"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/10/2022

Jurisprudência 2022 (38)


Processo de acompanhamento de maiores;
medida provisória; contraditório


1. O sumário de RG 10/2/2022 (188/11.5TBCMN-B.G1) é o seguinte:

I - O maior acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, incluindo o decretamento de medidas provisórias e/ou cautelares.

II - A não audição deve ser excecional e justificada, nomeadamente em casos de urgência manifesta.

III - Numa situação de urgência e visando-se assegurar, cautelarmente, o bem-estar e a segurança do maior acompanhado, o Tribunal pode decretar a remoção provisória do acompanhante sem prévio cumprimento do contraditório.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, instituiu o regime jurídico do maior acompanhado, em substituição dos institutos da interdição e da inabilitação e, para além, de alterações parcelares noutros diplomas, introduziu importantes alterações no Código Civil e no Código de Processo Civil. [...]

Segundo o n.º 2 do art. 139º do CC, em «qualquer altura do processo, podem ser determinadas as medidas de acompanhamento provisórias e urgentes, necessárias para providenciar quanto à pessoa e bens do requerido».

Por outro lado, nos termos do art. 140º do CC, o “acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença”, sendo seus destinatários os maiores impossibilitados, “por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres” (art. 138º do CC).

No que se refere ao âmbito e conteúdo do acompanhamento, dispõe o art. 145º, n.º 1, do CC que o acompanhamento se limita ao necessário, elencando o n.º 2 desta norma alguns exemplos desses regimes de acompanhamento, os quais podem ser determinados em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, mantendo o beneficiário, em regra, o pleno exercício dos seus direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente, tal como recorre do art. 147º do CC.

No exercício da sua função, o acompanhante privilegia o bem-estar e a recuperação do acompanhado, com a diligência requerida a um bom pai de família, na concreta situação considerada” (art. 146º, n.º 1 do CC) (---).

O acompanhante pode ser removido e exonerado, sem prejuízo do art. 144º, com os mesmos fundamentos da remoção e a exoneração do tutor, ou seja, quando falte ao cumprimento dos deveres próprios do cargo ou revele inaptidão para o seu exercício ou quando, por facto superveniente, se constitua nalguma das situações que impediriam a sua nomeação (arts. 152º e 1948.º do CC).

A remoção ou o afastamento compulsivo do acompanhante do exercício do cargo é decretada pelo tribunal, ouvido o conselho de família, a requerimento do Ministério Público, de qualquer parente do menor, ou de pessoa a cuja guarda este esteja confiado de facto ou de direito (art. 1949.º do CC) (---).

O acompanhamento pode ser extinto ou modificado por decisão judicial «que reconheça a cessação ou a modificação das causas que o justificaram» (art. 149º, n.º 1 do CC). Tem legitimidade para pedir a cessação ou a modificação do acompanhamento as pessoas com legitimidade para pedir o seu decretamento (n.º 3 do art. 149º). Os efeitos dessa decisão podem retroagir à data em que se verificou a causa da cessação ou modificação (n.º 2 do art. 149º).

O processo de acompanhamento é, assim, o único meio através do qual se poderá obter a aplicação de uma medida de acompanhamento, uma vez que, de harmonia com o art. 139.º, n.º 1, do CC, é obrigatoriamente decretada pelo tribunal, bem como a sua revisão, cessação ou modificação, de acordo com os arts. 149.º, n.º 1 e 153.º do mesmo diploma.

Este novo paradigma do regime do maior acompanhado teve também influência em termos adjetivos, tendo o CPC sido modificado em conformidade, adaptando-se a lei processual às exigências do novo modelo.

Atentando no regime processual constante dos arts. 891º a 904º do CPC e relativo ao processo especial de acompanhamento de maiores, importa ter presente que o «processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes» (n.º 1 do art. 891º do CPC).

Assim, por força da enunciada remissão para os processos de jurisdição voluntária deve o intérprete ter em atenção os seguintes aspetos (Cfr. Pedro Callapez, Processos Especiais, Vol. I, Acompanhamento de Maiores, AAVV, coordenação de Rui Pinto e Ana Alves Leal, ed. da AAFDL, 2020, pp. 105/106, e Miguel Teixeira de Sousa, “O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais”, www.cej.mj.pt, CEJ, 2019, pp. 45/46):

- Poderes oficiosos do juiz na investigação dos factos e recolha de meios de prova (art. 986.º, n.º 2);

Critério de decisão, devendo o juiz, considerando a vontade do beneficiário, decretar as medidas que julgue mais conveniente e oportuna ao caso concreto, de acordo com critérios de oportunidade e não de legalidade estrita (art. 987.º);

- Alteração das decisões, podendo, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, as medidas ser alteradas, com fundamento em circunstâncias (objetiva ou subjetivamente) supervenientes que justifiquem a alteração (art. 988.º, n.º 1).

Deste modo, embora sistematicamente o processo de acompanhamento de maior não esteja inserido nos processos de jurisdição voluntária (art. 986.º e ss. do CPC), a verdade é que, atendendo ao âmbito alargado da remissão, se trata, em termos substanciais, de um processo de jurisdição voluntária (---) (---).

