"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/10/2022

Jurisprudência 2022 (46)


Servidão de passagem;
acção de apreciação; processo executivo

1. O sumário de STJ 22/2/2022 (140/11.0TBCVD-A.E1.S1) é o seguinte: 

I - Só a “sentença condenatória”, como é referido no art. 703.º, n.º 1, al. c), do CPC, pode servir de base a uma execução.

II - Expressão esta em que não se incluem as ações de simples apreciação, ou seja, as ações em que unicamente se obtém a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto (cfr. art. 10.º, n.º 3, al. a), do CPC), em que o réu não é condenado no cumprimento duma obrigação pré-existente ou condenado/constituído em nova obrigação a cumprir.

III - É o caso da sentença que se limite a reconhecer/declarar um direito real (seja de propriedade, seja de servidão), sentença que só passará (e nessa estrita medida) a servir de base a uma execução se (e a partir do momento), na mesma sentença, para além do reconhecimento/declaração do direito real, se condene, por ex., na restituição do prédio (como acontece na reivindicação, na hipótese do prédio não estar em poder daquele que foi declarado seu proprietário) ou a proceder à desobstrução da servidão de passagem (como acontece quando o dono do prédio serviente coloca obstáculos que impedem a passagem).

IV - Tendo-se numa mesma sentença – após se declarar/reconhecer que sobre o prédio do autor e a favor do prédio do réu se acha constituída, por usucapião, uma servidão de passagem (de pé e carro e trânsito de animais) – feito constar, no segmento seguinte, que se condena a R. a reconhecer esse direito e a respeitá-lo, tal “condenação” não é efetiva e rigorosamente uma condenação, mas uma mera redundância/repetição do direito (de servidão) já antes declarado.

V - À expressão reconhecimento do seu direito, constante do art. 1311.º do CC (ao caso aplicável ex vi art. 1315.º do CC), corresponde, em termos processuais, a declaração do direito, pelo que, quando numa ação se declara a constituição dum direito de servidão (por usucapião), fica o réu obrigado a reconhecer tal direito e a abster-se de praticar atos que o prejudiquem, sendo redundante/repetitivo acrescentar-se, a seguir, que se “condena” o réu a reconhecer e respeitar o direito (de servidão) já antes declarado.

VI - Para além disso – e no sentido de não poder servir de base a uma execução – não se traduz tal “condenação” (redundante) na imposição duma concreta obrigação pré-existente e/ou na condenação/constituição duma nova obrigação; e muito menos numa obrigação certa, determinada em relação à sua qualidade e cujo objeto da prestação se encontre perfeitamente delimitado ou individualizado, isto é, que se saiba precisamente o que se deve.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Concorda-se que, na decisão final da sentença “dada” à execução, foi a executada condenada a cumprir uma obrigação – a abrir e manter em permanência aberto o portão que a R./executada colocou no leito da servidão – e que o incumprimento de tal obrigação pode dar lugar a uma execução para prestação de facto positivo.

Mas esta foi/é a única obrigação/condenação imposta na sentença dada à execução.

Não se ignora que, na decisão final da sentença “dada” à execução – após se declarar/reconhecer que sobre o prédio da executada e a favor do prédio dos exequentes se acha constituída, por usucapião, uma servidão de passagem (de pé e carro e trânsito de animais) – se fez constar, no segmento seguinte, que se “condena a R. a reconhecer esse direito e a respeitá-lo”.

Só que esta “condenação” não é efetiva e rigorosamente uma condenação, mas uma mera redundância/repetição do direito (de servidão) já antes declarado.

À expressão “reconhecimento do seu direito”, constante do art. 1311.º do C. C. (ao caso aplicável ex vi 1315.º do CC), corresponde, em termos processuais, a declaração do direito; e quando numa ação se declara um direito, o respetivo réu, contra quem a decisão passa a fazer caso julgado material, passa a estar, sem mais, obrigado a reconhecer o direito e a abster-se de praticar atos que o prejudiquem.

Ou seja, dizer-se/pedir-se que se declara/reconhece uma concreta servidão de passagem (entre um concreto prédio dominante e um concreto prédio serviente) e a seguir dizer-se/pedir-se que se condena o R. a reconhecer esse direito é dizer/pedir duas vezes a mesma coisa.

E, para além disto, não se traduz tal “condenação” da R. (e aqui executada) “a reconhecer esse direito e a respeitá-lo” na imposição duma concreta obrigação pré-existente e/ou na condenação/constituição duma nova obrigação; e muito menos na imposição duma obrigação certa, determinada em relação à sua qualidade (que implica – para a obrigação ser certa – que o objeto da prestação se encontre perfeitamente delimitado ou individualizado, isto é, que se saiba precisamente o que se deve).

Aliás, a longa alegação dos exequentes no requerimento executivo – com toda a construção, factual e argumentativa, que fazem para chegar ao incumprimento da executada – é bem reveladora disto mesmo.

Repare-se:

Alegam os exequentes que, em data anterior à propositura da ação (isto é, em 2010), a executada destrui o caminho da servidão e ainda não o repôs, pelo que incumpriu, segundo os exequentes, na obrigação de reposição.

