Princípio da confiança;
actos da secretaria
1. O sumário de RP 8/2/2022 (3875/15.5T8MAI-C.P1) é o seguinte:
I - Segundo um critério de lealdade processual, que se impõe à luz do regime do art. 7º do CPC, mas que se evidencia também na solução consagrada no art. 157º, nº 6 do CPC, dirigida à secretaria judicial mas de natureza sistémica e não reservada às secretarias, não deve uma parte ser prejudicada quanto ao exercício de um direito processual em resultado de uma informação incompleta ou inexacta que lhe tenha sido transmitida por um despacho judicial, em função do qual razoavelmente se conclua poder ter sido condicionada a sua actuação.
II - Ao anunciar ter ouvido “as gravações” de uma sessão de julgamento, constatando que o depoimento de uma testemunha não estava gravado e ao actuar de forma a superar essa irregularidade, é de admitir que o tribunal levou a que as partes razoavelmente se convencessem de que, a contrario, as gravações dos restantes depoimentos se processaram com normalidade e qualidade adequada à sua ulterior utilização processual.
III - Nestas circunstâncias, se só em momento ulterior uma das partes detectou a inexistência de gravação, deve contar-se desde então o prazo para arguição da correspondente nulidade.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"O objecto do recurso, definido a partir das conclusões enunciadas, consiste em apreciar se, nas circunstâncias do caso, deve ter-se por tempestiva a arguição da inaudibilidade das gravações de dois depoimentos e se isso constitui nulidade que implique a anulação do julgamento e da sentença, bem como a repetição de todos os actos necessários à superação dos actos inválidos e dos deles dependentes.
Porém, antes disso, importa decidir se o presente recurso deve ser admitido, pois que a apelada/embargada alega que a impugnação da decisão em causa não deveria ter ocorrido em apelação autónoma, mas no âmbito do recurso que viesse a ser interposto, designadamente no âmbito da pretensão de ampliação do objecto do recurso que a embargante viesse a deduzir em sede de resposta ao recurso de apelação da sentença oferecido por si própria, embargada, aqui apelada. E acrescenta ter já decorrido o prazo para esse efeito, pelo que jamais poderá ser conhecida, em sede de recurso, a questão colocada.
A este propósito, importa considerar que não oferece dúvida a recorribilidade intrínseca da decisão em questão: é desfavorável para a embargante e priva-a de um direito processual: o de reagir, através do expediente de ampliação do âmbito do recurso, a uma decisão judicial que, quanto a alguns dos seus pressupostos de facto, lhe foi adversa em termos que podem ser consequentes, caso proceda o recurso da parte contrária. Para além disso, a causa tem valor que torna admissível o recurso e este foi intentado em prazo, por referência à data da decisão recorrida.
Por outro lado, à embargante jamais poderia exigir-se que suscitasse a questão num recurso de apelação interposto da própria sentença. Nesta obtivera ganho de causa, pelo que não se lhe reconheceria legitimidade para recorrer.
Daí que, para impugnar a sentença, designadamente quanto aos pressupostos de facto cujo julgamento lhe foi desfavorável, lhe restasse o expediente referido, da ampliação do âmbito do recurso, nos termos do art. 636º do CPC.
Porém, em concreto, a embargante estava impedida de se socorrer deste expediente processual, pois que, para apresentar essa pretensão, teria de impugnar a decisão da matéria de facto em relação a alguns pontos. Porém, não o poderia fazer por não existirem as gravações dos depoimentos de duas testemunhas tidas por relevantes para esse efeito.
Nestes termos, a reacção contra a decisão que rejeitou o conhecimento da nulidade proveniente da falta de gravação de dois depoimentos, com efeitos extensíveis ao julgamento e sentença, tem de ter lugar fora das soluções de impugnação da própria sentença, sob pena de se coarctar à embargante a hipótese dessa reacção.
Acresce que, no caso, o incidente acabou por ter um processamento autónomo, tendo este ocorrido já após a prolação da sentença: ao requerimento de arguição da nulidade do julgamento e da sentença sobreveio uma actividade instrutória, através da intervenção da secretaria, bem como uma ulterior fase de contraditório, que culminou na decisão recorrida.
Assim, nos termos do art. 644º, nº 1, al. a) do CPC, deve admitir-se e conhecer-se do mérito do presente recurso.
