"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/10/2022

Jurisprudência 2022 (43)


Mandato forense;
contrato administrativo


1. O sumário de STJ 2/2/2022 (1411/20.0T8FAR-A.E1.S1) é o seguinte:

I - Um contrato de mandato forense celebrado entre um advogado e um ente público reveste a natureza de contrato administrativo, nos termos conjugados dos artigos 1.º, n.º 6, alíneas a) e d) (na redação do Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de julho), e 450.º do Código da Contratação Pública, estando sujeito ao regime dos procedimentos da contratação pública nos termos do artigo 16.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do mesmo diploma.

II - O conhecimento do litígio emergente de contrato de mandato forense, destinado à cobrança de honorários devidos pelo patrocínio de contraente público, é da competência material da jurisdição administrativa, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, na redação que lhe foi dada pelo DL n.º 214-G/2015 de 02-10.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. A recorrente interpõe um recurso de revista excecional ao abrigo do artigo 672, n.º 1, do CPC.

Todavia, como a questão objeto do recurso é uma questão de competência do tribunal em razão da matéria, a dupla conformidade não obsta à admissibilidade do recurso de revista geral, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. a), do CPC, que dispõe, para o que aqui releva, que, «2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento na violação (…) das regras de competência em razão da matéria (…).

Assim, admite-se o recurso de revista geral e não se remete o processo à Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC.

2. O tribunal recorrido decidiu pertencer ao tribunal judicial da comarca ... a competência para conhecer da presente causa, com o seguinte fundamento:

«Sabendo que a competência material não se define apenas pela qualidade dos intervenientes na causa mas que depende do thema decidendum concatenado com a causa de pedir (cfr. BMJ 459, pág.449) afigura-se que, no caso em apreço, é aos tribunais comuns que compete apreciar a questão suscitada nestes autos pelas AA., uma vez que a hipótese dos autos não se enquadra, de todo em todo, na previsão ou no âmbito de uma relação jurídica administrativa.

Com efeito, analisando a petição inicial constata-se que as AA. alegaram que entre o seu falecido marido e pai, como advogado, e a R. foram celebrados diversos contratos de mandato judicial, para cada um dos quais foram outorgadas as procurações respectivas e, por outro lado, a R., na contestação apresentada, aceitou estes factos, muito embora referindo também que todos os montantes reclamados pelas AA. foram já devidamente liquidados.

Deste modo, torna-se pacífico que, “in casu”, estamos em presença de mandato judicial, pretendendo as AA. receber, como herdeiras, as quantias a que o seu falecido marido e pai tinha direito por virtude desse exercício de mandato judicial ou forense, sendo certo que o contrato de mandato judicial – modalidade do contrato de prestação de serviços pelo qual o mandatário se obriga a executar, por ordem do mandante, um ou mais actos jurídicos (cfr. art.1157º do Cód. Civil) – é um contrato de direito privado sujeito ao regime substantivo de direito privado.» (…)

Na verdade, analisando o requerimento inicial verifica-se que a apelada alegou que “entre apelante e apelada foram celebrados quatro contratos de mandato judicial”, para cada um dos quais foram outorgadas as procurações respectivas nas datas referidas nas alíneas a) a d) do requerimento inicial de injunção, sendo certo que na oposição deduzida, a requerida, aqui apelante, aceitou esse facto, limitando-se a invocar a excepção do erro na forma de processo, a prescrição das dívidas peticionadas, alegando também que todos os montantes reclamados foram devidamente pagos “com a pontualidade que lhe é característica”.

Temos assim por assente que se trata aqui de mandato judicial, pretendendo a aqui apelada receber as quantias a que tem direito por virtude desse exercício de mandato judicial ou forense.

O contrato de mandato judicial é um contrato de direito privado sujeito ao regime substantivo de direito privado.

