Petição inicial; petição deficiente;
convite ao aperfeiçoamento
1. O sumário de RP 24/1/2022 (380/18.1T8ESP-A.P1) é o seguinte:
Se a autora aduz factos dos quais se pode concluir que invoca uma simulação relativa, mas tais factos são insuficientes para integralmente a caraterizar, desde logo quanto à eventual participação da vendedora no acordo simulatório, não estamos perante uma petição inicial inepta, mas perante o poder/dever de o tribunal convidar a autora ao suprimento na exposição da matéria de facto.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A primeira questão suscitada no recurso, ainda que sem daí serem retiradas consequências diretas, pretende-se com a pretensão de ver definida a natureza da presente ação, sustentando o apelante que há despachos contraditórios sobre essa natureza. O recorrente não invoca, no entanto, o caso julgado formal (artigo 620, n.º 1 do CPC) ou a precedência de casos julgados contraditórios (625, n.º 1 do CPC), porquanto a tal obstaria o disposto no artigo 630 do mesmo diploma. O despacho repetidamente referido pelo apelante (despacho de 4.01.2021) é um despacho de cumprimento do contraditório, sem efeito de caso julgado e que, por isso, verdadeiramente, não pode estar em contradição com qualquer outro, pois não se trata de decisão definitiva. Diga-se, de imediato, que o mesmo sentido, o de não constituir decisão definitiva, deve ser dado ao despacho proferido a 27.03.2019 – ao contrário do que sustenta a recorrida/autora – já que se trata de um despacho convite, o qual, nada decidindo, é irrecorrível.
Quanto à questão da ineptidão da petição inicial, a primeira nota é que a mesma não foi suscitada na contestação do réu, mas, ainda assim – e sendo de conhecimento oficioso – foi apreciada no despacho de que se recorre, e invocada pelo réu em pronúncia anterior. Tal questão tem que ser vista perante a ação concreta interposta pela autora e perante o despacho que considerou que a mesma não ocorria. O que o apelante vem sustentar, agora, é que a ineptidão decorre de insuficiente alegação de factos na petição e de o imóvel “reivindicado” não está bem identificado, o que, à primeira vista, se revela insuficiente para considerar como ocorrido aquele vício. Mas importa apreciar melhor a questão.
Olhando aos pedidos formulados pela autora na sua petição inicial, diríamos, aos pedidos efetivamente expressos nesse articulado, a primeira conclusão a retirar é que, verdadeiramente, não estamos perante uma ação de reivindicação nem perante uma ação de petição de herança, uma vez que, quer a colação, quer a imputação da doação à quota hereditária pressupõem a subsistência da doação. De todo o modo, a autora não deixa de alegar as circunstâncias de facto de onde se retira a existência de um negócio simulado. Como se diz no despacho recorrido, a autora (e citamos) “alega factos integradores de uma possível nulidade por simulação de negócio onde ela e o réu outorgaram como outorgantes compradores da nua propriedade e do usufruto, respetivamente, do imóvel em disputa, sustentando que a aquisição foi feita pelo falecido DD…, que era quem o queria adquirir, o pagou e dele tomou posse após a escritura. Dessa simulação que a mesma pode arguir a todo o tempo decorre nulidade que pode mesmo ser conhecida oficiosamente e, como pretende a Autora, pode ser aplicado a tal contrato de compra e venda o regime legal do negócio que as partes quiseram de facto realizar, a saber, a aquisição a favor do falecido DD…”. Ora, não deixa de ser relevante que a nulidade possa ser invocada a todo o tempo e que é de conhecimento oficioso – o que se revela fundamental, porquanto a autora não formula, antecedendo os demais pedidos, um pedido expresso de declaração de nulidade do negócio. Sucede, porém, que não podemos acompanhar o despacho recorrido quando diz que a o negócio que as partes quiseram realizar era a aquisição da propriedade pelo falecido DD…, porquanto a autora expressamente formula o pedido de a fração doada ser restituída, ou seja, no sentido alegado, ser submetida à colação. Dito de outro modo, o que autora afirma – mesmo não tendo pedido a declaração de nulidade da compra e venda – é que o conluio entre o falecido e o réu levou a que, simulando-se uma compra e venda, tivesse sido – ou querendo-se que fosse – uma doação, em concreto da nua propriedade e em benefício do réu. Efetivamente, e repetimos, a autora pretende que a fração doada seja submetida à colação ou (alínea c) do pedido), pelo menos, o valor da doação seja imputado à quota hereditária do réu. Diríamos, de outra forma, que as pretensões concretamente formuladas pela autora pressupõem necessariamente a subsistência da doação.
Mas sendo assim, como entendemos que o é, parece-nos claro que da petição inicial, e ao contrário do decidido, não resulta factualidade bastante para integrar a simulação negocial que os demais pedidos pressupõem, ou seja, há uma insuficiência de matéria de facto para o acordo simulatório. Desde logo, mas relevantemente, porque a vendedora do imóvel (interveniente na escritura de compra e venda) não foi envolvida nesse acordo simulatório. Dito de outro modo – e sem descurar a posterior ponderação da eventual ilegitimidade passiva – é fundamental esclarecer se a sociedade vendedora tomou parte nesse acordo (invocado como ocorrido entre o réu e o de cujus) no sentido de, na venda, encobrirem uma doação. Podemos dizer, ainda, que, da conjugação do contrato de compra e venda documentado nos autos e da (insuficiente) alegação fáctica da autora, não podemos considerar, diversamente do que se entendeu no tribunal recorrido, que estejamos apenas perante uma simulação quanto aos sujeitos, mas também perante uma simulação relativa, pretendendo-se, a mais, a subsistência de uma parte do negócio, concretamente, a venda do usufruto à autora.
Assim, e não se estando perante um caso de ineptidão da petição inicial, os autos revelam a necessidade de suprimento de insuficiências na exposição da matéria de facto (artigo 590, n.º 4 do CPC), o que, não tendo sido feito “configura a omissão de um ato que a lei prescreve” [António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 681], devendo, por isso, a autora ser convidada ao referido suprimento.
A conclusão anterior prejudica o conhecimento das demais questões. Note-se, de todo o modo, que, não sendo a prescrição invocável nos termos em que o foi pelo réu, sempre a simulação é invocável a todo o tempo; a exceção da usucapião tinha sido admitida pelo tribunal (basta ler os temas de prova n.ºs 5 a 8) e a eventual caducidade que o apelante identifica como sendo do artigo 322 do CC, não se encontra aí, mas a prescrição aí pressuposta mostra-se prejudicada, pois não está em causa, desde logo nesta sede, uma ação de petição da herança. Seja como for, estas questões sempre se mostram, por ora, prejudicadas pela conclusão de, atenta a insuficiência da matéria de facto alegada pela autora e a natureza negócio dissimulado, se impor o convite previsto no n.º 4 do artigo 590 do CPC."
[MTS]
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