"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/01/2023

Jurisprudência 2022 (111)


União de facto;
acção de apreciação negativa


1. O sumário de RP 7/4/2022 (117/20.5T8VLG.P1) é o seguinte:

I - A ação proposta pela Segurança Social a pedir que se declare que não existia união de facto entre a Ré e o falecido configura uma ação de simples apreciação negativa, tal implicando a inversão do ónus da prova (artigo 343.º, n.º 1, do C. C.).

II - União de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

III - A comunhão de habitação é um elemento integrante da vivência em comum, podendo revelar-se em mais do que uma residência.

IV - Se o falecido e a Ré, no decurso da sua relação, que se manteve por cerca de dezasseis anos, dormiam todos os dias juntos, a circunstância de o fazerem alternadamente nas residências que cada um dispunha, não afasta a existência de comunhão de habitação.

V - Pode existir vida em comum com separação de economias.

V.I - Apesar de se desconhecer como era efetuado o apoio mútuo em termos de rendimentos e despesas, provada a comunhão de leito, mesa e habitação, deve improceder o pedido da Segurança Social no sentido de não se reconhecer a alegada união de facto.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O recorrente Instituto de Segurança Social, pretende que se declare que a Ré e BB não viviam em união de facto, nos termos do artigo 6.º, n.º 2, da Lei 7/2001, de 11/05.

Está em causa uma ação de simples apreciação negativa (Ac. R. C. de 25/09/2018, processo n.º 162/16.5T8IDN.C1, www.dgsi.pt.), competindo assim à Ré a prova de que ocorria essa vivência em comum (artigo 343.º, n.º 1, do C. C.).

Nos termos do artigo 1.º, n.º 2, da citada Lei n.º 7/2001, de 11/05, a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

Os cônjuges, nos termos do artigo 1577.º, do C. C., visam constituir família mediante uma plena comunhão de vida a qual se regerá pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência (artigo 1672.º, do C. C.).

Estando em causa uma vivência em conjunto livremente decidida, sem ser estabelecido um contrato escrito, tem que se ponderar, casuisticamente, se a relação entre as duas pessoas se pode considerar como vivendo em condições análogas a pessoas casados.

E, não prevendo a lei que os unidos estão obrigados a deveres tal como sucede com os casados entre si, não têm que ser observados, entre os membros da união, aqueles deveres acima referidos (Ac. R. P. de 13/06/2018, processo n.º 658/15.6T8GDM.P1, www.dgsi.pt).

Mas, estando o modo de vida dos unidos dependente da sua livre vontade, tal não significa que, se duas pessoas decidirem adotar uma comunhão de vida, ao cooperarem e auxiliarem-se mutuamente, não estejam também a manifestar sinais de que existe na realidade essa vida em comum.

Ou seja, se existe uma ajuda mútua entre os unidos, a nível pessoal e económico, isso pode servir para demonstrar que existe união de facto.

Naturalmente que é pressuposto desta união que a comunhão seja abrangente, aceitando-se que deve incidir no que se define de comunhão de leito, mesa e habitação (Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 4.ª, página 62).

No que respeita à comunhão de leito e mesa, pensamos que não há qualquer questão a apreciar pois resulta provado que desde 8 de janeiro de 2002 a Ré e o BB passavam os dias juntos, tomavam juntos as refeições, dormiam na mesma cama e tinham uma vida social em comum (f).

O recorrente questiona que exista uma comunhão de habitação.

Vejamos então.

Nos termos do artigo 1673.º, do C. C., temos que, em relação à coabitação no casamento:

. os cônjuges devem escolher de comum acordo a residência da família, atendendo, nomeadamente, às exigências da sua vida profissional e aos interesses dos filhos e procurando salvaguardar a unidade da vida familiar (n.º 1);

. salvo motivos ponderosos em contrário, os cônjuges devem adotar a residência da família (n.º 2).

Temos então que, num casamento, os cônjuges devem escolher a sua residência de família, ou seja, aquele local onde centram a sua vida em comum e consideram o seu domicílio. Podem os membros do casal ter outras residências (por motivos profissionais ou de saúde, por exemplo) mas devem adotar aquela residência onde têm que viver (por isso é que, não havendo acordo na fixação da residência, a requerimento dos cônjuges, o tribunal decide qual é a residência de família (n.º 3, do citado artigo 1673.º).

É legalmente admitido ter duas residências alternadas (artigo 82.º, n.º 1, 2.ª parte, do C. C.), considerando-se que se está domiciliado em qualquer uma delas.

Para se verificar essa residência alternada, tem de ocorrer, em ambas, todo o circunstancialismo que se congrega naquela residência de família.

Como menciona Antunes Varela, in R. L. J. n.º 123, página 159, «essencial para que possa falar-se em residências alternadas, de acordo com o espírito da lei, é que a pessoa tenha nos vários lugares verdadeira habitação, casa montada ou instalada (e não simples quarto de pernoita ou gabinete de trabalho) e que a situação seja estável, goze de relativa permanência, e não haja simples morada ocasional, variável de ano para ano, ou de mês para mês ...»

No caso concreto, com interesse para a análise desta questão, já sabemos que desde 08/01/2002 que a Ré e BB passavam os dias juntos, tomavam juntos as refeições, dormiam na mesma cama mas como a Ré tinha (e tem) um andar próprio seu, sito na Rua ..., em ..., alternavam a sua pernoita, ora na residência do entretanto falecido, sita na Rua ..., ..., ..., ..., e que era arrendada, ora no acima referenciado andar pertença da Ré, nunca por isso a Ré tendo alterado a respetiva morada fiscal (alíneas h e i);

k) A Ré cozinhava para ambos, tratava da roupa de ambos e zelava pela limpeza, tanto da acima mencionada casa arrendada do falecido, sita em ..., quanto da sua própria casa, sita em ....

