"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/10/2022

Jurisprudência 2022 (51)


Despacho saneador;
conhecimento do mérito; improcedência manifesta


I. O sumário de RL 24/2/2022 (2307/19.4T8CSC.L1-2) é o seguinte:

1- O conhecimento do mérito da causa em sede de despacho saneador, sem necessidade de produção de prova quanto a factos controvertidos, justifica-se quando, do confronto da vertente fáctica da causa de pedir com as várias soluções plausíveis de direito, se conclua que essa actividade probatória se apresenta como inútil, porque a demonstração da referida factualidade não permite a afirmação do direito a que se arroga o autor, não só segundo a solução de direito nos termos afirmados pelo tribunal, mas igualmente segundo as demais soluções de direito que se apresentem como suficientemente seguras para justificar essa conclusão, do ponto de vista doutrinário e jurisprudencial.

2- A invocação pelo A. da sua qualidade de legatário quanto a metade de um prédio rústico, relativamente ao qual, ainda em vida da testadora, foi expropriada amigavelmente uma parcela, contra a entrega ao R. da respectiva indemnização, não conduz à afirmação do direito do A. a receber metade dessa indemnização, na medida em que tal crédito era da titularidade da testadora e, com o seu óbito, não se transmitiu ao A. por força da sua posição de legatário.

3- Desta forma, deve a pretensão do A. ser julgada improcedente logo em sede de despacho saneador, sem que seja necessário apreciar a questão da licitude ou ilicitude da actuação do R. que conduziu ao recebimento da indemnização em questão, bem como do destino que lhe deu.
 

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na sentença recorrida afirmou-se a improcedência da acção pela seguinte forma:
 
Atenta a factualidade considerada como provada, está em causa nos presentes autos o enriquecimento por intervenção.
 
Com efeito, esta modalidade de enriquecimento sem causa diz respeito às situações em que alguém obtém um enriquecimento através de uma ingerência não autorizada no património alheio, sendo o seu fim a restituição ao titular da vantagem patrimonial obtida pelo interventor, o que ocorrerá sempre que, de acordo com a repartição dos bens efectuada pela ordem jurídica, essa vantagem se considere como pertencente ao titular do direito (…).
 
E, no caso do direito de propriedade, ante o que dispõe o artigo 1305.º do Código Civil, a disposição não autorizada de bens legitimam o respectivo titular a exigir a restituição por inteiro da vantagem obtida, ainda que não tenha sofrido um prejuízo efectivo.

No presente caso, dúvidas inexistem que (nem as partes sobre ela divergem) a expropriação parcial (da área de 51 669m2) do prédio rústico denominado Caniçais (…) ou (…), registado a favor de Maria M., ocorreu em 28 de Novembro de 2003.

Mais resultou apurado que, por testamento lavrado em 21 de Março de 1990, Maria M. deixou em legado ao A.  metade do prédio (…).

A testadora, Maria M., faleceu em 17 de Fevereiro de 2005.

Ora, a sucessão é a aquisição derivada translativa, por morte, de situações jurídicas, sendo apenas aberta no momento da morte do seu autor, momento em que são chamados à sucessão os sucessores: herdeiros ou legatários (artigos 2031.º e 2032.º do Código Civil).

Para o que ao caso interessa, a sucessão pode ser deferida por testamento, mediante o qual é atribuída a qualidade de sucessível antes da morte do de cujus e, tratando-se de sucessão em relação a bens ou valores determinados, o sucessor é denominado de legatário - artigos 2026.º e 2030.º, n.º 2 do Código Civil.

O testamento constitui um negócio jurídico unilateral, não receptício, gratuito, formal e livremente revogável, mediante o qual o testador dispõe, para depois da sua morte, de todos ou parte dos seus bens. Trata-se, por isso, de um negócio jurídico mortis causa, na medida em que as disposições testamentárias apenas produzem efeitos após a morte do testador.

Da factualidade apurada, resulta que, à data da morte da testadora (2005), o bem deixado em legado, já não existia, ainda que parcialmente, no seu património. E isto por via do acto de expropriação ocorrido no ano de 2003, ainda em vida da testadora.

Com efeito, por via da expropriação, ao bem deixado em legado, foi desanexada a área de 51 669m2.

É, assim, aplicável o que dispõe o artigo 2254.º do Código Civil, sob a epígrafe Legado de coisa não existente no espólio do testador:

1.  Se o testador legar coisa determinada, ou coisa indeterminada de certo género, com a declaração de que aquela coisa ou este género existe no seu património, mas assim não suceder ao tempo da sua morte, é nulo o legado.
2.  Se a coisa ou género mencionado na disposição se encontrar no património do testador ao tempo da sua morte, mas não na quantidade legada, haverá o legatário o que existir.

Em regra, o legado de coisa alheia é nulo (vide artigos 2251.º, 2252.º e 2254.º e 2256.º do Código Civil).

Não obstante, se o testador legar uma coisa, com a declaração de que aquela coisa existe no seu património, e se ela se encontrar no património do de cujus, mas não na quantidade legada, haverá o legatário o que existir (in Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, Almedina, 2020, pág. 143).