Efectivamente, sendo o contrato de prestação de serviços (artigo 1154º do Código Civil) aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição, o mandato, enquanto variante do contrato de prestação de serviços (artigo 1156 C. Civil), é o contrato pelo qual uma das partes de obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra, consubstanciado, in casu, pelos quatro contratos de mandato judicial referidos no requerimento inicial de injunção.

Ora, estabelece o n.º 2 do art. 67 do Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei n.º 145/2015 de 9/09) que “O mandato forense não pode ser objecto, por qualquer forma, de medida ou acordo que impeça ou limite a escolha pessoal e livre do mandatário pelo mandante”, sendo certo que “O advogado exercita a defesa dos direitos e interesses que lhe sejam confiados sempre com plena autonomia técnica e de forma isenta, independente e responsável”, sendo ainda certo que “São nulas as estipulações contratuais, bem como quaisquer orientações ou instruções da entidade contratante, que restrinjam a isenção e a independência do advogado ou que, de algum modo, violem os princípios deontológicos da profissão” (n.ºs 1 e 4 do Estatuto da Ordem dos Advogados).

Ora, como bem diz a apelada, “no contrato de mandato judicial, não se verifica, por exemplo, a existência dos poderes próprios das entidades adjudicantes no âmbito dos contratos administrativos, previstos no artigo 302.º, do CCP. No mandato judicial, o mandante não tem o poder de beliscar a independência do mandatário, estando impedido de “dirigir o modo de execução das obrigações do mandatário”, de “fiscalizar o modo de execução das prestações”, de “modificar unilateralmente as cláusulas respeitantes ao conteúdo e ao modo de execução das prestações previstas no contrato por razões de interesse público”, de aplicar ao advogado sanções. Só pode, como qualquer cliente privado, revogar o mandato ou, quando muito, em vez disso, solicitar ao advogado que substabeleça os poderes forenses noutro colega.

O mandato judicial ou forense não estabelece entre as partes uma relação jurídica administrativa. Nem a mandante, aqui recorrente, actua ou actuou, no contrato que constitui a causa de pedir deste processo, revestida de um poder público, sendo, outrossim, evidente que nestes e nos diversos contratos de mandato forense, celebrados entre recorrente e recorrida, as partes não submeteram expressamente a sua execução a um regime de direito público».

A recorrente alega, em sentido diverso, que tem o estatuto de Sociedade Anónima constituída por capitais exclusivamente públicos (Decreto-Lei n.º 93/2019, de 15 de julho), que atuou no uso do seu poder administrativo, que lhe advém da circunstância de ser uma Pessoa Coletiva de Direito Público pertencente à Administração do Estado, criada para prosseguir um Fim Público de concessão da exploração e gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento da Região do Algarve. Entende, em consequência, que o contrato de prestação de serviço de apoio jurídico, tendo sido celebrado por uma Entidade Adjudicante, para o efeito do artigo 2.º, n.º 2, al. a), ii), do Código da Contratação Pública, é, nos termos do artigo 4.º n.º 1, al. e), do ETAF, um contrato de direito público, sujeito às regras de direito administrativo e que, por isso, devem os litígios entre as partes ser conhecidos pelos tribunais administrativos.

Invoca, como fundamento jurisprudencial, o acórdão deste Supremo Tribunal, de 02-06-2020 (processo n.º 45639/18.3YIPRT.G1.S1), que fixou o seguinte no seu sumário:

«II - Os contratos de mandato forense celebrados entre a ré, contraente público, e a autora, sociedade de advogados, revestem a natureza de contratos administrativos, nos termos conjugados dos arts. 1.º, n.º 6, als. a) e d), e 450.º do CCP, estando sujeitos ao regime dos procedimentos da contratação pública nos termos dos arts. 6.º, n.º 1, al. e), e 16.º, n.ºs 1 e 2, al. e), do mesmo CCP (quer na versão do DL n.º 18/2008, de 29-01, quer na do DL n.º 149/2012, de 12-07).