Temos ainda que BB nasceu em .../.../1943 e faleceu em .../.../2019 e a Ré nasceu em .../.../1946.

Assim, quando se iniciou o relacionamento em causa, teriam então BB 59 anos e a Ré 56 anos; isto permite concluir que ambos já teriam uma vida estabilizada no que respeitava à sua residência, cada um com a sua própria – a Ré num imóvel sua pertença e o falecido num imóvel arrendado, tal como resulta provado -.

É certo que quando duas pessoas decidem encetar uma vida em comum, a ideia base é a de se ir viver juntos, implicando essa ideia a de existir uma mudança para um local onde se vai concretizar a vivência.

Se cada um decide continuar a viver na sua própria residência, essa vivência em comum já exclui o que será a fonte não só do estar-se junto como o de começar a desenvolver todos os outros aspetos de uma relação em comunhão como, por exemplo, a assunção de despesas com a manutenção da residência – se cada um tem a sua residência, é natural que cada um assuma as suas próprias despesas em relação à respetiva residência; se houver uma residência comum, ou mesmo duas, a tendência deverá ser a de se partilhar o custo com a sua manutenção pois é (são) usufruída(s) por ambos -.

O que resulta é que ambos (Ré e falecido), passando os dias juntos, acabavam por pernoitar nas duas residências, naturalmente ora numa ou noutra; com esta atuação, pensamos que não se deve concluir que essas pessoas não tinham uma comunhão de habitação pois havia essa comunhão, com a diferença que, em vez de se só numa habitação, era em duas.

Atendendo a já terem uma situação pessoal estabilizada, terão tido a intenção de estabelecer duas residências alternadas no sentido que já acima apontamos: passando os dias juntos e adotando uma postura semelhante às dos cônjuges – tomando refeições em conjunto -, no fim do dia, querendo adotar uma comunhão de leito, assumiram que qualquer um dos imóveis constituía a sua habitação para aí dormirem juntos.

Por isso, também existiu a apontada comunhão de habitação.

É certo que o material fáctico carreado poderia ser mais vasto, sabendo-se que, em cada residência, havia bens pessoais do outro membro ou que ambos custeavam as despesas de manutenção desses imóveis (despesas de água, eletricidade, gás, renda, amortização de empréstimo, pagamento de quotas de condomínio).

Ainda assim, apurou-se que a Ré procedia à limpeza de ambos os imóveis, o que mostra não só a sua cooperação no seio da união como o sentir que estava em causa um local a que também tinha ligação.

A questão da falta de alteração da morada fiscal da Ré (que manteve a da sua residência em imóvel próprio) acaba por não ser relevante pois, na nossa visão, o imóvel que lhe pertencia era efetivamente a sua habitação, tal como era a BB; note-se que não estão em causa pernoitas ocasionais mas sim pernoitas constantes (ainda que não diárias) durante cerca de dezasseis anos (de 08/01/2002 a 27/05/2018).

Uma última nota: a questão da comunhão de habitação pode, em determinadas situações, não ser tão essencial como, por exemplo, pensamos que o recorrente pretende fazer realçar. Se de todo o circunstancialismo se denota que duas pessoas comungam a sua vida em múltiplos aspetos, acabando por a residência ser algo que não assume muito relevo para a vida como um casal, pode entender-se que existe uma união de facto. No Ac. do S. T. J. de 23/09/2021, processo n.º 2247/20.4YRLSB.S1, www.dgsi.pt, numa situação de revisão de sentença estrangeira provinda do Brasil em que não era claro que existisse comunhão de habitação (inexigível no ordenamento brasileiro), acaba por se afirmar que e ainda que se deva reconhecer que a coabitação é um requisito indispensável à verificação de uma união de facto no direito português, a sua não verificação não atingiria qualquer resultado intolerável na nossa ordem jurídica, posto que verificada a vinculação recíproca pelos demais deveres de respeito, fidelidade, cooperação e assistência, tal como referidos no artº 1672º CCiv, sumariando-se que «III – Mesmo na ausência de uma “coabitação contínua”, os factos relatados podem conduzir ao reconhecimento da situação de união de facto, na lei portuguesa.».

No caso concreto, conclui-se, no entanto, que havia comunhão de habitação entre as pessoas em causa, o que já seria suficiente para concluir pela improcedência do recurso.

Mas o recorrente ainda suscita que não havia economia comum entre as mesmas pessoas.

No que respeita à vivência em comum quanto ao dever de assistência em relação a pessoas casadas, temos que:

. artigo 1674.º, do C. C. - o dever de cooperação importa para os cônjuges a obrigação de socorro e auxílio mútuos e a de assumirem em conjunto as responsabilidades inerentes à vida da família que fundaram

 . artigo 1675.º, do C. C. - o dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar (n.º 1);

. artigo 1676.º, do C. C. - o dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afetação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos (n.º 1).
 
Vivendo-se em comum, à partida, resultará uma repartição de despesas e proveitos entre os membros, por mais diminuta que possa ser (veja-se Ac. R. E. de 02/05/2019, processo n.º 94/14.1T8VRS.E1, no mesmo sítio). Se não houver qualquer contribuição entre os dois membros, sem se lograr descortinar se existe algum acordo, expresso ou tácito, nesse sentido, pode comprometer-se a conclusão [de] que aquelas duas pessoas viviam em condições análogas às dos cônjuges.

