"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/10/2022

Jurisprudência 2022 (37)


Processo de inventário;
venda de bens; direito de remição


1. O sumário de RG 10/2/2022 (48/11.0TBVNC-G.G1) é o seguinte:

I – Não há que confundir “nulidades da sentença” com “nulidades processuais”.

II – Aquelas só ocorrerão, como causa invalidante típica, nas diversas hipóteses taxativamente contempladas no nº 1 do art. 615º do CPC, possuindo um regime próprio de arguição plasmado nos arts. 615º/3, 666º e 671º/3 do mesmo diploma.

III – Já quanto às nulidades processuais propriamente ditas e respectivos regimes, efeitos e prazos de arguição, encontram-se as mesmas elencadas e reguladas nos arts. 186º e ss. e 195º e ss. do mesmo corpo normativo.

IV – O regime de arguição das nulidades processuais principais, típicas ou nominadas vem contemplado nos arts. 186º a 194º e 196º a 198º do CPC, sendo que as nulidades secundárias, atípicas ou inominadas -, genericamente contempladas no nº 1 do art. 195º -, só produzem nulidade quanto a lei expressamente o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame e discussão da causa, possuindo o respectivo regime de arguição regulado pelo art. 199º do mesmo diploma.

V – O direito de remição regulado nos arts. 842º a 845º do CPC é aplicável à venda realizada no âmbito do processo de inventário.

VI – O direito de remição, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do art. 842º do CPC, pode ser exercido até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que documenta a venda, e o preço deve ser integralmente depositado no momento da remição, sendo condição de validade do exercício do direito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

B – Da reapreciação do mérito do despacho de 05/03/2021, cujo teor entende dever ser revogado e substituído por outro, que admita e defira o direito de remição exercido pela Recorrente

Entende a recorrente não ter sido acertada a decisão recorrida, que findou pelo indeferimento do exercício do seu direito de remição.

De efeito, o Tribunal a quo, atendendo à natureza do presente processo, que se trata de uma venda voluntária e acordada pelos ex-cônjuges, proprietários em comum dos imóveis objecto da venda, e atendendo aos fundamentos do direito de remição (cf. artigos 842º e ss CPC) que apenas opera no âmbito do processo executivo, entendeu que não assiste à requerente tal direito, uma vez que, ao presente processo apenas se aplicam as regras do processo de execução relativamente às formas da venda e do incidente de reclamação de créditos – artigo 549º, nº2 CPC.

Quid iuris?

Entendeu o Tribunal a quo que o direito de remição apenas opera no âmbito do processo executivo, o que não é o caso, pois a presente acção configura um processo especial de separação dos bens comuns do ex-casal, é certo que por apenso a uma execução. E isto atendendo à natureza do presente processo, que se trata de uma venda voluntária e acordada pelos ex-cônjuges, proprietários em comum dos imóveis objecto da venda, e atendendo aos fundamentos do direito de remição (cf. artigos 842º e ss CPC), sendo que, ao presente processo apenas se aplicam as regras do processo de execução relativamente às formas da venda e do incidente de reclamação de créditos – artigo 549º, nº2 CPC. Concluindo que estando em causa uma venda acordada entre os ex-cônjuges, não há lugar ao direito de remição.

Ora, a interpretação que o Tribunal a quo faz do teor literal das referidas normas legais, não só não encontra respaldo doutrinal ou jurisprudencial, como não se nos afigura a mais assertiva, pois o que resulta do art. 549º/2 do CPC é, tão só, que nos processos especiais, quando haja lugar à venda de bens, se aplica o regime do processo executivo, com as necessárias adaptações [---]. Não se vislumbrando a existência de qualquer especificidade da venda em processo de inventário relativamente à venda em processo executivo que determine a exclusão in totum do direito de remição. E é assim que temos visto inúmeros arestos dos tribunais superiores, onde o direito de remição opera não só na venda no âmbito do processo executivo, como também é aplicável na venda realizada no âmbito do processo de insolvência [...], bem como no processo de inventário [Cfr. o Ac. do TRE de 26-01-2017 in proc. nº. 671/07.7TBSTC-C.E1, disponível em www.dgsi.pt.]. Podemos, pois, concluir, que o direito de remição regulado nos arts. 842º a 845º do CPC é aplicável à venda realizada no âmbito do processo de inventário.

Logo, enquadrando-se o direito de remição no processo executivo, terá que ser no âmbito daquele direito que se terá de aferir se, in casu, a recorrente pode beneficiar do mesmo.

O direito de remição, cujo regime se encontra previsto nos arts. 842º a 845º do CPC, consiste, em linhas gerais, no reconhecimento, a determinados familiares do executado, da faculdade de adquirir os bens adjudicados ou vendidos, no todo ou em parte, pelo preço por que tiver sido feita aquela adjudicação ou venda (art. 842º do CPC) [---]. Este direito é concedido ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado, com a finalidade de proteger o património familiar, para evitar que os bens penhorados abandonem esta esfera [---]. Para tal, o cônjuge, ascendentes ou descendentes têm o direito de remir sobre os bens que foram adjudicados ou vendidos se, para tanto, liquidarem os mesmos valores que seriam pagos pelo adjudicatário ou pelo comprador. O legislador pretende, assim, evitar aquelas situações desviantes, em que o executado nada faz para prevenir a penhora dos seus bens, na esperança de que o preço da sua aquisição, pelos seus familiares directos, fique aquém do seu valor em dívida, prejudicando os interesses do exequente [---]. Consequentemente, o direito de remição só pode ser exercido em relação à proposta de valor mais alta que seja apresentada pelo comprador ou adjudicatário, ou seja, o possível remidor não pode exercer o seu direito pelo valor base anunciado para venda, nem o pode fazer se não forem apresentadas propostas concretas de compra ou adjudicação [---]. O exercício do direito de remição implica que o cônjuge do executado tenha a posição de terceiro naquela acção executiva, pelo que, se ambos os cônjuges forem executados, nenhum deles pode exercer aquele direito relativamente aos bens que foram penhorados. Pode, ainda, o cônjuge do executado usufruir deste direito processual mesmo no caso de o regime de bens do casamento, que vigore entre os cônjuges, ser o da separação de bens e, também, nas situações de separação de facto ou de separação judicial de bens [---].

Assim, in casu, existe o direito de remissão [sic] pela requerente da casa de morada de família, onde permaneceu a residir com a mãe e irmão, após o divórcio dos pais, sendo a casa de morada de família o lugar onde a família cumpre as suas funções relativamente aos cônjuges e aos filhos, constituindo o centro da organização doméstica e social da comunidade familiar, não perdendo essa qualificação pelo simples facto de a família se ter desagregado e de a casa ter assim deixado de ser, de facto, a morada da família [---]. Direito que exerceu tempestivamente, depositando integralmente o preço no momento da remição, o que era condição de validade do exercício do direito [cfr. art. 843º/1, b) do CPC].

Logo, reconhecendo-se o direito de remição exercido validamente pela requerente I. S., impõe-se revogar a decisão recorrida."

[MTS]