Mas – é a questão – da decisão final da sentença “dada” à execução não consta ou é extraível a condenação na obrigação de repor o caminho; condenação em tal obrigação de reposição que – chama-se muito especialmente a atenção dos exequentes – não constava sequer do pedido formulado na ação declarativa[---]; e que – chama-se também a atenção – caso tal pedido condenatório constasse e houvesse, por hipótese de raciocínio, fundamento substantivo para julgá-lo procedente, impunha que os aqui exequentes tivessem oportunamente suscitado a nulidade da sentença (por não se ter pronunciado sobre questão que devia apreciar/conhecer), não podendo agora “ultrapassar” tal nulidade e a sua omissão (dos aqui exequentes, na respetiva invocação) com a alegação, como fazem no requerimento executivo, dos factos constantes da sentença declarativa e com a argumentação jurídica que fazem a partir de tais factos para concluir que têm direito à reposição do caminho, que a executada está pela sentença obrigada à reposição e que incumpriu em tal obrigação.

Face à postura argumentativa desenvolvida pelos exequentes nesta revista – censurando com veemência o acórdão recorrido e reputando de “estranho” que o acórdão, tendo o litígio surgido por a R. ter destruído o leito da servidão, “não tenha tido presente tal circunstância” – não pode deixar de observar-se que a “estranheza” estará no facto dos AA. dum tal litígio (cuja génese, segundo dizem, foi a destruição do leito da servidão) não haverem formulado, na ação declarativa, o inevitável e devido pedido de reposição do leito da servidão no estado anterior à sua destruição (concretizando, naturalmente, no pedido, qual era o seu exato estado anterior).

Duma forma muito clara e direta: para a executada ter incumprido a obrigação de reposição, tinha a decisão final que a condenar a repor o caminho no estado anterior (reposição que, evidentemente, a decisão final tinha que determinar com um mínimo de certeza) e a decisão final não só não o diz, como tal não foi pedido pelos exequentes (enquanto autores da ação declarativa), como o tema (da reposição do caminho) não fez parte da discussão jurídica quer da sentença da 1.ª Instância, quer dos acórdãos da Relação e do Supremo[---].

Mais, o que os exequentes alegaram nos artigos 12.º e 13.º (supra transcritos) do seu requerimento executivo – sobre o caminho ser de terra batida e estar bem consolidadosobre “dever agora, para ficar igualmente consistente, ser refeito com aplicação de tout-venant compactado por cilindro” e sobre dever “manter uma margem de segurança, à imagem do que a lei prevê para os caminhos vicinais.” – é bem revelador de todo o equívoco, com todo o respeito, em que os exequentes vêm incorrendo, não se limitando a “pegar” nos factos da sentença declarativa para extrair direitos e obrigações (para a executada) que oportunamente não pediram (e que, por isso, não constam da decisão final, ou seja, do “título dado à execução”) e indo até um pouco mais longe, na medida em que alegam novos factos que, em termos jurídico-substantivos, relevam e têm a ver com a extensão da servidão (art. 1564.º), matéria que, como é evidente, tem que estar previamente definida/solucionada a montante, na sentença da ação declarativa e “dada” à execução (sentença que, é suposto, ter já incorporado tudo o que podia/devia ser invocado, refletido, discutido e decidido em termos de extensão e exercício da servidão, não sendo na execução, que pressupõe certeza na definição do direito que se executa e a consequente certeza de incumprimento por parte do executado, que se vai decidir que se aplica tout-venant compactado por cilindro” ou que se deve “manter uma margem de segurança, à imagem do que a lei prevê para os caminhos vicinais.”).

E tudo que se vem de dizer sobre o “pretenso” incumprimento da obrigação de reposição do caminho/servidão, vale, mutatis mutandis, para o “pretenso” desrespeito da servidão por parte da executada.

Chama-se de novo especialmente a atenção dos exequentes para o facto de o que consta da decisão final (“dada” à execução), sobre o conteúdo e extensão da servidão de passagem, ser exatamente (nem mais nem menos) o que os aqui exequentes (enquanto AA. da ação declarativa) pediram.

E, claro – perdoe-se-nos o obiter dictum, com que apenas se visa explicar aos exequentes que as coisas não vêm bem desde início – olhando-se para o que se pediu (e que ficou a constar da decisão final) de imediato se constata que o direito de servidão declarado/reconhecido não está definido com toda a certeza e clareza exigíveis, uma vez que, como é evidente, pedir-se/dizer-se que a servidão é “ (…) exercida por caminho com 3 a 4 metros de largura (…) encostado à ... (…)” poderá não ser totalmente inequívoco e certo sobre o exato local por onde passa o caminho/servidão[---].

Sendo tal “equivocidade” que gera o “pretenso” desrespeito da servidão por parte da executada.

O que é dito/alegado nos autos é muito sintomático do que estamos a procurar explicar:

No requerimento executivo, os exequentes dizem, em síntese, que a executada definiu um caminho/servidão que não corresponde ao que era (e deve ser) o leito da servidão (constituída por usucapião) reconhecida na sentença.