*Resolvida esta questão, cumpre decidir se deve ter-se por tempestiva a arguição da nulidade relativa à inaudibilidade das gravações de dois depoimentos e se isso deve determinar a anulação do julgamento e da sentença, como a repetição de todos os actos necessários à superação dos actos inválidos.
Em primeiro lugar, entendemos ser incontroversa a conclusão de que a falta ou deficiência que torne imprestáveis as gravações de dois depoimentos testemunhais constitui [sic] nulidade susceptível de influir na decisão da causa. Com efeito, consubstancia a omissão de uma formalidade que a lei prescreve (art. 155º, nº 1 do CPC) e, não havendo qualquer juízo definitivo sobre a irrelevância dos depoimentos das testemunhas BB e CC, sendo mesmo de sinal contrário a tese da apelante, será impossível sustentar, como se faz na decisão recorrida, que o respectivo teor não é, ou pode presumir-se não ser, essencial para o “apuramento da verdade”, isto é, para a fixação do substrato factual da sentença.
Por consequência, a impossibilidade de usar o registo desses depoimentos para instruir a pretensão de ampliação do âmbito do recurso, em resposta ao recurso da embargada, tem de admitir-se como sendo uma circunstância susceptível de vir a influenciar a decisão da causa, por não poder excluir-se a hipótese de procedência desse recurso e, nesse caso, da pertinência da ampliação do âmbito do recurso e a utilidade desses depoimentos. Verifica-se, pois, a nulidade invocada.
Cabe, subsequentemente, decidir se a arguição desta nulidade se pode ter por tempestiva, porquanto a decisão sob recurso rejeitou a sua apreciação por a considerar extemporânea.
Tem-se presente o regime constante do art. 155º, nº s 3 e 4 do CPC: a gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias a contar do respectivo acto, sendo que, ocorrendo no sistema Citius, essa disponibilidade se verifica de imediato, após o encerramento do acto. E as partes têm o prazo de dez dias para invocar a falta ou deficiência da gravação, sob pena de preclusão desse poder. Isto sem prejuízo de o próprio tribunal, em qualquer momento, poder verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível e determinar a repetição do acto, sempre que for essencial ao apuramento da verdade (art. 9º do DL 39/95 de 15-2).
No caso a sessão da audiência em que foram ouvidas as duas testemunhas referidas ocorreu em 26/4/2021. Como se enuncia na decisão recorrida, logo nessa data se efectiva a disponibilização da gravação, nos termos e para os efeitos do art. 155º nº3 e 4 do Código de Processo Civil. O prazo de 10 dias previsto no nº 4 do art. 155º do CPC, para arguir a deficiência da gravação do depoimento daquelas testemunhas, terminaria, in casu, em 6/5/2021, sem prejuízo da ponderação de que o 3º dia útil posterior ocorreria em 11/5/2021, como se refere na decisão recorrida. A este propósito, a própria apelada recorre a diferentes datas, considerando não a data da sessão em causa, mas a da última sessão do julgamento, mas sem que isso altere o resultado, pois que, à semelhança do tribunal recorrido, acaba por considerar a arguição extemporânea.
Com efeito, o que aconteceu foi que a ora apelante só em 5/8/2021 pediu e obteve uma cópia da gravação dos dois depoimentos, só então tendo constatado a sua deficiência e imprestabilidade. Por isso, só depois (em 30/8/2021), isto é, muito depois daquela data de 11/5/2021, veio reclamar da deficiência das gravações.
Foi por isso que o tribunal a quo concluiu dever ser recusada, por extemporânea, a sua reclamação, isto é, a arguição da nulidade decorrente daquela deficiência de gravação.
Porém, algo se verificou, que deve ponderar-se a este propósito.
Como refere a apelante, em 30/4/2021, ou seja, dentro do prazo disponível para a embargante aceder e verificar a qualidade das gravações e disso reclamar, se para isso detectasse razões, o próprio tribunal proferiu o seguinte despacho: “Após audição das gravações da última sessão de julgamento constata-se que, lamentavelmente, o depoimento da testemunha ouvida sob indicação de ambas as partes na sessão do passado dia 26 de Abril, o Sr. AA, é inaudível.
