"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/10/2022

Jurisprudência 2022 (39)


Prova; impossibilidade culposa;
inversão do ónus da prova


I. O sumário de RE 10/2/2022 (425/18.5T8ALR.E1) é o seguinte:

1 – A alocução fundamento para impor decisão diversa, nos termos proclamados pelo n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, não se basta com a possibilidade de uma alternativa decisória, antes exige que o juízo efectuado pela Primeira Instância esteja estruturado num lapso relevante no processo de avaliação da prova.

2 – A inversão do ónus da prova nos termos previstos no artigo 344.º do Código Civil, para que remete o n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Civil, pressupõe que tenha havido uma recusa de cooperação processual por uma das partes que tenha tornado culposamente impossível a prova ao onerado.

3 – A inversão do ónus da prova está assim dependente da verificação dos seguintes pressupostos: i. a prova de determinada factualidade há de ter-se tornado impossível ou, pelo menos, particularmente difícil de fazer em virtude da actuação da parte contrária; ii. tal comportamento terá de lhe ser imputado a título de culpa.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.2 – Do erro de direito (Da inversão do ónus da prova):

[...] A prova pode ser definida como a demonstração de factos em juízo e tem por referência a verdade do facto probando [Miguel Teixeira de Sousa, Código Civil Comentado, vol. I – Parte Geral, org. António Menezes Cordeiro, CIDP | Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Almedina, Coimbra, 2020, página 977.]. No nosso direito processual, ter o ónus da prova significa sobretudo determinar qual a parte que suporta a falta de prova de determinado facto, mais do que saber qual a parte que tem de efectuar a prova de determinado facto. Os factos constitutivos são aqueles que constituem pressuposto do respectivo aparecimento [Rita Lynce de Faria, Comentário ao Código Civil – Parte geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, página 812.].

O n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil inverte o ónus da prova quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado, o que pode suceder tanto através de uma conduta activa como omissiva desta parte contrária, desde que decisiva para a prova se tornado impossível e desde que culposa [Isabel Alexandre, Código Civil Comentado, vol. I – Parte Geral, org. António Menezes Cordeiro, CIDP | Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Almedina, Coimbra, 2020, página 1008.].

Vejamos.

No final da sessão de julgamento realizada no 16/09/2020, a Meritíssima Juíza de Direito entendeu que, «sem prejuízo dos esclarecimentos prestados pelas testemunhas ouvidas e da boa vontade demonstrada em esclarecerem o tribunal, estando em causa a apreciação de matéria de natureza técnica, que exige conhecimentos específicos de mecânica automóvel, considero essencial para a boa decisão da causa a realização de uma perícia a esse nível que permita, por um lado, avaliar e identificar as sucessivas causas dos danos provocados no motor do veículo, como a descrição desses danos e a identificação da necessidade e do custo das intervenções realizadas no mesmo (aqui se incluindo o material gasto)».

Seguidamente, por despacho datado de 05/11/2020, voltando a sublinhar que o Tribunal não tinha ficado esclarecido quanto à intervenção da Ré naquele veículo e respectivas consequências, o julgador «a quo» sublinhou que «sendo necessário aferir se a intervenção realizada pela Ré no motor do veículo era adequada ou não à sua reparação; se foi causa ou não de posteriores avarias; e da necessidade/custo das intervenções que a própria Ré admite ter realizado no motor, afigura-se manifesto que será ao nível dos conhecimentos de reparação automóvel e não da sua engenharia que importa, neste caso, recolher ensinamentos / informação».

Nesta sequência, através de requerimento entrado em 17/11/2020, a Autora veio informar que o veículo automóvel em causa tinha sofrido no início de Outubro de 2020, um acidente de viação e que havia adquirido uma nova viatura. E, nesse momento, revela que «procedeu à desmontagem de todos os componentes do motor que se encontravam em bom estado de funcionamento e conservação para os comercializar no mercado nacional, motivo pelo qual, pouco mais sobra da viatura que o seu chassis, não se encontrando desta forma em condições para se fazer qualquer exame direto ao motor se caso disso for necessário».
Em função disso, após comunicação à entidade responsável pela realização da perícia, esta assumiu que, após análise à documentação remetida, verificamos que já foram realizadas desmontagens no motor, as quais condicionam a nossa análise e que assim não estariam reunidas as condições para dar continuidade à perícia solicitada.

Na fundamentação da sentença, no que reporta à causa das avarias, o Tribunal de Primeira Instância entendeu que «não foi feita prova – de natureza necessariamente técnica e, por isso, inviabilizada pela impossibilidade de realização da ordenada perícia».