Ao que a executada opõe que colocou uma vedação em parte da sua propriedade para contenção dos animais (que pastoreiam na Herdade ...), deixando incólume uma faixa de terreno, entre a vedação e o muro que delimita a ..., com 3 a 4 metros de largura.

Vindo os exequentes, na contestação aos embargos, dizer o seguinte:

“1.º Resulta do confronto do requerimento executivo com a petição de embargos que a divergência das partes, quanto à localização do caminho da servidão que foi reconhecida por sentença está em que:

a) Os exequentes pretendem que o leito do caminho corria, acompanhando a ..., separada dela cerca de 7 a 8 metros (…)

b) Pretendem os embargantes situá-lo a confinar com a ..., colado a esta.

2.º Dizem estes que a localização que apontam é a que decorre do texto da sentença, quando nela se refere que o leito corre encostado à .... Não têm razão, mesmo face à mera semântica da palavra.

3.º A expressão “encostado” não é o mesmo que “encostadinho”. Ela não foi, na ação, nem na sentença, usada no sentido de “colado à ...”, mas sim acompanhando de perto a ... (…)

Como é despiciendo explicar, não é numa execução – em que os exequentes imputam ao executado estarem a desrespeitar o leito duma servidão de passagem – que se vai apurar por onde passa o caminho de servidão, se “encostadinho” ou se “encostado a cerca de 7 a 8 metros de distância”.

O direito que se executa, a obrigação cujo incumprimento se imputa, têm que estar certos, têm que estar clara e inequivocamente definidos no título executivo[---].

Seja como for, nem é o que acabamos de referir o mais relevante.

O mais relevante é que, quando um direito de servidão de passagem está clara e inequivocamente definido e o dono do prédio serviente o viola, tem o dono do prédio dominante que começar pela ação declarativa, justamente porque, como acima já se referiu, uma sentença que se limite a declarar/reconhecer uma servidão legal de passagem (ainda que clara e inequivocamente definida) não constitui sentença condenatória e título executivo em relação a todas e quaisquer violações futuras do direito real de servidão de passagem (reconhecido na sentença).

Em jeito de síntese conclusiva, pode dizer-se que uma sentença que se limita a reconhecer/declarar um direito real (seja de propriedade, seja de servidão), não é uma sentença que sirva de base a uma execução, só o passando a ser (e nessa estrita medida) a partir do momento em que na mesma sentença, para além do reconhecimento/declaração do direito real, se condene, por ex., na restituição do prédio (como acontece na reivindicação, na hipótese do prédio não estar em poder daquele que foi declarado seu proprietário) ou a proceder à desobstrução da servidão de passagem (como acontece quando o dono do prédio serviente coloca obstáculos que impedem a passagem).

Daí que, voltando ao que no início afirmámos, a sentença – a decisão final – da ação declarativa não sirva de base (não é título executivo) à execução, quer da “pretensa” obrigação de reposição do caminho, quer do “pretenso” desrespeito do caminho/traçado da servidão.

Resta/va pois, suscetível de servir de base à execução, o segmento da decisão final que condenou os executados a abrir e manter em permanência aberto o portão que a R./executada colocou no leito da servidão.

Só que não se provou o incumprimento de tal obrigação por parte da executada.

Bem pelo contrário, provou-se que cumpriu a obrigação de prestação de facto positivo em que foi condenada, uma vez que, como consta do ponto C) dos factos, “a executada mantém o portão que dá acesso à Herdade ..., a partir do ..., aberto ou em condições de poder ser aberto e usado por aqueles que desejem passar, ali colocando um letreiro com os dizeres: “Atenção este portão está aberto”.

Podendo acrescentar-se – embora não seja sequer contestado pelos exequentes – que “abrir” e manter “aberto” um portão não significa manter “escancarado” o portão, uma vez que, se assim fosse, o que se devia ter determinado (na sentença) era que o portão devia ser retirado, o que não foi feito (e que por certo violaria o direito de tapagem do proprietário constante do art. 1356.º do C. Civil), ou seja, “abrir” e manter “aberto” um portão é não o ter fechado à chave e/ou com um cadeado e foi/é exatamente isto que a executada fez, assim cumprindo a única “condenação” (com o sentido que lhe é conferido pelo art. 703.º/1/a) do CPC) que a sentença “dada” à execução lhe impôs.

Em conclusão final:

Concorda-se com o acórdão recorrido.

Quanto a ter sido cumprida a obrigação de abrir e manter aberto o portão, totalmente, quer no desfecho, quer na fundamentação seguida no acórdão recorrido.

Quanto ao restante – incumprimento da obrigação de reposição do caminho/servidão e desrespeito (mudança) do leito da servidão por parte da executada – totalmente quanto ao desfecho e parcialmente quanto à fundamentação, uma vez que, ao contrário do referido no acórdão recorrido, não está sequer sob apreciação saber se a vedação colocada pela executada respeita o traçado da servidão e/ou saber se tal vedação impede ou dificulta o uso da servidão[---], uma vez que, como se explicou, os exequentes não têm título executivo para exigir o cumprimento das obrigações em que seriam firmáveis tais “pretensas” violações[---]."


[MTS]