Contribuição para as despesas domésticas;
alimentos provisórios; convolação*
I. O sumário de RL 24/2/2022 (13920/20.7T8SNT-D.L1-8) é o seguinte:
1– O dever de assistência que recai sobre os cônjuges desdobra-se em duas obrigações distintas: a de prestação de alimentos e a de contribuição para os encargos da vida familiar.
2– Numa situação de separação de facto, não há vida familiar, mas isso não significa que não possa haver despesas que continuem a poder ser qualificadas de “encargos da vida familiar”.
3– O cônjuge que pretenda exigir do outro cônjuge o contributo para os encargos da vida familiar pode recorrer à providência prevista no art. 992º do C.P.C. mesmo que estejam separados de facto.
4– A providência da contribuição do cônjuge para as despesas domésticas não é o meio processual adequado ao pedido de condenação do requerido a prestar alimentos.
6– Na pendência de ação de divórcio, o cônjuge que pretende a fixação de alimentos provisórios, deve requerê-lo na própria ação de divórcio, ao abrigo do disposto no art. 931º nº 7 do C.P.C.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Resulta do art. 1672º do C.C. que “os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência”.
O art. 1675º do C.C. dispõe o seguinte.
“1.-O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar.2.-O dever de assistência mantém-se durante a separação de facto se esta não for imputável a qualquer dos cônjuges.3.-Se a separação de facto for imputável a um dos cônjuges, ou a ambos, o dever de assistência só incumbe, em princípio, ao único ou principal culpado; o tribunal pode, todavia, excecionalmente e por motivos de equidade, impor esse dever ao cônjuge inocente ou menos culpado, considerando, em particular, a duração do casamento e a colaboração que o outro cônjuge tenha prestado à economia do casal”.
O dever de assistência que recai sobre os cônjuges desdobra-se, pois, em duas obrigações distintas: a de prestação de alimentos e a de contribuição para os encargos da vida familiar.
Conforme resulta do art. 2015º do C.C., “na vigência da sociedade conjugal, os cônjuges são reciprocamente obrigados à prestação de alimentos, nos termos do artigo 1675º”.
Nos termos do art. 1676º nºs 1 e 4 do C.C., “o dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afetação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos”, sendo que, “não sendo prestada a contribuição devida, qualquer dos cônjuges pode exigir que lhe seja diretamente entregue a parte dos rendimentos ou proventos do outro que o tribunal fixar”.
O art. 992º do C.C., que regula a providência da contribuição do cônjuge para as despesas domésticas, dispõe o seguinte:
“1-O cônjuge que pretenda exigir a entrega direta da parte dos rendimentos do outro cônjuge, necessária para as despesas domésticas, indica a origem dos rendimentos e a importância que pretenda receber, justificando a necessidade e razoabilidade do montante pedido.2-Seguem-se, com as necessárias adaptações, os termos do processo para a fixação dos alimentos provisórios e a sentença, se considerar justificado o pedido, ordena a notificação da pessoa ou entidade pagadora dos rendimentos ou proventos para entregar diretamente ao requerente a respetiva importância periódica.”
Na fundamentação da decisão recorrida, pode ler-se:
“A contribuição do cônjuge para as despesas domésticas nos termos conjugados do art. 992º do CPC e do art. 1675º do Código Civil pressupõe que os cônjuges estejam a viver na mesma casa e que haja um conjunto de despesas e um conjunto de rendimentos que devem ser geridos e suportados por ambos, em comunhão.Como nos diz Pereira Coelho/ Guilherme Oliveira in Curso de Direito da Família, vol I, se os cônjuges vivem juntos, «o dever de prestação de alimentos toma a forma de dever de contribuição para os encargos da vida familiar; no caso de separação, não existe vida familiar e não tem sentido falar na obrigação de contribuir para os respetivos encargos» (p. 359).
Igual entendimento tem Remédio Marques in Algumas Notas Sobre Alimentos, dizendo que a contribuição para as despesas domésticas assume-se como uma medida essencialmente interina e temporária, justificável enquanto se mantiver a vida em comum e o incumprimento do cônjuge visado.Em sentido idêntico, cfr. também Maria Nazareth Lobato Guimarães in Reforma do Código Civil, 1981, p. 191.Em termos de jurisprudência cfr. Ac da Relação de Lisboa de 7 de Fevereiro de 2013, entre outros.No caso sub iudice não existe fundamento legal para a requerente exigir do requerido uma contribuição para as despesas domésticas, uma vez que a vida conjugal terminou, tendo os cônjuges, requerente e requerido, deixado de viver na mesma casa e de fazer vida em comum.”
