I. O DL 57-C/2022, de 6/9, estabeleceu um conjunto de medidas extraordinárias destinadas a apoiar diretamente o poder de compra das famílias e a mitigar os efeitos do aumento dos preços dos bens essenciais, face ao contexto inflacionário atual.
No âmbito de tais medidas, o aludido diploma procedeu à criação de um apoio extraordinário a titulares de rendimentos e prestações sociais e de um complemento excecional a pensionistas.
II. Conforme decorre do estabelecido nos n.º 2 e 3 do art. 2.º do DL 57-C/2022, o apoio extraordinário a titulares de rendimentos e prestações sociais consiste em atribuir € 125 a cada cidadão elegível, que é, designadamente, aquele que tenha auferido, nos anos de 2021 ou 2022, rendimentos mensais de trabalho declarados à Segurança Social inferiores ou iguais a € 2700. O apoio é acrescido de € 50 por cada dependente a cargo residente em Portugal. Todos estes montantes são pagos em outubro de 2022.
1 - O apoio extraordinário de € 50 por cada dependente a cargo não é uma prestação penhorável numa execução movida contra a pessoa elegível para receber o complemento, dado que o titular dessa prestação é o próprio dependente (nomeadamente, os filhos, adotados e enteados, os menores não emancipados e os menores sob tutela).
Quer dizer: não sendo o dependente executado e sendo ele o beneficiário do apoio extraordinário de € 50, este montante não está sujeito à penhora, pois, nos termos dos arts. 601.º e 817.º do CC, pelo cumprimento das obrigações responde o património do devedor (cf., ainda, art. 735.º, n.º 1, do CPC).
2 - Na hipótese de o dependente ter a qualidade de executado e se for elegível para receber o apoio extraordinário, aquele não pode ser simultaneamente qualificado como pessoa dependente (cf. n.º 5 do art. 2.º do DL 57-C/2022). Neste caso, importa saber se o apoio extraordinário de € 50 é suscetível de penhora. A resposta a esta questão merece a mesma ponderação da penhora do apoio extraordinário de € 125 atribuído a cada cidadão elegível.
III. Sobre os montantes do apoio extraordinário atribuído a titulares de rendimentos e prestações sociais, bem como do apoio adicional que abrange todos os dependentes residentes em Portugal, não incide imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), nem os mesmos constituem base de incidência de contribuições para a Segurança Social (n.º 6 do art. 2.º do DL 57-C/2022).
Aqueles apoios também não são compensáveis com dívidas cobradas pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) e outras prestações do sistema de segurança social (n.º 7 do art. 2.º do DL 57-C/2022).
Se os referidos apoios extraordinários não são tributáveis, nem podem ser objeto de compensação com dívidas tributárias, faria todo o sentido que o legislador estabelecesse igualmente a sua total impenhorabilidade.
Com efeito, se tanto a Autoridade Tributária e Aduaneira, como a Segurança Social não podem tributar aqueles apoios, nem os podem compensar com dívidas tributárias, impõe-se concluir que aquelas entidades também não podem penhorar esses montantes. Se assim foi considerado para efeitos tributários, do mesmo modo há que entender que aqueles apoios são impenhoráveis no âmbito das execuções comuns, por aplicação do princípio da igualdade entre o Estado credor e os credores privados.
De todo modo, teria sido benéfica uma clarificação por parte do legislador. No entanto, o direito positivo dá resposta ao problema.
1 - De acordo com o disposto no n.º 1 do art. 738.º do CPC, são impenhoráveis dois terços da parte disponível dos rendimentos auferidos pelo executado, independentemente da natureza periódica ou não periódica da prestação. O que caracteriza a aplicação deste normativo não é tanto o carácter periódico do rendimento, mas antes a circunstância de o rendimento penhorável se destinar a assegurar a subsistência do executado.
O regime de impenhorabilidade que resulta daquela disposição legal apenas cede no caso de a fração de dois terços do rendimento disponível exceder o montante equivalente a três salários mínimos nacionais (art. 738.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC). Nesta hipótese, impõe-se a redução da parte impenhorável para este montante e a ampliação da parte penhorável para o valor que o exceder.
Por seu turno, na hipótese de a fração de dois terços do rendimento disponível ser inferior a uma retribuição mínima mensal garantida (RMMG), de acordo com o disposto na 2.ª parte do n.º 3 do art. 738.º do CPC, deve acautelar-se sempre o montante equivalente a uma vez a retribuição mínima mensal garantida (princípio da intangibilidade da retribuição mínima).