Se cada um mantém separada a sua vida patrimonial, sabendo-se que, numa vivência em comum, essa separação é algo que pode ser difícil de suceder, exceto se não houver uma firme determinação nesse sentido, a conclusão da existência de união de facto pode encontrar dificuldades neste aspeto.

Ora, dos factos, nesta vertente de auxílio económico mútuo, não ressalta qualquer situação que nos permita concluir como era a vida em conjunto.

Mas, tal como no casamento, sob o regime de separação de bens (artigo 1735.º, do C. C.), em que cada um mantém, como próprio, o seu património, é de admitir que se possa estabelecer um tipo de vivência de facto em comum com essa semelhança até por, legalmente, não estarem obrigados ao dever de assistência.

Assim, a ausência de prova do modo como a Ré e BB dividiam os custos e rendimentos, não significa que não haja prova daquela tripla comunhão acima referida.

Por último, além dos factos acima referidos, tendo em atenção que se provou ainda que:

. comemoravam os respetivos aniversários juntos (alínea g);
. ambos se interessavam mutuamente pela saúde e bem-estar um do outro (alínea j);
. a Ré cozinhava para ambos e tratava da roupa dos dois (alínea k);
. por todos quantos com eles contactavam eram reconhecidos como companheiros e faziam a vida em comum como se fossem marido e mulher, ajudando-se mutuamente na vida diária (alínea l);
. a Ré suportou o pagamento do funeral do falecido (alínea p);
. no Hospital ..., onde acabou por falecer, BB referiu-se à Ré como sendo a sua companheira, pediu que a mesma fosse considerada como interlocutora de referência caso não estivesse em condições de exprimir as suas preferências e pediu que todos os seus pertences fossem entregues à mesma (alínea q) sendo que todas as reuniões com os médicos foram tidas com a ora Ré (alínea r);
. a Ré viveu com BB e acompanhou-o até à data da sua morte (alíneas),

pensamos que se demonstra uma intensa ligação entre estas duas pessoas, durante muitos anos e até ao fim da vida de um dos seus membros.

A existência dessa união passou a ser percetível para com quem convivia com os dois, incluindo os médicos que trataram de BB, pelo que não vemos que a circunstância de não dormirem juntos sempre na mesma habitação possa afastar a conclusão [de] que viveram juntos, em união de facto, por cerca de dezasseis anos. [Como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in Curso de Direito de Família, 3.ª edição, página 124, «fundamental é que os membros da união de facto vivam como sendo casados, em comunhão plena de vida, criando uma aparência de vida matrimonial».]

Improcede assim o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida."

[MTS]


30/01/2023

"Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se"


1. a) Na parte decisória de um relativamente recente acórdão de uma das Relações afirma-se o seguinte:

"Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, na parte em que dispensou a audiência prévia, bem como julgar verificada a nulidade processual da dispensa da audiência prévia, com a consequente anulação, por arrastamento, da saneador-sentença recorrido, determinando-se agora que o processo prossiga os seus termos normais com a realização de tal diligência."

Salva a muita consideração, a referência à "nulidade processual da dispensa da audiência prévia" é equivocada.

b) Para melhor compreensão do que a seguir se vai dizer, importa ter presente que o objecto do referido acórdão era um despacho saneador no qual se dispensou (ex professo) a realização da audiência prévia e se conheceu do mérito da causa.

O acórdão contém um voto de vencido, entendendo que, in casu, a dispensa da audiência prévia pelo tribunal de 1.ª instância não representou nenhuma violação do princípio do contraditório. É bem possível que o voto seja justificado, mas o acórdão não fornece os elementos suficientes para formar uma convicção segura. 

Seja como for, as reflexões seguintes não têm a ver com a justificação da dispensa da audiência prévia pela 1.ª instância, mas antes com as consequências que decorrem da consideração da ilegalidade dessa dispensa no acórdão acima referido, pressupondo-se que essa dispensa foi efectivamente ilegal.

2. a) Para ajudar a enquadrar o problema em discussão, suponha-se a seguinte situação: o réu, devidamente citado, não apresenta contestação; o tribunal considera que a revelia é operante e, por isso, profere a sentença final; verifica-se que, se correctamente qualificada, a revelia devia ter sido considerada inoperante e que, por isso, deveriam ter sido praticados os actos subsequentes ao termo do prazo da contestação.

O que se dirá neste caso quando, em recurso, for detectada a errada qualificação da revelia do réu? Não certamente que foi cometida a nulidade processual decorrente da omissão de todos os actos posteriores à não apresentação da contestação que deveriam ter praticados se a revelia tivesse sido correctamente qualificada. O que certamente se dirá é que a decisão que considerou que a revelia era operante é uma decisão ilegal (e impugnável nos termos gerais).

Isto demonstra que há que considerar duas situações completamente distintas: 

-- Aquela em que o tribunal simplesmente omite um acto devido;

-- Aquela em que o tribunal decide que um acto não deve ser praticado.

Só no primeiro caso é cometida uma nulidade processual (como, por exemplo, a falta de citação do réu (art. 187.º, al. a), e 188.º CPC)) ou a nulidade desta citação pela falta da junção da petição inicial (art. 191.º, n.º 1, CPC)). No segundo, o que há é uma decisão ilegal.

b) No caso em que o tribunal decide incorrectamente que o acto deve ser omitido (ou praticado), ainda podem ser consideradas duas situações:

-- A decisão incide apenas sobre a omissão do acto legalmente devido;

-- A decisão incide sobre a omissão do acto legalmente devido e sobre outras questões (como, por exemplo, o conhecimento do mérito da acção).