III - O conhecimento do litígio emergente desses contratos de mandato forense, destinado à cobrança de honorários devidos pelo patrocínio da ré, contraente público, em acções que correram termos no tribunal administrativo, é da competência material da jurisdição administrativa, ao abrigo da al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, na redacção que lhe foi dada pelo DL n.º 214-G/2015 de 02-10».

Quid iuris?

2. O artigo 38.º da Lei n.º 62/2013, de 26-08 – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – prescreve que:

1 - A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei.

2 – São igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe foi atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa. 

A determinação da competência deve ser feita à luz da lei em vigor à data da propositura da ação, ou seja, primacialmente, à luz do ETAF, na redação do DL nº 214-G/2015, de 2 de outubro, considerada a competência residual dos tribunais comuns, uma vez que a LOSJ estipula no seu artigo 40.º, n.º 1 que “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

3. O mandato é um dos contratos especialmente previstos no Código Civil, como uma das modalidades do contrato de prestação de serviço.

Nos termos do artigo 1155.º do Código Civil, “O mandato, o depósito e a empreitada, regulados nos capítulos subsequentes, são modalidades do contrato de prestação de serviço”.

O artigo 1157.º define o mandato como um contrato de prestação de serviço pelo qual o mandatário se obriga a executar, por ordem do mandante, um ou mais atos jurídicos.

Todavia, apesar de o contrato de mandato forense, com base no qual as autoras peticionam a uma entidade pública – o pagamento de honorários por serviços de advocacia prestados pelo seu pai – ser um contrato de direito privado, tal não significa que os tribunais competentes sejam os tribunais comuns.

No caso vertente, há que considerar que a recorrente demandada na ação, Águas Algarve, SA, é uma pessoa coletiva de direito público e que a lei considera, no Código dos Contratos Públicos, o contrato de mandato forense celebrado com entidade pública um contrato sujeito a um regime pré-contatual de direito público

Invocam as recorridas na petição inicial que não é aplicável ao caso dos autos o Código dos Contratos Públicos, pois que não houve entre a ré e o advogado, pai das autoras, a celebração de qualquer contrato administrativo ao abrigo de regras de direito público, mas apenas procurações forenses.

Contudo, o aspeto relevante para apreciar a questão do tribunal competente não é saber se foi observado, de facto, um procedimento pré-contratual de direito público, mas apenas que, potencialmente, se verificava, nos termos da lei, a possibilidade de recurso a esse procedimento.

A data de propositura dos processos em que o pai das autoras prestou serviços de advocacia é posterior a 2008, já estando, pois, em vigor o Código dos Contratos Públicos (Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro).

Como se afirmava no artigo 1.º, n.º 6, alínea a) e d), do Código dos Contratos Públicos, na redação do Decreto-Lei n.º 149/2012, de 12 de julho:

«6 - Sem prejuízo do disposto em lei especial, reveste a natureza de contrato administrativo o acordo de vontades, independentemente da sua forma ou designação, celebrado entre contraentes públicos e co-contratantes ou somente entre contraentes públicos, que se integre em qualquer uma das seguintes categorias:

 a) Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou submetidos a um regime substantivo de direito público; (…)

d) Contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público».

No artigo 450.º do Código dos Contratos Públicos (integrado no Título II, respeitante aos Contratos Administrativo em Especial), a lei define “A aquisição de Serviços” como “o contrato pelo qual um contraente público adquire a prestação de um ou vários tipos de serviços mediante o pagamento de um preço”, daqui decorrendo que o contrato de mandato constitui um contrato administrativo de aquisição de serviço.

O artigo 16º, nº 1, al. a) e n.º 2, al. e), do Código dos Contratos Públicos dispõe o seguinte: «1. Para a formação de contratos cujo objeto abranja prestações que estão ou sejam suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, as entidades adjudicantes devem adotar um dos seguintes tipos de procedimentos:

a) Ajuste direto; (…)

2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, consideram-se submetidas à concorrência de mercado, designadamente, as prestações típicas abrangidas pelo objeto dos seguintes contratos, independentemente da sua designação ou natureza: (…)

e) Aquisição de serviços.”

