"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/10/2022

Jurisprudência 2022 (36)


Pedido reconvencional;
conexão objectiva; causa de pedir


1. O sumário de RC 1/2/2022 (1878/19.0T8VIS-E.C1) é o seguinte:

I – Para efeitos da alínea a) do n.º 2 do artigo 266 do C.P.C., o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção quando se funda no mesmo facto jurídico que serve de fundamento a esta; e emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa quando os factos invocados produzam efeito útil defensivo.

II - Não se verifica esta conexão quando a causa de pedir da acção se funda em incumprimento de contrato celebrado entre a autora e a reconvinte e a reconvenção se funda na prática de factos ilícitos imputados ao gerente da autora.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Considerou o tribunal recorrido que o pedido reconvencional não era admissível por não se mostrarem preenchidos os requisitos substantivos previstos pelo artigo 266º, n.º 2, do Código de Processo Civil, uma vez que a “ré funda o pedido em causa de pedir donde resulta a responsabilidade de terceiros por dever de a indemnizar, e erige como defesa a impossibilidade de pagar à autora os honorários por força de prejuízos em que incorreu decorrentes de atos de gestão praticados por G., que é também gerente da autora, mas agindo enquanto legal representante da dita I..”, considerando ser a A. parte ilegítima no litígio, tal como este é definido pela R. reconvinte.

A esta argumentação contrapõe a R. que:

- a A. é parte legítima pois que a reconvinte alega ter-lhe esta causado prejuízos;

-a circunstância de para tais danos, terem concorrido outros sujeitos não afasta a legitimidade da Autora, pois a responsabilidade civil é solidária e não há litisconsórcio necessário entre devedores solidários;

-a recorrente tem legitimidade activa para o pedido reconvencional pois a ela pertencem as posições jurídicas, quer activas quer passivas, da I. (e da C.), pelo que seu é o crédito indemnizatório sobre a Recorrida;

-os danos sofridos por sociedades sobre as quais tem domínio total inevitavelmente se repercutem na sua esfera jurídica, quer através da desvalorização das participações detidas (pois as sociedades filhas são activos da sociedade mãe) quer por via da responsabilidade pelo pagamento das dívidas das subsidiárias.

Refira-se desde já que sem qualquer razão, como aliás resulta da ausência de alegação de qualquer fundamento legal no âmbito do seu recurso e de, no fundo, a sua alegação se basear apenas numa invocada desconsideração da personalidade jurídica da sociedade A., na confundibilidade entre a R. reconvinte e sociedades terceiras que não estão demandadas nos autos e neles são não parte e, na total desconsideração do disposto nos artºs 75, 77, 79 e 498 e segs. do C.S.Comerciais, bem como dos normativos que regem a admissibilidade substantiva de pedidos reconvencionais.

Com efeito, decorre do disposto no artº 266 nº1 que o(s) R.(s) pode(m) deduzir, em sede de reconvenção pedidos contra o(s) A.(s), desde que se verifiquem os factores de conexão definidos no nº2 deste mesmo preceito legal, a saber:

- quando o pedido reconvencional se funde na mesma causa de pedir, total ou parcial, que a invocada pelo A.;

- quando seja a decorrência, total ou parcial, dos factos invocados pelo R. que constituam excepção dos factos alegados na p.i.;

- quando se pretenda exercer o direito a benfeitorias feitas com a coisa cuja entrega seja pedida;

- quando se pretenda exercer a compensação de um crédito detido pelo R. com eventual crédito que venha a ser reconhecido ao A.;

- quando por seu intermédio se vise o mesmo efeito jurídico que o pedido deduzido pelo A.

Trata-se de uma das exceções previstas na lei ao princípio da estabilidade da instância (previsto no artigo 260.º do CPC), em homenagem ao princípio da economia processual que possibilita a dedução de um contra pedido pelo R., no âmbito do mesmo litígio, evitando a propositura de uma nova acção, com fundamento total ou parcial, nos mesmos factos.

No entanto, porque este contra pedido pode acarretar inconvenientes de ordem processual, a sua admissibilidade implica a sempre a verificação da existência de requisitos não só de ordem processual, mas também de natureza substantiva, exigindo-se sempre que exista conexão entre o objeto da ação e o da reconvenção.

Enquadrando a R. o seu pedido reconvencional no âmbito da alínea a), do nº1 do artº 266 do C.P.C., porque alegadamente decorrente da defesa por si apresentada face ao pedido formulado pela A., necessário seria que o pedido reconvencional se fundasse na mesma causa de pedir, no mesmo acto ou facto jurídico concreto que deu causa à acção principal ou à defesa, quer esta última “se traduza numa impugnação indirecta da matéria alegada pelo autor, quer se traduza na invocação de uma excepção peremptória oposta à pretensão do autor” [Neste sentido vide Ac. do TRP de 10/02/20, proc. nº 426/13.0TBMLD-E.P1, disponível in www.dgsi.pt.]. [...]