Se bem percebemos a pretensão do A., este defende que tem direito à totalidade da deixa testamentária do legado, tal como ela foi inscrita no testamento da de cujus e, no caso, por força da sua alienação em vida da testadora, do equivalente em dinheiro.

Porém, de acordo com as normas enunciadas, o legatário apenas tem direito ao legado, nos exactos termos em que ele existir à data da morte do testador, já que apenas sucede ao testador nas relações jurídicas de que este era titular à data da sua morte.

E, como já vimos, apenas o titular do direito de propriedade sobre que o interventor que tenha enriquecido indevidamente tem legitimidade para pedir a sua restituição; no caso, uma vez que era a titular inscrita no registo, representada pelo R. no acto de expropriação, apenas Maria M. teria legitimidade para deduzir uma pretensão sobre um eventual enriquecimento injustificado do R., se fosse caso disso.

Por assim ser, e considerando o enquadramento jurídico dado pelo A., carece de absoluto fundamento legal a sua pretensão”.

Para contrariar o assim decidido o A. invoca, com único carácter impugnatório (entendido este como a indicação dos fundamentos não considerados pelo tribunal recorrido, e a partir dos quais a decisão impugnada há-de ser revogada e substituída), a ausência de qualquer explicação sobre como seria possível à proprietária do prédio cuja parcela foi expropriada fazer valer os seus direitos relativamente à conduta ilícita do R., tendo presente o estado vegetativo em que se encontrava.

Ou seja, o A. não coloca em crise que a actuação do R. que resulta dos factos provados (a outorga do auto de expropriação amigável, em representação da referida proprietária, e o recebimento do montante indemnizatório acordado) se repercute na esfera jurídica da identificada Maria M. (a referida proprietária).

Todavia, argumenta que o estado de incapacidade da mesma impediu-a de fazer valer o seu direito a haver do R. o montante indemnizatório em questão, que o mesmo recebeu da entidade expropriante, naquela sua indicada qualidade de representante da expropriada. E como, entretanto, a referida expropriada faleceu e, por força do testamento que deixou, o A. recebeu, em legado, metade do prédio rústico de onde foi retirada a parcela expropriada, será o mesmo a haver do R. metade daquele montante indemnizatório.

Ou seja, parece o A. entender que a circunstância de ser legatário da falecida proprietária do referido prédio rústico o habilita a suceder na posição da mesma como credora do R., quanto a metade daquele montante recebido pelo R.

Mas o que o A. não consegue justificar, por não haver justificação para tanto, é a norma que faz concluir por essa transmissão mortis causa.

Com efeito, e como ficou sustentado na sentença recorrida, o A. é sucessor da falecida Maria M. por força do testamento feito por aquela, já que através desse testamento a testadora deixou-lhe metade do prédio rústico em questão.

Ou seja, o mesmo é chamado à sucessão das situações jurídicas da testadora enquanto legatário, já que sucede num bem determinado (art.º 2030º, nº 2, do Código Civil).

E porque do disposto nos art.º 2031º e 2032º do Código Civil resulta que o A. só é chamado à titularidade dessa situação jurídica com a abertura da sucessão, ou seja, no momento da morte da testadora, tal significa, face ao disposto no art.º 2254º do Código Civil, que o mesmo só haverá a coisa legada, no estado em que a mesma se encontra, nesse momento da morte da testadora.

O que é o mesmo que dizer que o A. não é titular das situações jurídicas com origem na coisa legada, mas surgidas em momento anterior ao da morte da testadora.

Assim, e mesmo que a conduta do R. (ao negociar e receber a indemnização pela expropriação amigável) se possa configurar como ilícita, por falta de poderes de representação da expropriada (e de onde resulta ter o mesmo de responder perante a expropriada pela diminuição do património desta, na medida correspondente à da indemnização recebida pelo R.), tal não significa que, com a morte da expropriada, o direito ao valor assim recebido (emergente da ilicitude da diminuição patrimonial) se transmite para quem lhe suceda na titularidade do prédio rústico cuja parcela foi expropriada, ainda que como legatário.

É que, na medida em que a sucessão a esse título respeita tão só à coisa legada, no estado em que se encontra à data da morte da testadora, o A. legatário não sucede nas situações jurídicas a que respeita tal actuação ilícita, ainda que tal actuação ilícita tenha determinado uma alteração da composição da coisa objecto da deixa testamentária, entre o momento do testamento e o momento da morte da testadora.

O que é o mesmo que dizer que o A. não é titular do direito a haver do R. o referido montante indemnizatório, ainda que na proporção de metade.

Do mesmo modo, e porque ainda que se houvesse de falar na ausência de qualquer causa justificativa para o enriquecimento do R. (correspondente ao locupletamento do valor da indemnização pela expropriação), uma vez que dessa situação não resultaria qualquer empobrecimento do A., mas antes da proprietária expropriada, nunca essa situação jurídica activa integraria o legado do A."

[MTS]