2 - O preceito do n.º 3 do art. 738.º do CPC levanta, todavia, uma questão interessante, que consiste em saber se, auferindo o executado "outro rendimento" no momento da penhora, os dois rendimentos podem ser considerados um rendimento composto. Quer dizer: está em causa saber se, naquela hipótese, há lugar ao englobamento dos dois montantes para efeitos de cálculo da fração impenhorável nos termos do n.º 1 do art. 738.º do CPC.
a) Considerando que os limites (máximo e mínimo) previstos no n.º 3 do art. 738.º do CPC são estabelecidos, por referência temporal, à data de cada apreensão, há que entender que só há lugar ao englobamento quando se estiver em presença de prestações periódicas. Vale dizer: se ambos os rendimentos tiverem natureza periódica, é com base no rendimento composto que é calculada a fração penhorável, salvaguardando sempre a intangibilidade da retribuição mínima mensal garantida. Noutras palavras: na hipótese figurada, a fração impenhorável do rendimento composto não poderá ser de montante inferior a um salário mínimo nacional, de acordo com o valor que estiver em vigor à data da penhora.
b) Se o "outro rendimento" e o que já se encontra penhorado não forem ambos rendimentos periódicos, não há lugar a englobamento desses dois rendimentos, mas antes à consideração autónoma de cada um deles para efeitos de cálculo da fração penhorável. Também nesta hipótese, a parte impenhorável de qualquer dos rendimentos é equivalente a um salário mínimo nacional.
Com efeito, quando não se configura o englobamento dos rendimentos, a 2.ª parte do n.º 3 do art. 738.º do CPC exige que a parcela impenhorável de qualquer dos dois rendimentos não seja inferior a uma retribuição mínima mensal garantida (trata-se, novamente, do princípio da intangibilidade da retribuição mínima).
A distinção entre as hipóteses em que existe e em que não existe englobamento dos dois rendimentos faz todo o sentido, se se considerar que as prestações de natureza periódica que são pagas ao executado se destinam a assegurar a sua subsistência atual ou presente (o que justifica o englobamento daqueles rendimentos), enquanto as de natureza instantânea se destinam a assegurar a subsistência futura do executado e, por isso, são incompatíveis com o englobamento à data da penhora. É o caso, p. ex., da indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, se se entender que esta indemnização só é parcialmente penhorável (conforme decidiu o STJ no acórdão de 12/11/2020, revista n.º 777/07.2TBBCL-F.G1.S1).
Assim sendo, a 2.ª parte do n.º 3 do art. 738.º do CPC não pode ser convocada se o "outro rendimento" não tiver a natureza de prestação periódica. É precisamente o caso dos apoios extraordinários às famílias e aos pensionistas criados pelo DL 57-C/2022, que, por serem pagos apenas no mês de outubro de 2022, têm natureza de prestação instantânea destinada a mitigar a perda do poder de compra das famílias e dos pensionistas num contexto de aumento da inflação.
3 - Tendo por base esta interpretação, os agentes de execução não devem somar, na determinação da parcela penhorável, ao rendimento (periódico) percebido pelo executado no mês de outubro de 2022 os montantes relativos ao apoio extraordinário atribuído a titulares de rendimentos e prestações sociais ou a pessoas dependentes, se estas forem executadas.
Como o montante deste apoio deve ser objeto de consideração autónoma na determinação do montante penhorável, não pode ser adicionado ao rendimento do mês em que é pago e, porque é de valor (€ 125 ou € 50, consoante o caso) inferior a um salário mínimo nacional (que atualmente se cifra em € 705), também é insuscetível de penhora, atendendo ao limite mínimo estabelecido pela 2.ª parte do n.º 3 do art. 738.º do CPC.
Dito de outro modo: no mês de outubro de 2022, os agentes de execução, para cálculo da parte impenhorável dos rendimentos auferidos pelo executado durante esse mês, devem ficcionar que o montante do salário mínimo nacional é de € 830 (correspondente à soma da RMMG e do apoio extraordinário de € 125).
IV. O DL 57-C/2022 também procedeu, no seu art. 4.º. à criação de um complemento excecional para pensionistas cuja pensão seja igual ou inferior a 12 vezes o indexante de apoios sociais (que atualmente se encontra fixado em € 443,20 (cf. Port. 294/2021, de 13/12).
No que se refere à penhora daquele complemento, aplicam-se as mesmas regras que acima ficaram expostas, o que significa que o seu montante poderá ser penhorado na fração que exceder o salário mínimo nacional (€ 705).
Por último, importa salientar que a proibição de englobamento do complemento excecional com a pensão do mês em que é pago também é imposta pelo n.º 5 do art. 4.º do DL 57-C/2022, dado que o montante desse complemento não pode, para efeitos de cálculo do IRS a reter, ser adicionado à pensão do mês em que é pago ou colocado à disposição do respetivo titular. Se não é considerado para efeitos tributários, do mesmo modo não pode ser considerado qualquer englobamento para efeito de penhora no âmbito das execuções fiscais e comuns, por aplicação do princípio da igualdade entre o Estado credor e os credores privados.
J. H. Delgado de Carvalho