A resposta é a mesma para ambas as situações: em qualquer delas há uma decisão ilegal sobre a omissão do acto devido e em nenhuma delas tem sentido falar de nulidade processual. O tribunal comete uma nulidade processual quando omite um acto devido, não quando entende incorrectamente que o acto deve ser omitido.

Assim, não pode ser a circunstância de a decisão, além de decidir (ilegalmente) que um acto não tem de ser praticado, apreciar outras questões que pode levar a concluir que, afinal, há uma nulidade processual. Repare-se: se, quando o tribunal se limita a determinar a omissão (ilegal) de um acto, não se pode dizer que ocorre uma nulidade processual, então também não pode ser pela circunstância de o tribunal, além de determinar essa omissão, também conhecer de outras questões que se pode entender que o tribunal comete essa nulidade. A decisão que dispensa um acto devido nunca pode ser qualificada como uma nulidade processual, independentemente de o tribunal apenas decidir essa dispensa ou decidir essa dispensa e, na sequência desta, vir a apreciar outras questões. 

Segundo se pode imaginar, a desconsideração de que ambas as situações merecem a mesma resposta está na origem de alguns equívocos que ainda subsistem nesta matéria e de que o acórdão em análise constitui um exemplo.

3. A este propósito convém recordar uma das mais conhecidas passagens da doutrina processual civil portuguesa:

"A arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio processual para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou a reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.

Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados; dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se" (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II (1945), 507).

Naturalmente, tudo certíssimo. Repare-se que Alberto dos Reis fala de "reagir contra a ilegalidade" (não contra a nulidade) quando "há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade" e nunca relaciona a nulidade processual com uma decisão.

Para reforçar o bem-fundado da orientação de Alberto dos Reis basta verificar que não se pode dizer que, se o tribunal decidir dispensar o juramento da testemunha, isso é a mesma coisa que o tribunal, pura e simplesmente, omitir esse juramento. A decisão errada sobre a dispensa do juramento e a omissão pura e simples desse juramento são coisas distintas: no primeiro caso, há uma decisão ilegal; no segundo, há um nullum e, por isso, uma nulidade processual. Generalizando: a decisão ilegal sobre a omissão de um acto não pode ser confundida com a omissão ilegal do acto.

Precisamente por isto tem interesse voltar a ouvir Alberto dos Reis:

"Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática desse acto[,] é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei de processo. Portanto, a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso [...]" (Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil II, 507 s.).

Deste trecho sai reforçada a orientação segundo a qual o problema é de ilegalidade do despacho que decidiu a omissão ou a prática do acto, não de nenhuma nulidade processual. 

4. O anteriormente afirmado demonstra que é equivocado falar de nulidade processual quando há uma decisão que manda praticar um acto proibido ou que impõe a omissão de um acto devido. Nesta hipótese, o que há é uma decisão ilegal. É precisamente por isso que o meio de reacção é o recurso, e não a reclamação própria das nulidades processuais (art. 196.º 2.ª parte, CPC). Aliás, o que se vai discutir na impugnação dessa decisão é a sua legalidade ou ilegalidade, não a verificação de alguma nulidade processual, tanto mais (o que, por vezes, se esquece) que para a apreciação dessa nulidade, segundo o preceito acabado de citar, o tribunal de recurso nem sequer tem a necessária competência funcional.

MTS

Nota de actualização: cf. também "Dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se" (2).


Jurisprudência 2022 (110)


Competência material;
processo executivo; custas de parte


1. O sumário de RP 7/4/2022 (5520/21.0T8MAI-A.P1) é o seguinte:

I - A competência em razão da matéria para conhecer das ações executivas para pagamento da quantia devida por custas de parte relativas a processo que correu termos no Tribunal de Família e Menores compete aos juízos de execução existentes na área reportada, ou, não os havendo, aos juízos locais cíveis ou de competência genérica, ou aos juízos centrais cíveis, conforme o valor da ação não supere, ou supere € 50.000, respetivamente (artigos 129º/1; 130º /2 alínea c) e 117º nº 1 alínea b, todos da LOSJ).

II - No âmbito da LOSJ, os Tribunais de Família e Menores têm competência material para executar as decisões por eles proferidas quanto aos alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges (artigo 122º/1, f), quanto aos alimentos a filhos menores (artigo 123º/1, e) e decisões em matéria tutelar educativa (artigo124º/1, c).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I
Na questão em apreço perfilhamos o entendimento constante da decisão sumária da Exma. Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães, de 08.10.2020, disponível em: https://www.trg.pt/gallery/1621%2020.0T8VCT.G1-Execu%C3%A7%C3%A3o%20por%20Custas%20Parte%20-%2008-10-2020.pdf, citada nas alegações de recurso e que segue o entendimento que sobre a questão foi expresso pelo Conselheiro Salvador da Costa in https://blogippc.blogspot.com/2020/02/competencia-material-para-acao.html.

As custas de parte integram a condenação por custas, constituindo uma vertente autónoma do conceito de custas (artigos 529º/1 e 4, 607º/6, 663º/2 e 679º, todos do CPC e 26º/1 do RCP).

A parte vencedora que quiser ressarcir-se das custas de parte, no montante que lhe for devido, no prazo legal para o efeito, deve remeter à outra parte a nota discriminativa e justificativa, que se tem por liquidada caso não haja impugnação ou a mesma seja improcedente (artigos 533º/1 e 3 CPC e 25º/1 do RCP). [...]

III
O artigo 129.º/1 da LOSJ atribui competência aos juízos de execução no âmbito dos processos de execução de natureza cível.

