"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/10/2022

Jurisprudência 2022 (41)


Apoio judiciário;
comprovativo; petição inicial; recusa*


1. O sumário de RP 17/1/2022 (8099/21.0T8VNG-A.P1) é o seguinte:

I - O art. 552º, nº 7, do CPC, deve ser conjugado com o art. 25º da Lei 34/2004, pelo que, formado acto tácito de deferimento do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça (ou sendo de presumir essa formação), tanto basta para que, nos termos do nº 7 do citado art. 552º, a petição inicial deva ser admitida, devendo, todavia, o autor juntar o documento comprovativo da formulação do pedido, há mais de 30 dias, de concessão de tal benefício e disso fazer menção na petição inicial e, o juiz, confirmá-lo junto da Segurança Social, que deverá responder em dois dias úteis (art. 25º, nº 4, da Lei 34/2004).

II - Tendo o A., aos 30.09.2021, requerido à Segurança Social a concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e, aos 28.10.2021, apresentado a petição inicial, a esta data ainda não havia decorrido o prazo de 30 dias de modo que se pudesse dizer que já poderia estar formado acto tácito de deferimento. E, por outro lado, tendo-se limitado, com a p.i., a juntar o comprovativo do pedido de apoio judiciário, nada tendo alegado quanto à urgência que, nos termos do art. 552º, nº 9, pudesse justificar a possibilidade de apresentação da mesma sem que aguardasse, pelo menos, pela formação de acto tácito de deferimento do referido apoio, nem requerido a citação urgente, verificam-se os pressupostos da recusa, pela secretaria, da p.i.

III. Não obstante, tendo à data da decisão recorrida (decisão sobre a reclamação apresentada do acto de recusa da p.i. pela secretaria) – esta de 08.11.2021 – decorrido os mencionados 30 dias para formação do acto tácito de deferimento da concessão do apoio judiciário (ou, pelo menos, sendo de presumir que tal se poderá ter verificado), e tendo em conta os princípios do aproveitamento dos actos processuais e da economia processual (art. 193º do CPC), os poderes/deveres de gestão processual por parte do juiz (art. 6º da p.i.), o princípio da adequação formal (art. 547º do CPC), bem como o da actualidade da decisão (que se extrai do art. 611 do CPC), deveria a p.i. ter sido admitida pelo juiz e ordenado o cumprimento do art. 25º, nº 4, da Lei 34/2004.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. Ao caso é aplicável o CPC/2013, na redacção introduzida pelo DL 97/2019.

Dispõe o art. 552º do mesmo que: “7 - O autor deve, com a apresentação da petição inicial, comprovar o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão do benefício de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do mesmo, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º 8 – (…). 9 - Sendo requerida a citação nos termos do artigo 561.º, e faltando, à data da apresentação da petição em juízo, menos de cinco dias para o termo do prazo de caducidade ou ocorrendo outra razão de urgência, deve o autor comprovar que requereu o pedido de apoio judiciário mas este ainda não foi concedido, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º ou, sendo a petição inicial apresentada por uma das formas previstas nas alíneas a) a c) do n.º 7 do artigo 144.º, através da junção do respetivo documento comprovativo. 10 - No caso previsto no número anterior, o autor deve efetuar o pagamento da taxa de justiça no prazo de 10 dias a contar da data da notificação da decisão definitiva que indefira o pedido de apoio judiciário, sob pena de desentranhamento da petição inicial apresentada, salvo se o indeferimento do pedido de apoio judiciário só for notificado depois de efetuada a citação do réu. (…) ”.

Por sua vez, dispõe o art. 25º da Lei 34/2004, de 29.07, na redacção da Lei 47/2007, de 28.08, que: “1 - O prazo para a conclusão do procedimento administrativo e decisão sobre o pedido de protecção jurídica é de 30 dias, é contínuo, não se suspende durante as férias judiciais e, se terminar em dia em que os serviços da segurança social estejam encerrados, transfere-se o seu termo para o 1.º dia útil seguinte. 2 - Decorrido o prazo referido no número anterior sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de protecção jurídica. 3 - No caso previsto no número anterior é suficiente a menção em tribunal da formação do acto tácito e, quando estiver em causa um pedido de nomeação de patrono, a tramitação subsequente à formação do acto tácito obedecerá às seguintes regras: (…). 4. O tribunal ou, no caso referido na alínea b) do número anterior, a Ordem dos Advogados devem confirmar junto dos serviços de segurança social a formação do acto tácito, devendo estes serviços responder no prazo máximo de dois dias úteis. 5. (…)”. [...]

