"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/10/2022

Jurisprudência 2022 (52)


Falta de citação;
justo impedimento; prova*

1. O sumário de RC 1/2/2022 (1724/20.1T8VIS.C1) é o seguinte:

I - O artigo 234.º CPC, sobre incapacidade de facto do citando, aplica-se também à citação por via postal, pelo que quando o distribuidor postal se aperceba da notória incapacidade de facto do citando deve abster-se de fazer a citação, lavrar nota da ocorrência e devolver o expediente ao tribunal.

II – Quando o distribuidor postal não se aperceba de que o citando está incapacitado de perceber o sentido da citação ou que não se encontra no livre exercício da sua vontade, e esteja em causa uma incapacidade acidental, o citando que se queira fazer valer dessa incapacidade, a fim de contestar fora do prazo que lhe foi assinalado, deve, logo que cessar a sua incapacidade, oferecer prova de que estava incapacitado no momento da citação e apresentar a contestação, invocando a figura do justo impedimento.

III - Os factos que não se consideram confessados no caso de o réu não contestar, apesar de ter sido regularmente citado, dizem respeito a declarações negociais que devem obedecer por força da lei ou da convenção das partes a documento escrito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispõe a al e) do art 188º CPC que «quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável, há falta de citação».

Importa, assim, verificar em que termos ocorreu a citação do R., agora apelante.

O R. foi citado por carta registada com aviso de recepção, nos termos do art 228º CPC, «para, no prazo de 30 dias, contestar, querendo, a acção acima identificada com a advertência de que a falta de contestação importa a confissão dos factos articulados pelo autor».

O aviso de recepção mostra-se junto a fls 73 dos autos e está assinado pelo R. contendo o número, a data e a entidade emissora do cartão de cidadão do mesmo.

Preceitua o art 228º/2, para o que aqui releva, que «a carta pode ser entregue, após assinatura do aviso de recepção, ao citando (…)», explicitando o nº 3 da mesma norma que, «antes da assinatura do aviso de recepção, o distribuidor do serviço postal procede à identificação do citando (…) anotando os elementos constantes do cartão de cidadão, bilhete de identidade ou de outro documento oficial que permita a identificação».

Como decorre do art 225º/2 al b), a citação é pessoal quando, entre outras situações, é feita pela entrega ao citando de carta registada com aviso de recepção.  Quer dizer que, nessas circunstâncias, a citação postal vale como pessoal.

Invoca, no entanto, o apelante que no acto da citação não tinha condições físicas nem discernimento mental para compreender a citação recebida, estando incapaz de gerir adequadamente a sua vida, não conseguindo perceber o conteúdo desse acto, mais referindo que em consequência do quadro destrutivo em que então se encontrava, veio a acometê-lo um AVC, estando hoje incapaz de exercício.

O art  234º CPC, regendo especificamente para as situações  em que a citação teve lugar por contacto pessoal com o citando – tendo sido realizada por agente de execução ou funcionário judicial, nos termos da al c) do nº 2 do art 225º - não deixa de ter aplicação a situações como a dos autos, em que a citação foi postal, como o refere Lebre de Freitas/Isabel Alexandre [«Código do Processo Civil Anotado», pag 455], quando assinalam, em comentário àquela norma, que, «a notória incapacidade de facto do citando constitui motivo de impossibilidade de entrega da carta se outra pessoa não a receber e assinar o aviso de recepção». Sendo que esta consideração deixa aberta a possibilidade ao funcionário postal de, além de não entregar a carta ao cintando por lhe parecer que o mesmo não está capaz de a receber, poder providenciar pela entrega da mesma a outra pessoa que, tal como o refere do nº 2 do art 228º, se encontre na sua residência ou local de trabalho, e que declare responsabilizar-se, de modo a vir, se for o caso, suscitar a questão da incapacidade do citando ao processo. Pensa-se, no entanto, que melhor fará que proceda nos termos do art 234º CPC, procedendo como aí se determina para o agente de execução ou para o funcionário judicial, abstendo-se de fazer a citação, lavrando nota da ocorrência e devolvendo o expediente ao tribunal (cfr nº 7 do art 228º).

Situação em que o tribunal procederá em conformidade com o demais disposto na norma do art 234º, que implicará que, ouvido o autor, colhendo as informações que tenha por adequadas e ordenando a produção das provas julgadas necessárias, se vier a concluir  pelo reconhecimento da incapacidade, temporária ou duradoura, nomeie ao citando curador provisório, no qual será feita a citação, sendo que, quando este não conteste, se procederá à citação do mesmo nos termos do art 21º, como o determina o nº 4 do referido art 234º .

Mas, como é evidente, bem pode suceder que o distribuidor postal, em função do pouco contacto implicado na actuação pressuposta no referido no nº 3 do art 228º, não se aperceba de que o citando está incapacitado de perceber o sentido da citação ou que não se encontra no livre exercício da sua vontade, desde logo porque estas situações não se apresentem como notórias.

Nessas circunstâncias, estando em causa uma incapacidade acidental, o citando, ultrapassada a situação que a determinou, e logo que se aperceba da existência e conteúdo da carta de citação ou da existência do processo em função de qualquer notificação que dele receba – como o pretenderá o aqui apelante depois que foi notificado da sentença recorrida - dever-se-á de imediato apresentar em juízo dando conta da situação e fazendo valer-se da figura do justo impedimento.

Refere a respeito deste o art 140º do CPC:

“1 - Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do ato.
2 - A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.

Desta norma resulta que o efeito do justo impedimento é o de suspender o termo de um prazo peremptório deferindo-o para o dia imediato àquele que tenha sido o último de duração do impedimento [Ac RE de 02/12/2009, (Bernardo Domingos)].