O artigo 130.º/2, c) da mesma lei estabelece que são aos juízos locais cíveis ou de competência genérica a exercer, no âmbito do processo de execução, as competências previstas no Código de Processo Civil, onde não houver juízo de execução ou outro juízo ou tribunal de competência especializada competente para o efeito.

Acresce que o artigo 117.º/1, b), do referido diploma legal, define que compete aos juízos centrais cíveis exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a € 50.000, as competências previstas naquele código em circunscrições não abrangidas pela competência de outro juízo ou tribunal.

Por consequência, “Decorre da interpretação conjunta das referidas normas que a competência em razão da matéria para conhecer das ações executivas para pagamento de quantia certa relativa às custas de parte se inscreve nos juízos de execução existentes na área reportada, ou, não os havendo, nos juízos locais cíveis ou de competência genérica, ou nos juízos centrais cíveis, conforme o valor da ação não supere ou supere € 50.000, respetivamente”.

IV
No âmbito da LOSJ, os tribunais de família e menores apenas executam as decisões por eles proferidas quanto aos alimentos entre cônjuges e ex-cônjuges (artigo 122º/1, f), quanto aos alimentos relativos a filhos menores (artigo 123º/1 e) e decisões em matéria tutelar educativa (artigo 124º/1, c).

Considerando que, mesmo em tais ações, a execução para cobrança de custas de parte não corre termos nem no processo declarativo em que ocorreu a condenação no pagamento das custas, nem por apenso, processando-se com absoluta autonomia em relação a ele, perante o exposto, concluímos que, para a sua tramitação, é competente o juízo de execução da área geográfica respetiva."

[MTS]

27/01/2023

Legislação europeia (Projectos e propostas) (44)


Filiação

-- Proposta de Regulamento do Conselho relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento de decisões e à aceitação de atos autênticos em matéria de filiação e à criação de um certificado europeu de filiação (COM(2022) 695 final, de 7/12/2022)


Jurisprudência 2022 (109)


Transacção; interpretação;
NRAU


1. O sumário de STJ 27/4/2022 (2052/19.0T8BRG.G1.S1) é o seguinte:

I - O regime legal da interpretação dos negócios jurídicos está concentrado, quanto às suas regras gerais, nos arts. 236.º a 239.º do CC.

II - Podendo afirmar-se, sem prejuízo de tais regras, que a primeira regra de interpretação até será a vontade real comum, o sentido subjetivo comum, ou seja, se há consenso das partes, do declarante e do declaratário, sobre o sentido da declaração, é de acordo com ele que a declaração deve ser interpretada.

III - Estando a segunda regra contida no art. 236.º, n.º 2, do CC, segundo a qual, em caso de divergência entre o sentido subjetivo da declaração e o seu sentido objetivo, prevalece o sentido subjetivo desde que o declaratário o conheça (em conformidade com o ditame da velha máxima falsa demonstrativo [demonstratio] non nocet).

IV - E, em caso de divergência entre o sentido subjetivo da declaração e o seu sentido objetivo, desconhecendo o declaratário a vontade real do declarante, prevalece, segundo a terceira regra, contida no art. 236.º, n.º 1, do CC, o sentido objetivo da declaração, salvo se o declarante não puder contar com ele, isto é, desde que tal sentido não colida com a expetativa razoável do autor da declaração: é a chamada teoria da impressão do destinatário.

V - Assim, não havendo acordo das partes quanto à vontade real comum que presidiu ao texto de cláusula duma transação judicial e nada se tendo provado em termos do que era a vontade real dos declarantes, ficamos, em termos interpretativos, circunscritos/confinados à aplicação da regra contida no art. 236.º, n.º 1, do CC, pelo que, dizendo-se no texto da cláusula que o contrato de arrendamento “fica sujeito ao regime do NRAU com efeitos desde 01-06-2018”, a interpretação da cláusula tem que ir no sentido de considerar que o contrato de arrendamento existente entre as partes ficou submetido ao NRAU em 01-06-2018 e não que o contrato de arrendamento fica sujeito ao regime do NRAU no prazo que estiver e/ou vier a ser previsto no art. 54.º, n.º 1, do NRAU (prazo que, após a data da transação, foi majorado de 5 para 10 anos e que nesta interpretação da cláusula faria o contrato ficar submetido ao NRAU apenas em 01-06-2023).

VI - Decorrido o prazo/período (previsto no art. 54.º, n.º 1, do NRAU) de suspensão da possibilidade de operar a transição do contrato para o NRAU, pode o senhorio promover novamente essa transição, remetendo, para o efeito, nova comunicação ao arrendatário, com o teor constante do art. 50.º, aplicando-se a esta comunicação e respetiva resposta do arrendatário, com as consequências daí resultantes, os mesmos trâmites que seriam aplicáveis à primeira com a exceção constante do art. 54..º, n.º 6, al. a), deixando assim de ser possível ao arrendatário invocar alguma das circunstâncias excecionais previstas no n.º 4 do art. 51.º

VII - Nova comunicação em que o senhorio pode, assim como podia na primeira comunicação, propor, com total liberdade, o valor da renda, o tipo e a duração do contrato (como resulta do art. 50.º, al. a), para que remete o art. 54.º, n.º 6, do NRAU).

VIII - Inexistindo qualquer obstáculo à possibilidade de o senhorio, perante a discordância do arrendatário relativamente ao valor atualizado da renda por si proposto - apenas perante tal discordância do arrendatário, não exigindo o art. 33.º, n.º 5, que a discordância inclua o tipo e a duração do contrato - promover, querendo, a denúncia do contrato.