Solução semelhante constava já do artigo 6.º, n.º 1, al. e), do Código dos Contratos Públicos, na sua versão originária, que estipulava que:   

«1 - À formação de contratos a celebrar entre quaisquer entidades adjudicantes referidas no n.º 1 do artigo 2.º, a parte II do presente Código só é aplicável quando o objecto de tais contratos abranja prestações típicas dos seguintes contratos: (…)

e) Aquisição de serviços».

4. Em consequência, os litígios emergentes de um contrato de mandato forense celebrado com uma organização pública estão sujeitos à jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4º, 1, al. e), do ETAF, segundo o qual a jurisdição administrativa é competente para julgar as questões relativas à validade e execução de contratos “a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público”.

Como decorre do artigo 4º, n.º 1, al. e), do ETAF, o elemento determinante da competência não é a natureza jurídica da relação jurídica de onde emerge o litígio, mas sim a sujeição do mesmo ou a possibilidade da sua sujeição a um regime pré-contratual de direito público, o que quer dizer que a jurisdição administrativa é competente quer a relação jurídica subjacente seja, ou não, uma relação jurídico-administrativa.

Neste sentido se orientou o Acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 11-01-2017 (Proc. n.º 020/16), onde se sumariou o seguinte:

«São competentes os tribunais da jurisdição administrativa para conhecer um litígio emergente da execução de um contrato de prestação de serviços (mandato) celebrado entre um Município e duas advogadas, dado que o mesmo está, por força do Dec. Lei 197/99, de 8 de Janeiro, sujeito a um regime pré-contatual de direito público - art. 4º, 1, al. e) do ETAF, na redacção anterior à introduzida pelo DL 214/G/2015, de 1/12».

Assim, se tem orientado a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, nesta 1.ª Secção, nos Acórdãos de 02-06-2020 (processo n.º 45639/18.3YIPRT.G1.S1) e de 13-06-2020 (48776/18.0YIPRT-A.P1.S1), subscritos pela agora Relatora como Adjunta, e cuja fundamentação foi seguida de perto.

Nos termos do Acórdão de 02-06-2020, o que determina a competência do tribunal administrativo é o facto de a lei submeter o contrato ou admitir que seja submetido a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e em que a prestação do co-contratante possa condicionar ou substituir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público. Basta que tal suceda para que se deva discutir, na jurisdição administrativa, a execução do contrato de mandato e a realização coativa das respetivas prestações.

Idêntica posição se assumiu no Acórdão de 13-10-2020:

«I - Um contrato de mandato forense celebrado por uma sociedade de advogados e sendo a contraparte um ente público, reveste a natureza de contrato administrativo, nos termos conjugados dos arts. 1.º, n.º 6, als. a) e d), e art. 450.º do CPP, estando sujeito ao regime dos procedimentos da contratação pública nos termos dos arts. 6.º, n.º 1, al. e) e art. 16.º, n.os 1 e 2, al. e), do mesmo CPP.

II - O conhecimento do litígio emergente de contrato de mandato forense, destinado à cobrança de honorários devidos pelo patrocínio de contraente público, é da competência material da jurisdição administrativa, ao abrigo da al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, na redação que lhe foi dada pelo DL n.º 214-G/2015 de 02-10».

5. Por último, deve notar-se que a natureza administrativa do contrato de mandato enquanto aquisição de um serviço por parte de uma entidade pública, bem como a circunstância de a sua celebração estar dependente de um procedimento de direito público não afetam a liberdade com que o mandato é exercido, nem a independência e autonomia funcional e técnica dos advogados, nem a concorrência do mercado.

6. Em síntese, os tribunais administrativos são os competentes para apreciar o litígio dos autos, ao abrigo do artigo 4º, nº 1, al. e), do ETAF; impondo-se, por isso, a absolvição da instância da ré, nos termos conjugados dos artigos 96º, al. a), 99º, nº 1, 576º, nº 2, 577º, al. a) e 578º, todos do CPC."

[MTS]