Nestes termos, o R. pode formular um pedido reconvencional, ao abrigo da primeira parte da alínea a), quando este emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção, ou seja quando a causa de pedir seja, total ou parcialmente, a mesma, definida através dos factos constitutivos que compõem a previsão da norma.

Ora, sendo alegada pela A. como fundamento do seu pedido o incumprimento definitivo de um contrato de consultadoria celebrado com as RR. e o não pagamento de honorários e despesas devidos ao abrigo desse contrato, ao abrigo da responsabilidade civil contratual, a causa de pedir alegada pela R. como fundamento do seu pedido reconvencional, funda-se antes na responsabilidade pela prática de actos ilícitos e danosos por parte do gerente de sociedades alegadamente integrando o grupo da recorrente, de que foi gerente o também gerente da A. e cuja responsabilização decorrerá do disposto nos artºs 77 e 79 do C.S.Comerciais.

São causas de pedir distintas, pois que uma se funda num ilícito contratual tendo como sujeitos A. e R. e a outra, na culpa in agendo, com factos e sujeitos distintos. [...]

Ora, os factos alegados que se reportam a actos praticados por gerente de uma sociedade terceira aos autos, ainda que integrada em grupo detido pela R., extinta por insolvência (I.), que alegadamente terão causado prejuízos na esfera jurídica desta sociedade e da 2ª R. sua única sócia (extinta por dissolução e liquidação), excedem o âmbito da defesa da R., uma vez que nenhum dos factos constitutivos do pedido reconvencional tem por efeito, reduzir, modificar ou extinguir o pedido da A., por se reportar a actos praticados por terceiro e na esfera jurídica de terceiros. Aliás a responsabilização do gerente de sociedades comerciais pelos actos danosos praticados e de que decorram prejuízos para a sociedade, depende da verificação dos requisitos previstos nos artºs 75, 77 e 79 do CSC.

Por outro lado, conforme se refere no Ac. do STJ de 9-2-2012 [Proferido na Revista nº1386/09, Sumários do STJ, 2012, p. 136.]: “Ainda que existam relações jurídicas conexas, ou suscetíveis de ser condicionadas por aquela que constitui causa de pedir, o réu não pode «aproveitar» o pedido do autor para resolver o litígio global, ampliando deste modo o âmbito dos autos e violando, deste modo, o princípio de estabilidade da instância.”

A alegação da R. de que a I. já não existe, pelo que não pode ter a posição de credora, como não existe a C., que era a única sócia da I., pelo que a esta também nada pode ser devido, sendo por dissolução desta a B., que é a sociedade mãe do grupo, a titular das obrigações da C. e das posições activas e que sempre “a B. teria legitimidade para o pedido reconvencional, por ter sido directamente lesada (…) sendo detentora a 100% das empresas subsidiárias, um rombo de 500 mil euros nas contas destas significa que a participação social detida pela sociedade mãe se desvalorizou nesse exacto montante. Além disso, de acordo com os artigos 501.º e 502.º do CSC, sempre a B. seria responsável pelas dívidas das suas participadas a 100%, pelo que o estado financeiro da C. e da I. se repercute directamente na B.. Além disso, nos termos do n.º 2 do art. 502.º do CSC, estando a I. falida, poderia pedir exigir à B. a compensação pelas perdas registadas.”, também não tem acolhimento na lei.

É uma alegação que pretende transmitir para a esfera jurídica da recorrente direitos que lhe não assistem, nem decorre do disposto nos normativos por esta citados.

Se na realidade decorre do disposto no artº 501 do CSC que se uma sociedade tiver celebrado contrato de participação (artº 493 do CSC) ou detiver o total do capital social de outra sociedade (artº 498 do CSC), é responsável por todo o passivo da sociedade subordinada, tal não equivale a considerar que seja titular de um crédito na proporção deste passivo. A responsabilidade da sociedade-mãe pelo passivo da sociedade-filha, ou seja, pelo pagamento aos credores, significa apenas que esta fica sub-rogada nos direitos destes credores pelo que haja pago.

No entanto, a acção de indemnização pelos actos danosos, desvio ilícito de fundos etc, por parte do gerente ou administrador desta sociedade, cabe à aludida sociedade, aos sócios ou aos seus credores (artºs 74 e segs. do CSC).

Declarada insolvente, ao administrador da insolvência caberá o direito e o dever de intentar acção contra os devedores e contra sócios, administradores ou gerentes, responsáveis. [...]

Por outro lado, também se não vê que seja a R. titular de qualquer crédito, do qual seja devedora a A, pelo que nunca poderia pretender operar a compensação nestes autos.

Assim sendo, não se verificam quaisquer dos requisitos que permitem a admissibilidade deste pedido reconvencional, pelo que a apelação improcede no seu todo."

[MTS]