IX - Sendo isto que resulta do NRAU, a cláusula do mesmo contrato de transação (celebrada em 23-02-2016), em que se diz que “findo o período transitório de 5 anos, aplicar-se-á o previsto no n.º 6 do art. 54.º do NRAU”, tem que ser interpretada e aplicada - uma vez que a transição para o NRAU está já estabelecida/fixada na anterior cláusula - em tudo o que a sua aplicação não estiver prejudicada, ou seja, como querendo dizer que, após 01-06-2018, a senhoria teria que voltar a repetir o procedimento (que é o que, em termos práticos, se prevê no art. 54.º, n.º 6, do NRAU), teria que voltar a remeter nova comunicação à ré/arrendatário, com o teor constante do art. 50.º, aplicando-se a esta comunicação e respetiva resposta do arrendatário, com as consequências daí resultantes, os mesmos trâmites que seriam aplicáveis à primeira, com a exceção constante do art. 54.º, n.º 6, al. a), deixando de ser possível ao arrendatário a invocação de qualquer uma das circunstâncias excecionais previstas no n.º 4 do art. 51.º e inexistindo qualquer obstáculo à possibilidade de o senhorio, perante a discordância do arrendatário relativamente ao valor atualizado da renda por si proposto, promover, querendo, a denúncia do contrato.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A afirmação de que um determinado sentido dum texto/declaração é inequívoco tem que ser o resultado da sua interpretação – ultrapassado há muito o velho brocardo latino em que se dizia “in claris non fit interpretatio” – pelo que, no caso, a interpretação da cláusula da transação em causa (em que se acordou que o contrato de arrendamento existente entre ambas “fica sujeito ao regime do NRAU com efeitos desde 01.06.2018”) não dispensava/dispensa o percurso jurídico efetuado na 2.ª Instância.

Como é sabido, o regime legal da interpretação dos negócios jurídicos está concentrado, quanto às suas regras gerais, nos artigos 236.º a 239.º do C. Civil.

Podendo afirmar-se, sem prejuízo de tais regras, que a primeira regra de interpretação até será a vontade real comum, o sentido subjetivo comum, ou seja, se há consenso das partes, do declarante e do declaratário, sobre o sentido da declaração, é de acordo com ele que a declaração deve ser interpretada.

Estando então a segunda regra contida no art. 236.º/2 do C. Civil, segundo a qual, em caso de divergência entre o sentido subjetivo da declaração e o seu sentido objetivo, prevalece o sentido subjetivo desde que o declaratário o conheça: em conformidade com o ditame da velha máxima “falsa demonstrativo [demonstratio] non nocet”, o 236.º/2 do C. Civil estabelece que, sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

E, em caso de divergência entre o sentido subjetivo da declaração e o seu sentido objetivo, desconhecendo o declaratário a vontade real do declarante, prevalece, segundo a terceira regra, contida no art. 236.º/1 do C. Civil, o sentido objetivo da declaração, salvo se o declarante não puder contar com ele, isto é, desde que tal sentido não colida com a expetativa razoável do autor da declaração.

É a chamada teoria da impressão do destinatário, em que a declaração vale com o sentido que um destinatário razoável, colocado na posição concreta do real declaratário, lhe atribuiria; em que o que é objeto de interpretação não é a vontade como “facto da vida anímica interior”, mas a declaração como ato significante (em que, numa interpretação normativa, não se dá relevo nem à vontade real do declarante nem à vontade real do declaratário).

E em que a expressão “real declaratário” significa que o declaratário é considerado nas condições concretas em que se encontrava, tomando-se em conta os elementos que ele conheceu efetivamente, mais os que uma pessoa razoável – ou seja, normalmente esclarecida, zelosa e sagaz – teria conhecido e imaginando-se que ele raciocinou sobre essas circunstâncias como o teria feito um declaratário razoável.

Perante tais regras interpretativas – a que importa acrescentar o maior pendor de objetivismo colocado quando se está perante negócios formais, na medida em que, quanto a estes, de acordo com o art. 238.º do C. Civil, não pode a declaração valer com um sentido que não tiver um mínimo de correspondência, embora imperfeita, no texto do respetivo documento – não pode deixar de concordar-se (quanto à interpretação da cláusula sub judice) com o percurso e desfecho expostos no acórdão recorrido.

Não é que a tese interpretativa da R. seja ilógica e/ou que estejamos perante um caso em que o sentido da tese interpretativa da A. seja totalmente inequívoco, porém, tudo ponderado, face aos elementos factuais provados, o desfecho interpretativo não pode ser outro.

Não havendo acordo das partes quanto à vontade real comum que presidiu ao texto da cláusula e nada se tendo provado em termos do que era a vontade real dos declarantes (como resulta do elenco dos factos não provados), ficamos, em termos interpretativos, circunscritos/confinados à aplicação da regra contida no art. 236.º/1 do C. Civil: à chamada teoria da impressão do destinatário.

E aqui, colocando-nos na posição dos “reais declaratários”, tomando em conta todos os elementos e circunstâncias que eles conheceram e ponderaram – tudo o que antecedeu a transação (e que supra relatámos) e a transação no seu todo global – não podemos omitir, numa primeira observação, que o clausulado da transação não prima pela “harmonia”.

Como começámos por referir, o litígio versa, em termos de controvérsia jurídica, sobre a aplicação das alterações que com o NRAU (mais exatamente, com as alterações de 2012 e as posteriores) foram introduzidas/possibilitadas nos contratos de arrendamento urbano antigos, tema cheio de detalhes, minudências e dificuldades interpretativas.