Por sua vez, determina o art. 558º do CPC que “1 - São fundamentos de rejeição da petição inicial os seguintes factos: (…); f) Não tenha sido comprovado o prévio pagamento da taxa de justiça devida ou a concessão de apoio judiciário, excepto no caso previsto no nº 9 do art. 552º” e, o art. 559 do mesmo que “1. Do ato de recusa de recebimento cabe reclamação para o juiz. 2- Do despacho que confirme o não recebimento cabe sempre recurso até à Relação, aplicando-se com as necessárias adaptações, o disposto na alínea c) do nº 3 do artigo 629º e no nº 7 do artigo 641º.”

Do disposto no citado art. 552º, nº 7, do CPC, decorre que, com a petição inicial, o autor deverá juntar documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça ou da concessão do benefício de apoio judiciário que dispense esse pagamento, salvo nas situações apontadas no nº 9 do mesmo (em que seja requerida a citação urgente e faltando menos de 5 dias para o termo do prazo de caducidade ou quando ocorra outra razão de urgência).

Mas o art. 552º, nº 7, do CPC, deve ser conjugado com o art. 25º da Lei 34/2004, tanto mais que aquele não distingue entre deferimento expresso ou tácito do apoio judiciário. Ou seja, formado acto tácito de deferimento do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça tanto basta para que, nos termos do nº 7 do citado art. 552º, a petição inicial deva ser admitida, devendo, todavia, o autor juntar o documento comprovativo da formulação do pedido, há mais de 30 dias, de concessão de tal benefício e disso fazer menção na petição inicial.

Diga-se que bem se compreende que tanto baste para efeitos de cumprimento do disposto no art. 552º, nº 7º. Com efeito, não pode o recurso ao tribunal ser preterido por insuficiência de meios financeiros ou protelado até data incerta para conclusão, pela Segurança Social, do pedido de apoio judiciário. E, por que assim é, é que entendeu o legislador que 30 dias seriam os suficientes para a existência de uma tal decisão, presumindo a sua concessão em caso de inexistência de decisão nesse prazo (acto tácito de deferimento).

É certo que o decurso dos 30 dias sobre o pedido de concessão do apoio judiciário não determina, sem mais ou automaticamente, que se verifique tal deferimento tácito, sendo certo que o mencionado prazo pode ser suspenso, como ocorre nas situações previstas no art. 8º-B, nº 3, da Lie 34/2004. Não obstante, tal não é motivo de rejeição da p.i. pela secretaria desde que o comprovativo do pedido formulado há mais de 30 dias seja com ela junto e o autor faça menção da formação de acto tácito de deferimento, sendo certo que, em tal caso, deverá o juiz confirmá-lo junto da Segurança Social e esta deverá responder em dois dias úteis (art. 25º, nº 4, da Lei 34/2004).

3. Revertendo ao caso em apreço, o A., aos 30.09.2021, requereu à Segurança Social a concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e, aos 28.10.2021, apresentou a petição inicial.

Ou seja, aquando da apresentação da petição inicial ainda não havia decorrido o prazo de 30 dias de modo que se pudesse dizer que, a essa data, já poderia estar formado acto tácito de deferimento.

Por outro lado, na petição inicial, o A. limitou-se a juntar documento comprovativo do pedido de apoio judiciário, nada tendo alegado quanto à urgência que, nos termos do art. 552º, nº 9, pudesse justificar a possibilidade de apresentação da mesma sem que aguardasse, pelo menos, pela formação de acto tácito de deferimento do referido apoio [ou seja que não pudesse, pelo menos, aguardar até 03.11.2021, tendo em conta que os dias 31.10. e 01.11 foram respectivamente, domingo e feriado], nem tão pouco tendo feito referência ao citado preceito, como o deveria ter feito caso, porventura, entendesse que se verificaria alguma das situações nele previstas a justificar essa possibilidade, assim como aí não requereu a citação urgente (art. 561º do CPC, para o qual remete o art. 552º, nº 9, do mesmo). Acresce que, de acordo com o que o A. alegou na p.i., o contrato de trabalho cessou aos 16.12.2020, pelo que o prazo de prescrição dos créditos reclamados apenas ocorreria aos 17.12.2021 (art. 337º, nº 1, do CT/2009). Ora, tendo a petição inicial dado entrada em juízo aos 28.10.2021, tal ocorreu antes dos cinco dias anteriores ao “termo do prazo de caducidade”.