O n.º 2 do art. 891.º do CPC – adjetivando o n.º 2 do art. 139º do CC – prevê a possibilidade de, em qualquer altura do processo, poderem ser requeridas e decretadas, mesmo oficiosamente, as medidas cautelares de acompanhamento que a situação apurada no processo justificar.

A lei distingue, pois, entre medidas de acompanhamento provisórias e urgentes (art. 139º, n.º 2, do CC) e medidas cautelares (art. 891.º, n.º 2, do CPC).

Segundo Miguel Teixeira de Sousa (Cfr. “O Regime do Acompanhamento de Maiores: Alguns Aspectos Processuais”, www.cej.mj.pt, CEJ, 2019, pp. 43/44), a destrinça deve ser feita nos termos seguintes: enquanto as medidas provisórias e urgentes se reconduzem a medidas que o tribunal “impõe para proteção da pessoa ou do património do beneficiário”, designadamente o “congelamento das contas bancárias do beneficiário ou que alguém, em representação deste beneficiário, trate da obtenção, junto dos serviços da segurança social, de uma pensão ou procure regularizar a situação sucessória do beneficiário junto de outros herdeiros”, já as medidas cautelares consubstanciam uma antecipação de uma medida de acompanhamento – “por exemplo: o tribunal pode sujeitar, desde já, a celebração de certa categoria de negócios à autorização de uma outra pessoa (que pode vir a ser o futuro acompanhante)”.

Contudo, tais medidas provisórias (e cautelares) são, por natureza, processuais e sempre circunscritas ao processo de constituição, modificação ou revisão da medida de acompanhamento. Neste sentido, são sempre dependentes do pedido principal que circunscreve o objeto do acompanhamento, não sendo concebíveis como medidas autolimitadas e per se (Cfr. Geraldo Rocha Ribeiro, “Os deveres de cuidado e a responsabilidade do acompanhante perante o beneficiário - Um primeiro ensaio”, Julgar, n.º 41, Maio-Agosto/2020, Almedina, p. 103).

O decretamento de tais medidas é relevante para acautelar a situação do beneficiário até à prolação da sentença de acompanhamento ou de alteração dessa medida, de forma que o mesmo possa exercer (se necessário através de terceiro que o represente) direitos ou cumprir deveres que têm um horizonte temporal limitado (Cfr. Ana Luísa Santos Pinto, “O regime processual do acompanhamento de maior”, Julgar, n.º 41, Maio-Agosto/2020, Almedina, p. 149.).

O acompanhado deve ser ouvido relativamente a todas as decisões que sejam tomadas e que lhe digam diretamente respeito, incluindo o decretamento de medidas provisórias ou cautelares. Por isso, a não audição deve ser excecional e justificada (casos de urgência manifesta e de prova documental idónea e suficiente) (Cfr. Ana Luísa Santos Pinto, estudo e obra citados, p. 149.).

A instância relativa ao processo no qual tenha sido decretada a medida de acompanhamento pode renovar-se, a todo o tempo, por alteração da situação do beneficiário (---).

Com efeito, há lugar à revisão ou levantamento da medida de acompanhamento sempre que a evolução da situação do beneficiário o justifique (art. 904.º, n.º 2, do CPC e art. 149.º, n.º 1, do CC).

O pedido de revisão ou de levantamento da medida de acompanhamento pode ser formulado pelo acompanhado ou, mediante autorização deste, pelo seu cônjuge ou unido de facto, por um parente sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público (art. 149.º, n.º 3, e 141º, n.º 1, ambos do CC).

Constitui um incidente que corre por apenso ao processo principal de acompanhamento e segue, com as necessárias adaptações e na medida do necessário, a tramitação do decretamento das medidas de acompanhamento (art. 904.º, n.º 3 do CPC), donde decorre: a necessidade de o pedido ter de ser feito por requerimento inicial; concessão de prazo para resposta; necessidade de proceder à audição pessoal e direta do acompanhado (arts. 897.º, n.º 2, e 898.º do CPC) (26); prolação de decisão final que, na parte eventualmente aplicável, observe os requisitos previstos no art. 900.º do CPC, a qual poderá fazer retroagir os seus efeitos à data em que se verificou a cessação ou a modificação das causas que justificaram o decretamento da medida (art. 149.º, n.º 2 do CC), o que tem pertinência para apreciação da eficácia ou ineficácia dos atos praticados pelo beneficiário antes da decisão de revisão ou de levantamento da medida de acompanhamento.

Feitos estes considerandos jurídicos, importa agora particularizar o caso objeto dos autos.

No tocante à decisão proferida pela Mm.ª Juíza “a quo”, tendo por objeto a substituição provisória da acompanhante de A. L. e dos membros que integram o conselho de família (datada de 15/07/2021), dir-se-á consubstanciar a mesma uma medida provisória e urgente, com cabimento no disposto nos art. 139º, n.º 2, do CPC, já que tem em vista acautelar ou proteger o interesse superior do maior acompanhado até que seja tomada uma decisão definitiva sobre a matéria em causa.