A sociedade recorrente entende que à recorrida competia preservar o bloco que não era de sua propriedade e isso determinava a inversão do ónus da prova, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.

A inversão do ónus da prova nos termos previstos no artigo 344.º[---] do Código Civil, para que remete o n.º 2 do artigo 417.º[---] do Código de Processo Civil, pressupõe que tenha havido uma recusa de cooperação processual por uma das partes que tenha tornado culposamente impossível a prova ao onerado.

A figura da inversão do ónus de prova, pressupondo que a revelação de particularizado circunstancialismo factual se tornou impossível de fazer, por acção ou omissão da parte contrária, exige similarmente que esta contingência lhe possa ser atribuível a título de culpa sua [---].

A jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores tem equiparado a impossibilidade à grave dificuldade da prova, entendendo que, neste último caso, há também lugar à inversão do ónus da prova se o onerado não puder produzi-la por culpa da contraparte [Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 18/05/78, in CJ, 78, III, página 847 e de 09/10/79, in CJ, 79, IV, página 1276, do Supremo Tribunal de Justiça de 18/03/83, in BMJ n.º 324, página 584 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/12/2012, in www.dgsi.pt.].

A decisão de efectivação da inversão do ónus da prova nos termos do artigo 344.º, n.º 2, do Código Civil terá lugar depois de esgotada a possibilidade de a parte onerada com tal inversão produzir a respectiva prova e da valoração, em sede de prova livre, dos resultados probatórios desse modo obtidos, ou seja, a jusante da decisão sobre os factos controvertidos[---].

Nas palavras de Vaz Serra parece, pois, poder formular-se o princípio de que o ónus da prova se inverte quando for inexigível ao onerado que faça a prova. E um dos casos em que esse princípio se aplicaria seria o de a outra parte ter tornado culposamente impossível a prova [Vaz Serra, in Provas (Direito Probatório Material), in BMJ 110 – 1961, página 165.].

Como já asseverou, a inversão do ónus da prova exige que a comprovação do facto «se tenha tornado impossível ou particularmente difícil para a parte onerada» [Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25/02/2021, divulgado em www.dgsi.pt.]. Ou, por outras palavras, a inversão do ónus da prova prevista nesta norma está dependente da verificação dos seguintes pressupostos: i. a prova de determinada factualidade há de ter-se tornado impossível ou, pelo menos, particularmente difícil de fazer em virtude da actuação da parte contrária; ii. tal comportamento terá de lhe ser imputado a título de culpa [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/04/2019, consultável em www.dgsi.pt].

Para justificar esse entendimento, a sociedade recorrente refere que «o bloco, mesmo depois de testado, nunca chegou a ser devolvido à ora Recorrente, nem tão pouco os componentes que o integravam e que não estavam danificados, por forma a, possivelmente, ocultar meio de prova que pudesse responsabilizar a Ré judicialmente».

Porém, esta é uma petição de princípio que não se mostra factualmente demonstrada nos autos e que o Tribunal da Relação não pode acolher. Nos autos não existe nenhum sinal da veracidade desta afirmação, mas mesmo que assim fosse, a impossibilidade de realização da diligência surge basicamente porque a própria Autora «procedeu à desmontagem de todos os componentes do motor que se encontravam em bom estado de funcionamento e conservação para os comercializar no mercado nacional».

No decurso de uma acção judicial, quando já se perspectivava a realização da perícia, o bom senso ditaria que, pelo menos, o motor deveria ter sido preservado durante o tempo necessário à realização da diligência.

Aliás, a venda do veículo automóvel em peças é o facto que potencia o impedimento da realização da perícia e a circunstância de já terem sido «realizadas desmontagens no motor, as quais condicionam a nossa análise». O acto pericial exigia uma avaliação integral do motor e não é simplesmente a indemonstrada não preservação e descaminho do bloco do motor intervencionado que inviabiliza a realização da perícia. Não está assim preenchido o requisito da inviabilidade da produção de prova por motivo imputável à sociedade Ré.

Analisada toda a conjuntura, não estando demonstrado que a situação de fragilidade probatória evidenciada no processo esteja associada a qualquer conduta causal reprovável da contraparte, neste contexto não lhe aproveita a inversão do ónus probatório nos termos pretendidos, valendo aqui a regra geral do ónus da prova depositada no artigo 342.º[---] do Código Civil.

Assim, prevalecendo a regra de que quem invoca um direito em juízo deve fazer a prova dos factos constitutivos do direito, olhando para o conspecto factual apurado, não resta outra alternativa que não seja a de confirmar a decisão recorrida, por não se ter provado um cenário da culpa da Ré na produção do evento aqui em discussão."

[MTS]