Ou seja, à data da apresentação da petição inicial (28.10.2021) a secretaria rejeitou, como lhe competia, a petição inicial. E não cabe à secretaria ponderar os dias que faltariam para a formação do acto tácito de deferimento, nem dessa ponderação, mesmo faltando poucos dias, resultaria a possibilidade de não rejeição da p.i. pela secretaria. E, não podemos deixar de o dizer, que, se tivesse o A. aguardado mais alguns, poucos, dias (4 dias) e feito menção da formação de acto tácito de deferimento, como o deveria ter feito, ou, pelo menos, que tivesse acatado a decisão recorrida e, logo a seguir, intentado novamente a acção, mas agora com a indicação da formação de acto tácito de deferimento (ao invés de ter optado pelo recurso), mais rapidamente teria solucionado a questão, e sendo certo que apenas a ele é imputável a rejeição da p.i. pela secretaria.

4. Mas avançando, uma vez que a questão, todavia, não se esgota no referido.

Com efeito, a questão que, de seguida, se coloca prende-se com a circunstância de, à data da decisão recorrida – esta de 08.11.2021 – já terem decorrido os mencionados 30 dias para formação do acto tácito de deferimento da concessão do pedido de apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça que havia sido formulado pelo A. e cujo comprovativo juntou aos autos.

A reclamação para o juiz do acto de recusa pela secretaria da petição inicial tem por objecto, o que se reconhece, verificar se essa recusa foi ou não correcta, devendo ser ponderadas as circunstâncias que se verificavam aquando dessa recusa. E, no caso e como acima se disse, à data da apresentação em juízo da p.i., a recusa da mesma pela secretaria está em conformidade com as disposições legais.

Não obstante, aquando despacho recorrido, já se encontrava decorrido período superior ao da formação de acto tácito de deferimento do pedido de apoio judiciário.

O processo civil, não é o ou um fim em si mesmo, antes se encontrando ao serviço do direito substantivo e da realização da justiça material, estes os fins que com aquele se visam alcançar.

Por outro lado, a lei privilegia o princípio do aproveitamento dos actos processuais e da economia processual (art. 193º do CPC), mais cometendo ao juiz os poderes/deveres de gestão processual, através da direcção activa do processo e da promoção quer do seu andamento célere, adoptando as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento com vista à justa composição do litígio, quer com vista ao suprimento da falta de pressupostos processuais que sejam passíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância (art.6º do CPC), consagrando ainda o art. 547º do mesmo o princípio da adequação formal, dispondo tal preceito que o “juiz deve adoptar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos actos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo”. E, por fim, se e na medida do possível, a decisão deverá ter em conta a situação que se verifique à data em que é proferida de modo a que a decisão corresponda a essa situação, princípio que se extrai do art. 611º do CPC e que, embora reportado especificamente à atendibilidade na sentença de factos supervenientes, é ou pode ser transponível para os despachos.

4.1. Ora, tendo em conta o referido enquadramento, afigura-se-nos ser de concluir que, à data da prolação do despacho recorrido, este, pese embora o que se disse no que toca à rejeição pela secretaria da petição inicial, deveria ter admitido a p.i. e ordenado o cumprimento do art. 25º, nº 4, da Lei 34/2004 (solicitar à Segurança Social confirmação do acto tácito de deferimento do apoio judiciário, tramitando subsequentemente o processo em conformidade com a informação prestada).

