"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/10/2022

Jurisprudência 2022 (50)


Direito de retenção;
fundamento

1. O sumário de RP 24/1/2022 (1721/20.7T8VNG.P1) é o seguinte:

I - Por falta de conexão com a coisa que se pretende reter, a sociedade ré titular de um crédito sobre o autor resultante dos serviços de construção e montagem de uma cozinha não goza do direito real de retenção de um beliche que lhe foi entregue para reparação pelo autor.

II - Embora exista reciprocidade de créditos, não existe conexão entre o crédito do autor de restituição do beliche entregue à ré para reparação e o crédito da ré de obter o pagamento do preço da cozinha cuja construção e montagem foi acordada com o autor, falta de conexão entre os créditos que obsta ao reconhecimento de um direito obrigacional de retenção.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida na parte em que não lhe reconheceu o direito de retenção sobre o beliche que o autor lhe entregou para reparação.

Para tanto, alegou no corpo da sua apelação e repetiu em sede de conclusões do mesmo recurso o seguinte:

1. A Ré tem um crédito relacionado, nos termos legalmente previstos, com a coisa retida, que colabora com a função de assegurar que o seu crédito será pago com preferência a outros credores, como pressupostos do direito de retenção pode tão só existir ter uma relação legal ou contratual, como resulta do artigo 755.º do Código Civil, que são os chamados casos especiais, onde não há, necessariamente uma relação direta do crédito e da coisa, sendo o caso, estamos perante um direito real de garantia.

2. É certo que para o exercício do direito de retenção sem complicação basta uma conexão lógica entre a coisa e o crédito, motivo este pelo qual a coisa passa a se vincular e ser tida como garantidora do crédito, oponível, inclusive, erga omnes, porém em alguns momentos as normas em vigor quanto a esse instituto criam situações diversas, onde se poderá exercer esse direito, mesmo que não haja a conexão requisitada entre coisa e crédito, como é o caso.

Na sentença recorrida julgou-se improcedente a pretensão da ré de reconhecimento de um direito de retenção a seu favor com os seguintes fundamentos:

Desde já importa recordar que os factos alegados pela ré, relativos ao seu reclamado crédito, não foram dados como assentes.

Mesmo que assim não fosse, contudo, importa dizer que, nos termos do artigo 754º do C. Civil, “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”

Ora a ré fundamentou a retenção do móvel descrito nos factos assentes com uma dívida do autor relacionada com a fabricação de uma cozinha, que nada tinha a ver com aquele pelo que nunca poderia ser considerada como lícita essa conduta.

Cumpre apreciar e decidir.

De acordo com o disposto no artigo 754º do Código Civil, norma que prevê em geral o direito de retenção, “[o] devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”

A iliquidez do crédito daquele que invoca o direito de retenção não obsta ao reconhecimento desse direito (artigo 757º, nº 2, do Código Civil).

Além da previsão geral que reconhece o direito de retenção, existem previsões específicas do mesmo direito no artigo 755º do Código Civil.

No caso em apreço, atenta a factualidade resultante da reapreciação da decisão da matéria de facto, pode concluir-se que a ré é titular de um crédito contra o autor.

A recorrente invoca um crédito resultante de uma empreitada (construção e montagem de uma cozinha) para reter um objeto que lhe foi entregue pelo dono da obra para execução de uma outra empreitada (reparação de um beliche).

No seu figurino geral, o direito real de retenção exige que o crédito por ele garantido resulte de despesas feitas por causa da coisa retida ou de danos por ela causados, o que patentemente não se verifica no caso dos autos.

Esta situação não se reconduz a nenhuma das previsões específicas do direito de retenção constantes do artigo 755º do Código Civil e dada a natureza real do direito de retenção, não é legalmente admissível a criação por via analógica de novos casos específicos de direito real de retenção (veja-se o nº 1, do artigo 1306º do Código Civil) [Sobre esta problemática veja-se Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, em especial na excepção de não cumprimento, no direito de retenção e na compensação, Almedina 2015, Ana Taveira da Fonseca, páginas 348 a 351].

Por outro lado, embora exista reciprocidade de créditos, não existe conexão entre o crédito do autor de restituição do beliche entregue para reparação e o crédito da ré de obter o pagamento do preço da cozinha cuja construção e montagem foi acordada com o autor, falta de conexão entre os créditos que obsta ao reconhecimento de um direito obrigacional de retenção [Sobre esta problemática veja-se Da Recusa de Cumprimento da Obrigação para Tutela do Direito de Crédito, em especial na excepção de não cumprimento, no direito de retenção e na compensação, Almedina 2015, Ana Taveira da Fonseca, páginas 501 a 557 e especialmente na página 547].

Os elementos disponíveis são insuficientes para afirmar que o exercício do direito do autor de obter a restituição do beliche entregue à ré é abusivo, nomeadamente por assim proceder, sendo devedor da ré por força de outra relação contratual.

Em todo o caso, deve vincar-se que, fazendo fé nas alegações das partes, o beliche em causa terá um valor diminuto e por isso muito insuficiente para poder eficazmente compelir o autor a cumprir a obrigação de pagamento do preço da cozinha encomendada à ré.

Pelo exposto, conclui-se pela improcedência da pretensão da recorrente de que lhe seja reconhecido o direito de retenção do beliche que o autor lhe entregou enquanto não for embolsada do preço devida pela construção e montagem da cozinha que acordou com o autor, seja enquanto direito real de garantia, seja enquanto direito obrigacional de retenção."

[MTS]