Isto porque, tendo sido dada notícia nos autos da falta de cumprimento dos deveres próprios do cargo de acompanhante e na sequência das diligências probatórias produzidas, promoveu o Ministério Público a substituição da acompanhante do interdito/acompanhado pelo tio do interdito e a sua designação como acompanhante provisório, o que foi deferido por despacho de 15/07/2021.

Como ali se explicitou, tal decisão, provisória e urgente, fundou-se no facto de a prova produzida indicar que o exercício do cargo, pela tutora/acompanhante, não estar a garantir o bem-estar e a segurança do interdito, pelo que, de forma a assegurar os seus interesses e atento o disposto no art. 891º do CPC, foi decretada a imediata substituição da acompanhante.

Embora se reconheça a necessidade/obrigatoriedade do exercício do contraditório do maior acompanhado sobre a remoção do acompanhante, bem como a sua audição no tocante à designação do acompanhante substituto (---) (arts. 143º, n.º 1, do CC, 895º, 897.º, n.º 2, e 898.º “ex vi” do art. 904.º, n.º 3, do CPC), certo é também que se entende que o tribunal pode decretar uma decisão provisória sem prévia audição do beneficiário, dada a urgência que a situação do caso concreto impõe, sem prejuízo do ulterior exercício do contraditório ou da sua audição sobre essa questão.

Quer isto dizer que, contrariamente ao propugnado pela recorrente, não estava o tribunal impedido de decretar a remoção/substituição provisória da acompanhante do interdito e de designar um acompanhante substituto sem o exercício do contraditório e/ou sem a audição prévia e pessoal do acompanhado.

Aliás, no caso dos autos, da diligência realizada em 5/07/2021 resulta que, na sequência da junção aos autos da certidão remetida pelo DIAP de Viana do Castelo, houve lugar à audição do interdito/acompanhado, da acompanhante/tutora, da protutora, do vogal (ref.ª 47201805) (---), se bem que não resulta que o beneficiário tenha estado (como se impunha) representado por advogado ou defensor oficioso (---).

À semelhança do que sucede numa providência cautelar em que o juiz dispensa a audiência prévia do requerido em função de necessidade de acautelar o fim ou o efeito útil da providência, impunha-se que a Mmª Julgadora não só tivesse minimamente fundamentado a razão de ser dessa dispensa do contraditório (art. 154º, n.º 1 do CPC) – essa justificação poderá depreender-se da menção feita à situação de urgência que a situação concreta apresentava e que urgia imediatamente acautelar –, bem como, após o decretamento da medida provisória de remoção da acompanhante e da indigitação do substituto provisório, deveria ter providenciado por facultar aos interessados (no caso, ao acompanhado e à acompanhante) o exercício do contraditório quanto às medidas provisórias decretadas.

Sem embargo desse procedimento atinente às decisões provisórias e urgentes decretadas – que, quanto ao contraditório subsequente, não foi observado –, impunha-se também que o tribunal providenciasse com a necessária brevidade (atento o seu caráter urgente - art. 891º, n.º 1 do CPC) pela tramitação legal do respetivo incidente de revisão da medida de acompanhamento, nos termos e para os fins do disposto no art. 892º e ss. “ex vi” do art. 904º, n.º 3, ambos do CPC.

Essa autuação por apenso do incidente de alteração da medida de acompanhamento, nos termos do disposto no art. 904.º, n.º 3, do CPC, foi determinada, pela Mm.ª juíza “a quo”, por despacho de 07/06/2021, na sequência da promoção do Ministério Público de 1/06/2021 (---).
[...]

Assim, sem prejuízo do Tribunal recorrido dever dar seguimento à tramitação legal do incidente em causa nos termos e para os fins do disposto no art. 892º e ss. “ex vi” do art. 904º, n.º 3, ambos do CPC, nomeadamente impondo-se que oportunamente aprecie o requerimento de 6/10/2021, a verdade é que aquela pretensão de indeferimento do incidente extravasa o âmbito da presente instância recursória, pois o despacho de 15/07/2021 tem por objeto as medidas provisórias decretadas e não a remoção definitiva da acompanhante (cujo incidente está ainda em curso).

Ou seja, embora se reconheça que, no tocante às decisões provisórias decretadas, o Tribunal recorrido não observou, como se impunha, o exercício do contraditório do acompanhado e da acompanhante inerente à salvaguarda dos direitos do beneficiário, nomeadamente em sede de direito processual de participação na alteração da medida de proteção, não peticionando a recorrente, em sede de apelação, o seu cumprimento, está-nos vedado determiná-lo. [...]

Nesta conformidade, e sem embargo da tramitação legal a observar no incidente de revisão da medida de acompanhamento, mormente a apreciação em momento oportuno do requerimento de 6/10/2021, e do que aí vier a ser decidido, entende-se ser de manter o despacho datado de 15/07/2021, que decretou a substituição provisória da acompanhante, visto essa decisão destinar-se a assegurar, cautelarmente e tanto quanto possível, a dignidade e o bem-estar da maior do maior acompanhado nas concretas circunstâncias do caso."

[MTS]