Mas, para que assim funcione, a invocação do justo impedimento tem de ser feita logo que cesse a causa impeditiva, a prova do mesmo tem de ser oferecida de imediato, e o requerente tem que proceder à prática em simultâneo do acto em falta.

Com efeito, está assente na doutrina e jurisprudência que o justo impedimento implica que a «parte que o invoque para a prática de um acto processual em tempo deve arguir o incidente e praticar esse acto logo que cesse o justo impedimento». [Ac. RC de 18/07/2006 (Garcia Calejo)]

Quer dizer, a parte deve apresentar-se a requerer logo que o justo impedimento cesse oferecendo de imediato a respetiva prova e praticando ao mesmo tempo e o ato processual cujo prazo já expirara.

Ora, se é certo que o réu nas alegações de recurso contestou, de algum modo, a acção, e, antecedentemente suscitou o incidente do justo impedimento, a verdade é que não apresentou de imediato qualquer prova relativa à sua incapacidade de facto à data da citação e, subsequentemente a esta, como invoca.

A apresentação da prova tem de ser imediata, e só é admissível que o não seja quando o evento que despoleta o justo impedimento se mostre objectivamente imprevisível. Quando assim não seja, como o não é na situação dos autos, só oferendo a parte, de imediato, prova - necessariamente documental - fará sentido que, em função desse “principio de prova”, se pare o processo, para averiguar com maior profundidade as razões que subjazem à invocação da parte.

Não basta requerer diligências de prova ou indicar testemunhas para o efeito, como o aqui apelante o fez, ao requerer que seja oficiado o Centro Hospitalar de…,…para juntar aos autos histórico clínico dos últimos anos do R. e ao indicar duas testemunhas.

Utilizando o nº 2 do art 140º a expressão «oferece logo a respectiva prova», e não “indica logo a prova”, é muito expressivo no sentido defendido.

Note-se que a exigência de (alguma) prova imediata – que, já se referiu que, pela sua imediatez, terá de ser documental -  não obsta a que, em situações como as dos autos, se complemente com outra a ser produzida e que relevará para sustentar a anterior e ainda para comprovar o prolongamento no tempo do impedimento e de que apenas com a notificação para qualquer acto do processo tivesse sido possível à parte aperceber-se da sua existência.

No sentido que se defende parece orientar-se José Alberto dos Reis quando refere, a respeito da instrução do incidente em causa, que «o requerente deve oferecer logo as provas dos factos que alegar. Naturalmente as provas adequadas são documentos e testemunhas. Os documentos têm que ser juntos ao requerimento; neste hão-de ser indicadas as testemunhas». [«Comentário ao Código de Processo Civil», Vol. II, p.79/80 «No preciso momento em que o interessado se apresenta para praticar o acto intempestivo, é que tem de fazer a alegação e prova do justo impedimento». ]

A jurisprudência também o evidencia [A título de exemplo, o já citado  Ac RE 2/12/2019 (Bernardo Domingos) e Ac R C 26/10/2021 (Vitor Amaral)]

Nem se diga que o apelante juntou com as alegações de recurso prova documental, porque a mesma – consubstanciando-se na cópia da primeira página de uma oposição a uma execução - em nada releva para a prova que está em causa.

Do que se vem de dizer, decorre que o R. não logrou provar que não tivesse tido conhecimento da citação, pois que essa prova estava dependente da que obtivesse no incidente de justo impedimento. Quer dizer, apenas a prova deste permitiria que se admitisse que o desconhecimento dos efeitos da citação existisse nesse momento, e se tivesse mantido até à data da notificação da sentença, por facto que não lhe tivesse sido imputável.

Com esta conclusão – que implica que o R. foi citado regularmente e não contestou no prazo de que para o efeito dispunha - e porque, para além disso, não constituiu mandatário nem interveio de qualquer forma no processo, art 566º/1, há que concluir, como se concluiu na sentença recorrida, que entrou em revelia absoluta.

E revelia operante, que tem como efeito, como é sabido, a confissão dos factos articulados pelo autor, como se estabelece na parte final do art 567º/1.

Fala-se a este respeito de confissão tácita ou ficta, embora Lebre de Freitas prefira a expressão “admissão de factos” [«A Confissão no Direito Probatório», Coimbra 1993, p 483].

Resultando os factos alegados na petição, provados, em função da operância da revelia, há que, nos termos da parte final do nº 2 do art 567º, «julgar a causa conforme for de direito», o que deve ser antecedido de despacho no qual se faculte o processo para exame, «primeiro ao advogado do autor e depois ao advogado do réu», para alegarem por escrito.

Esta norma é muito clara no sentido de que o réu só é admitido a alegar por escrito se tiver constituído mandatário. Na falta deste, não poderá alegar de direito, o que, pelo menos nos processos em que seja obrigatória a constituição de mandatário, como é o caso do presente, bem se compreende. [Pronuncia-se neste sentido Lebre de Freitas. «A Acção Declarativa.Comum à luz do CPC de 2013», 3ª ed., p 92; Montalvão Machado «O Dispositivo e os poderes do tribunal à luz do novo CPC», 2ª ed, nota de rodapé na p 194. Teixeira de Sousa, «Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed. sustenta que, nestas circunstâncias e em função do princípio de igualdade, também o autor não poderá produzir alegações de direito, o que de resto, os AA. na presente acção, não fizeram.]

Esta asserção exclui a nulidade do processo por omissão de despacho, em função do qual, se tivesse proporcionado ao R. alegar de direito."

*3. [Comentário] Tudo leva a crer que a RC decidiu bem. Em todo o caso, não teria sido despiciendo se se tivesse especificado que, no caso concreto, um distribuidor postal, actuando com a diligência devida, não poderia ter-se apercebido da incapacidade acidental do citando.
 
MTS