Com efeito, à data de tal despacho, já tinham decorrido mais de 30 dias sobre o pedido de apoio judiciário, pelo que seria de presumir a formação de acto tácito de deferimento, o qual deveria ter sido tido em conta assim se aproveitando a prática do acto processual (petição inicial) praticado pela parte, promovendo-se o andamento célere da acção e adequando-se a decisão à situação verificada no momento da decisão, sendo certo que, a esta data, o pressuposto e impedimento processual em que assentou a rejeição pela secretaria, já não se verificava. Diga-se que poderia o A., ao invés de reclamar do acto da secretaria (aguardando 4 dias, até dia 03.11.2021) e/ou de recorrer, ter apresentado nova petição inicial juntando o comprovativo do pedido de apoio judiciário que já havia junto, caso em que, face à formação do acto tácito de deferimento, já se mostraria cumprido o art. 552º, nº 7, do CPC. Ora, não se vê razão para que, de modo justificado, proporcional e equitativo e, também, em nome dos princípios da celeridade e economia processuais e da justiça material, não se possa aproveitar a petição inicial, verificado, ou sendo de presumir que se verificava, a formação de acto tácito de deferimento do apoio judiciário.

Esclareça-se que a isso não obsta a circunstância de, na petição inicial, não ser feita menção ao acto tácito de deferimento do apoio judiciário, o que, é certo, nem seria possível pois que, à data da p.i., ainda não havia decorrido o prazo para tal. Não obstante, não se nos afigura que tal menção consubstancie requisito ou condição sine qua non, de cuja preterição resultasse a inevitabilidade da rejeição da p.i. pelo despacho recorrido. Com efeito, o juiz sempre poderá, oficiosamente e pelas datas constantes da apresentação do pedido de apoio judiciário na Segurança Social e da entrada em juízo da p.i. constatar o decurso desse prazo ou, pelo menos e se entendesse que tal não seria suficiente, sempre poderia, ao abrigo do art. 6º, nº 2, do CPC, notificar o A. para informar da verificação ou não de tal requisito, para além de que, por via do cumprimento do art. 25º, nº 4, da Lei 34/2004, sempre viria o tribunal a ser disso informado.

Ou seja, e em conclusão, afigura-se-nos que deveria o Mmº Juiz ter admitido a petição inicial, dada a alteração, à data do despacho recorrido, dos pressupostos que, então, haviam determinado a rejeição da mesma pela secretaria."


*3. [Comentário] O acórdão constitui exemplo de um daqueles que, numa primeira valoração, parecem consensuais e indiscutíveis, mas que se tornam duvidosos à medida que se vai ponderando a situação neles apreciada.

Em termos breves, importa considerar que as decisões devem tomar por base a situação que existe no momento do acto que apreciam. É essa a sua referência temporal. 

O art. 611.º, n.º 1, CPC permite que o tribunal considere factos supervenientes. No entanto, o decurso de um prazo que deve estar cumprido no momento da prática de um acto nunca pode ser considerado um facto superveniente. De outro modo, haveria que concluir que, por exemplo, a inexigibilidade do cumprimento de uma obrigação poderia ser ultrapassada com o esgotamento do prazo durante a pendência da acção. Trata-se, como é bom de ver, de uma conclusão inaceitável.

No caso concreto, acresce que não se pode presumir o deferimento tácito da concessão do apoio judiciário depois da data da entrega da petição inicial. Nada pode fazer presumir que o apoio judiciário foi concedido quando no momento da entrega da petição inicial o prazo para a sua concessão ainda não se tinha esgotado. Efectivamente, sem o comprovativo da concessão do apoio judiciário é inaceitável concluir que, porque no momento da entrega da petição inicial o apoio ainda não tinha sido recusado, então ele também não foi recusado depois dessa entrega. Não há nenhuma regra legal ou de experiência que o permita inferir.

É verdade que, no caso concreto, faltavam poucos dias para o deferimento tácito do pedido de apoio judiciário. No entanto, é certo que o critério deve valer independentemente do prazo que falta para a pronúncia sobre a concessão desse apoio. A solução tem de ser a mesma quando faltam 2, 15 ou 20 dias para a pronúncia sobre a concessão do apoio judiciário.

Note-se ainda que o art. 552.º, n.º 7, CPC exige que se comprove a concessão do apoio judiciário e que o decidido no acórdão deixa sem justificação não só o disposto no n.º 9 do mesmo preceito, mas também o estabelecido no art. 558.º, n.º 1, al. f), CPC. Se, afinal, fosse possível propor a acção antes da concessão do apoio judiciário não se compreenderia a necessidade de regular especificamente, como fazem aqueles preceitos, essa propositura antes dessa concessão.

MTS