No caso, como já se referiu, tomando o senhorio a iniciativa, nos termos do art. 50.º do NRAU (que, no que para aqui interessa, não teve alterações desde 2012), da “transição para o NRAU” e da “atualização da renda”, o arrendatário podia (e continua a poder) obstar à imediata “transição para o NRAU”, invocando/comprovando (nos termos, já referidos, dos arts. 51.º/4/a) e 54.º/1 do NRAU), como foi o caso, ser uma microempresa.

E a partir daqui – invocando/comprovando o arrendatário ser uma microempresa – não está previsto, no NRAU, que logo ali, de imediato, o senhorio comunique ao arrendatário que então o contrato transita passados 5 ou 10 anos (como eram/são os prazos à época e hoje, após a Lei 43/2017): o que está previsto – e resulta, à época e hoje, da conjugação do disposto nos n.º 1 e 6 do art. 54.º do NRAU – é que, passado o prazo (de 5 ou 10 anos) em que o contrato não fica submetido ao NRAU, o senhorio promova “a transição do contrato para o NRAU, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 50.º e ss” – cfr. art. 54.º/6 do NRAU.

Trata, pois, o art. 54.º/6 do NRAU do momento em que o contrato de arrendamento, finalmente (sem lhe poderem ser colocados os obstáculos do art. 51.º/4 do NRAU), vai poder transitar para o NRAU, ou seja, a aplicação do art. 54.º/6 do NRAU significa, aos olhos do legislador, muito claramente, que, no momento em que se procede à sua aplicação, ainda o contrato não transitou para o NRAU.

E – é onde se pretende chegar – é aqui que dizemos que o clausulado da transação não prima pela “harmonia”.

Numa cláusula diz-se que o contrato de arrendamento “fica sujeito ao regime do NRAU com efeitos desde 01.06.2018” e noutra cláusula, da mesma transação, diz-se que, após essa data, “aplicar-se- o previsto no n.º 6 do art. 54.º do NRAU”, ou seja, fixa-se a data do início da sujeição do contrato ao NRAU e, ao mesmo tempo, diz-se que posteriormente se aplica um preceito cuja aplicação pressupõe que o contrato ainda não está sujeito ao NRAU.

E é justamente por isto – olhando para tais duas cláusulas do contrato de transação e tendo presente o significado jurídico, na economia do NRAU, duma norma como a do art. 54.º/6 – que afirmámos que a tese interpretativa da R. não é ilógica e/ou que o sentido da tese interpretativa da A. não é totalmente inequívoco. [---]

Como se refere no Acórdão recorrido e se concorda, (…) as partes acordaram na definição de uma data fixa (01 de Junho de 2018) a partir da qual o contrato de arrendamento que as unia passaria a estar sujeito ao regime do NRAU, tal como a aqui Autora defendera resultar da aplicação da lei então em vigor (…). (…) nessa definição, coincidente com a aplicação do regime legal então em vigor (o art. 54.º, n.º 1, do NRAU, na versão da Lei n.º 79/2014, de 19 de Dezembro, onde se lia que, caso «o arrendatário invoque e comprove uma das circunstâncias previstas no n.º 4 do artigo 51.º, o contrato só fica submetido ao NRAU mediante acordo entre as partes ou, na falta deste, no prazo de cinco anos a contar da receção, pelo senhorio, da resposta do arrendatário nos termos do n.º 4 do artigo 51.º»), as partes não previram, nem salvaguardam, a sua alteração posterior, mercê de uma qualquer alteração legislativa, nomeadamente reforçando a proteção dos interesses de uma, em detrimento da outra (por forma a que a dita data fixa, se ainda não atingida, o viesse a refletir). Com efeito, sendo amplamente discutida naqueles autos a questão da aplicação ao contrato de arrendamento em causa do novo regime do arrendamento urbano, estando ambas as partes representadas por advogados, não seria crível que, tendo-o previsto e querido - ambas, ou uma delas com o conhecimento e a aceitação da outra - não o tivessem expressamente consignado na transação havida, atento nomeadamente o seu carácter formal (não podendo a respetiva vontade valer sem um mínimo de correspondência no seu texto, aqui de todo em todo inexistente).

Enfim, a interpretação da cláusula sub judice da transação tem que ir no sentido de considerar que o contrato de arrendamento existente entre as partes ficou submetido ao NRAU em 01/06/2018 [---]. [...]

Em síntese: não havia qualquer prazo em curso para se pedir a transição para o NRAU, tendo as partes logo estabelecido, por acordo – o que, repete-se, é permitido pelo art. 54.º/1 do NRAU – a data exata em que tal transição ocorreria.

Quanto à 2.ª questão (isto é, quanto à revista da A.):

Tendo-se considerado que, em 01/06/2018, ocorreu a transição para o NRAU do contrato de arrendamento, coloca-se a questão da aplicação do art. 54.º/6 do NRAU (e da interpretação da atinente cláusula da transação), o mesmo é dizer, como já se referiu, coloca-se agora a questão de saber se a A. podia fazer a proposta contratual que fez (em termos de renda, tipo e duração do contrato) e se depois podia, recebida a resposta da aqui R. e arrendatária, denunciar o contrato de arrendamento.

Vejamos:

Os contratos de arrendamento “não habitacionais” celebrados anteriormente à vigência do DL 257/95, como é o caso do arrendamento dos autos, tinham natureza vinculística, constituindo, nessa medida, contratos sem duração limitada, contratos em que a liberdade desvinculativa do senhorio, à luz do regime vigente em que foram celebrados, se encontrava praticamente excluída.