Não obstante terem sido colhidos apontamentos que sumariam o teor do depoimento e que permitem que este, oportunamente, seja considerado pelo tribunal em sede de motivação da sua convicção, a circunstância de o referido depoimento não se encontrar gravado inviabiliza a sua utilização em caso de recurso da matéria de facto.
Assim, de modo a evitar que as partes sejam surpreendidas com a deficiência do registo áudio e a permitir que, querendo, possam reagir à irregularidade em momento anterior ao encerramento da audiência de julgamento, notifique o teor do presente despacho.”. Na sequência deste despacho, a prestação do depoimento daquela testemunha foi repetido e regravado.
Porém, perante o respectivo teor, alega a apelante ter adquirido a convicção de que, se um dos depoimentos estava mal gravado ou por gravar, referindo o tribunal que ouvira “as gravações da última sessão de julgamento”, os demais só poderiam estar bem gravados [als. G) a J)], não podendo considerar-se leviana a sua confiança sobre que assim acontecesse. E, nestas circunstâncias, deverá admitir-se que só em 5/8/2021 teve conhecimento da deficiência de gravação dos depoimentos de testemunhas BB e CC, pelo que arguiu atempadamente a nulidade daí decorrente.
É impossível deixar de concordar com a tese da apelante.
Com efeito, segundo um critério de lealdade processual, que se impõe à luz do regime do art. 7º do CPC, mas que se evidencia também na solução consagrada no art. 157º, nº 6 do CPC (6- Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.), dirigida à secretaria judicial, mas de natureza obviamente sistémica e não reservada às secretarias, não deve uma parte ser prejudicada quanto ao exercício de um direito processual em resultado de uma informação incompleta ou inexacta que lhe tenha sido transmitida por um despacho judicial, em função do qual razoavelmente se conclua poder ter sido condicionada a sua actuação.
É o que se conclui ter acontecido no caso em apreço.
É de admitir que o tribunal, ao anunciar ter ouvido “as gravações” de uma sessão de julgamento, constatando que o depoimento de uma testemunha não estava gravado e ao actuar de forma a superar essa irregularidade, tenha levado as partes a convencerem-se, razoavelmente, que, a contrario, as gravações dos restantes depoimentos se processaram com normalidade e com a qualidade necessária à sua ulterior utilização processual.
Tendo o tribunal verificado a qualidade, ou falta dela, das gravações a que aparentemente se refere – i. é, não só a do depoimento da testemunha AA, mas também a dos depoimentos das demais – é de considerar que as partes se tenham conformado com essa verificação, não tratando de ir reverificar aquilo que o tribunal anunciava ter analisado, designadamente a falta de qualidade daquela gravação, a par da qualidade pressuposta das restantes.
Assim sendo, é de considerar que, no caso concreto, e por a tal ter sido induzido pela actuação do próprio tribunal, a ora apelante só em 5/8/2021 teve conhecimento, por então lhe ter sido disponibilizada a gravação dos respectivos depoimentos, da imprestabilidade das gravações dos depoimentos de BB e CC.
Por tal motivo, só a partir de então deverá contar-se o prazo previsto no art. 155º, nº 4 do CPC.
Esta conclusão acarreta a conclusão pela tempestividade da arguição da nulidade decorrente da deficiência e inerente ausência de gravação dos depoimentos de BB e CC, circunstâncias estas que, como supra se justificou, se constata integrarem uma efectiva nulidade, nos termos do art. 195º, nº 1 do CPC.
Nos termos do nº 2 do art. 195º do CPC, a nulidade da recolha dos depoimentos em questão (BB e CC) acarreta a nulidade do julgamento e da subsequente sentença.
Assim, anulando-se os actos de produção de prova constituídos pelos depoimentos testemunhais de BB e CC, haverão estes de ser repetidos. O julgamento e sentença relativamente aos quais esses actos constituíram uma actividade instrutória são necessária e igualmente anulados.
Nos termos do art. 605º, nº 3 do CPC, a repetição desses actos competirá à Sra. Juiz que presidiu ao julgamento, assim se salvaguardando os demais actos de produção de prova não anulados. Concluirá assim o julgamento, com a prolação da sentença pertinente.
Isso só não haverá de acontecer se, conforme dispõe o art. 605º nº 3 cit., se vier a concluir, em sede de 1ª instância, ser preferível a repetição dos demais actos já praticados em julgamento."
[MTS]
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