão que tal possa ter, a comprovar-se - a coloque em tamanhas dificuldades que o ressarcimento póstumo não seja virtualmente possível.
Assim tem sido entendido a jurisprudência. Veja-se, p. ex., o acórdão da Relação do Porto de 29.4.2019, que entendeu que "a mera possibilidade de incumprimento de alegadas obrigações familiares, consubstanciada na simples privação de prestações complementares, que incluem instrumentos de trabalho, quando a requerente se encontrava de baixa médica e de licença de maternidade, não constitui lesão grave que justifique procedimento cautelar inominado", mais referindo que "não pode uma qualquer “lesão grave” consubstanciar-se na simples privação das alegadas prestações complementares, que incluem instrumentos de trabalho, quando a requerente se encontrava de baixa médica e de licença de maternidade".
Até porque há que ter em conta:
- primeiro, que se trata de uma alteração obviamente temporária;
- segundo, como a requerente refere, a R., não estão em causa o vencimento base e o de senioridade, mas tão somente prestações complementares e despesas porventura acrescidas.
Desta sorte, e face às demais circunstâncias, não se pode dizer que existe um perigo decorrente da própria demora da tramitação processual.
Acresce ainda que há que ter em conta, cremos, a circunstância de, à partida, estarem em causa interesses do trabalhador protegidos genericamente na Constituição, mas também interesses do empregador na gestão, outrossim de valor constitucional, como resulta desde logo dos art.º 59 e 61 da CRP. O que significa que há de buscar-se o adequado equilíbrio entre ambos os interesses, em termos que maximizem as vantagens para as partes e a comunidade.
O que significa que não poderá, sem mais, obstar a qualquer alteração provisória de funções, como também o empregador não poderá impor alterações a esmo e sem critério.
Assim entendido, tendo em conta que nada impede o oportuno ressarcimento da trabalhadora, se disso for caso, cremos razoável a conclusão do despacho de que não se mostra articulado o periculum in mora. O contrário seria fazer prevalecer um dos aludidos interesses sobre o outro sem procurar o necessário equilíbrio (e em boa medida com fundamento em alegadas circunstâncias pessoais, como a situação familiar da requerente).
Desta sorte, acompanha-se o despacho recorrido.
O que acarreta a improcedência do recurso.
*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, o acórdão segue, em grande parte, a infeliz orientação segundo a qual a verificação do periculum in mora depende da possibilidade do ressarcimento pelo requerido dos danos sofridos pelo requerente.
Já houve a oportunidade de criticar esta orientação (Jurisprudência 2021 (189)). Repete-se: o que releva para aferir o periculum in mora é o prejuízo que o requerente sofre se não lhe for concedida, de imediato, uma tutela jurídica, ainda que provisória, do seu direito, não o prejuízo que esse requerente sofre se não lhe vier a ser ressarcida a violação desse direito.
No caso concreto, a solução é tanto mais duvidosa quanto faz depender alegados direitos dos trabalhadores da capacidade económica da empresa na qual laboram.
MTS