É certo que, numa situação de separação de facto, não há vida familiar, mas isso não significa que não possa haver despesas que continuem a poder ser qualificadas de “encargos da vida familiar”, tal como a inexistência de vida familiar não significa que deixa de haver casa de morada da família.
No caso de separação de facto, a prestação mensal para amortização de empréstimo, a renda e as despesas de manutenção relativas à casa de morada da família não deixam de ser “encargos da vida familiar”.
Assim, o cônjuge que pretenda exigir do outro cônjuge o contributo para os encargos da vida familiar pode recorrer à providência prevista no art. 992º do C.P.C. mesmo que estejam separados de facto (www.dgsi.pt Acórdãos do STJ proferidos a 22 de maio de 1980, processo 068802; e a 16 de abril de 1998, processo 98B074).
Não resultando do art. 992º que a providência da contribuição do cônjuge para as despesas domésticas corre por apenso à ação de divórcio, a providência corre autonomamente.
Na petição inicial, a recorrente invocou o art. 931º nº 7 do C.P.C., norma que se insere na regulamentação da ação de divórcio ou de separação sem consentimento do outro cônjuge e que dispõe o seguinte:
“Em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto, o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias.”
A obrigação de prestação de alimentos, integrando o dever de assistência tal como a obrigação de contribuição para os encargos da vida familiar, é uma obrigação distinta desta.
O art. 931º nº 7 do C.P.C. nada tem a ver com a obrigação de contribuição para os encargos da vida familiar.
A recorrente confundiu as duas obrigações e essa confusão é patente logo no introito da petição inicial, no qual a recorrente referiu que “vem instaurar… Incidente destinado à atribuição de alimentos provisórios ao Cônjuge (destinados a acautelar o pagamento das despesas da economia doméstica)”.
Ao confundir as obrigações que integram o dever de assistência, a recorrente acabou por confundir também os respetivos meios processuais.
Na petição inicial, a recorrente pediu a condenação do requerido a prestar-lhe alimentos em quantia mensal não inferior a € 1.500,00.
A providência da contribuição do cônjuge para as despesas domésticas não é o meio processual adequado ao pedido deduzido.
Na pendência de ação de divórcio, o cônjuge que pretende a fixação de alimentos provisórios, deve requerê-lo na própria ação de divórcio, ao abrigo do disposto no art. 931º nº 7 do C.P.C.
Nos termos do art. 193º nº 3 do C.P.C., “o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte é corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados”.
Assim, importa convolar a providência de contribuição para as despesas domésticas no incidente de fixação de alimentos provisórios previsto no art. 931º nº 7 do C.P.C."
III. [Comentário] A RL decidiu bem.
O requerente pediu, durante a pendência da acção de divórcio, a condenação do outro cônjuge a prestar-lhe alimentos provisórios. Neste sentido, o que o requerente devia ter invocado era apenas o disposto no art. 931.º, n.º 7, CPC (e nunca o art. 992.º CPC).
A bem dizer, era desnecessária a apreciação pela RL do âmbito de aplicação do disposto no art. 992.º CPC. Bastaria ter procedido à convolação para o incidente adequado -- que era o da prestação de alimentos provisórios -- e ter apreciado a sua fundamentação.
MTS
III. [Comentário] A RL decidiu bem.
O requerente pediu, durante a pendência da acção de divórcio, a condenação do outro cônjuge a prestar-lhe alimentos provisórios. Neste sentido, o que o requerente devia ter invocado era apenas o disposto no art. 931.º, n.º 7, CPC (e nunca o art. 992.º CPC).
A bem dizer, era desnecessária a apreciação pela RL do âmbito de aplicação do disposto no art. 992.º CPC. Bastaria ter procedido à convolação para o incidente adequado -- que era o da prestação de alimentos provisórios -- e ter apreciado a sua fundamentação.
MTS