Entretanto, em 2006, com o NRAU (Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro), o legislador veio dizer que tais contratos passaram a ficar submetidos automaticamente ao NRAU (cfr. art. 26.º/1, ex vi art 28.º do NRAU), porém, com as especificidades previstas no respetivo regime transitório (também constante do NRAU), ou seja, no caso do arrendamento dos autos, foi o mesmo equiparado (cfr. art. 26.º/4, ex vi art 28.º do NRAU) aos contratos de duração indeterminada, aplicando-se assim a tais relações arrendatícias antigas as normas constantes do art. 1099.º e ss. do C. Civil, não lhes sendo, todavia, aplicável o art. 1101.º/c) do C. Civil, o que significava dizer que, em regra, o senhorio continuava vinculado à manutenção do contrato de arrendamento para fins não habitacionais (uma vez que é o “não aplicável” art. 1101.º/c) do C. Civil que concede ao senhorio o poder de denunciar o contrato, o poder de, livre e sem qualquer fundamento, promover a sua desvinculação através da denúncia ad nutum).

Foi esta situação – de manutenção do “vinculismo” – que as alterações introduzidas ao NRAU em 2012 (Lei 31/2012) vieram alterar, permitindo que, em certos termos e seguindo-se determinados procedimentos (dependentes da iniciativa do senhorio, como já se referiu), as relações arrendatícias antigas pudessem transitar integralmente para o NRAU, para um dos tipos contratuais previstos no atual art. 1094.º/1 do C. Civil e, dentro do contrato com prazo certo, com a duração a estipular pelas partes ou de forma supletiva, nos termos, designadamente, dos art. 31.º/10/b), 33.º/5/b) e 54/6/b) do NRAU (nos números da lei atualmente vigente); após o que, transitado o contrato integralmente para o NRAU e nele produzidas as correspondentes alterações, passou o senhorio, num 2.º momento, conforme a modalidade contratual escolhida seja o prazo certo ou a duração indeterminada, a poder opor-se à respetiva renovação, nos termos do art. 1097.º do C. Civil, ou a denunciar o contrato com fundamento no (até ali inaplicável e que com a transição integral para o NRAU deixou de ser inaplicável) art. 1101.º/c) do C. Civil. [...]

Como acima já se explicou/reconheceu, as cláusulas da transação não estão em harmonia perfeita: numa cláusula, repete-se, diz-se que o contrato de arrendamento “fica sujeito ao regime do NRAU com efeitos desde 01.06.2018” e noutra diz-se que, após essa data, “aplicar-se-á o previsto no n.º 6 do art. 54.º do NRAU”, ou seja, fixa-se o início da sujeição do contrato ao NRAU e, ao mesmo tempo, diz-se que posteriormente se aplica um preceito cuja aplicação pressupõe que o contrato ainda não está sujeito ao NRAU.

Pelo que, a nosso ver, sem prejuízo do art. 54.º/6 não poder ser já totalmente aplicável – uma vez que a transição para o NRAU já estava estabelecida/fixada/acordada para o dia 01/06/2018 – a interpretação/compatibilização das cláusulas em causa passará pela aplicação do art. 54.º/6 em tudo o que a sua aplicação não estiver prejudicada.

E – é o ponto – só está prejudicada a “promoção da transição para o NRAU” (por estar já estabelecida/fixada/acordada), podendo aplicar-se, na totalidade a parte restante, ou seja, o que ademais ali se dispõe, designadamente o que se diz no corpo do art. 54.º/6, ou seja, podendo aplicar-se, “com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 50.º e ss., com as seguintes especificidades”.

É este, na economia do litígio a da transação que lhe colocou termo, o sentido, com todo o respeito por opinião diversa, da cláusula da transação em análise: a A/senhoria tinha, em 2013, tomado a iniciativa de operar a transição do contrato para o NRAU (com tudo o que isso podia significar, quer em termos de possível atualização da renda, quer em termos de possível denúncia do contrato) e a R/arrendatária tinha (com a invocação/comprovação da circunstância excecional referida no art. 51.º/4/a) do NRAU) paralisado transitoriamente tal pretensão, pelo que, estando as partes cientes de tal “paralisação transitória”, ao dizerem que, após 01/06/2018, se aplicaria “o previsto no n.º 6 do art. 54.º do NRAU”, quiseram naturalmente dizer que, após 01/06/2018, a A./senhoria teria que voltar a repetir o procedimento (que é o que, em termos práticos, se prevê no art. 54.º/6), teria que voltar a remeter nova comunicação à R./arrendatário, com o teor constante do artigo 50.º, aplicando-se a esta comunicação e respetiva resposta do arrendatário, com as consequências daí resultantes, os mesmos trâmites que seriam aplicáveis à primeira, com a exceção constante do art. 54.º/6/a), deixando de ser possível ao arrendatário a invocação de qualquer uma das circunstâncias excecionais previstas no n.º 4 do art. 51.º e inexistindo qualquer obstáculo à possibilidade de o senhorio, perante a discordância do arrendatário relativamente ao valor atualizado da renda por si proposto, promover, querendo, a denúncia do contrato. [...]

Enfim, assiste razão à A./senhoria quando defende que o contrato de transação não definiu o tipo e duração do contrato, nem a atualização da renda, após a integral submissão do contrato ao NRAU [---], tendo as partes remetido essas questões para momento ulterior, para o que viesse a resultar a partir de nova comunicação/iniciativa da A./senhoria [---]."

[MTS]


26/01/2023

Jurisprudência 2022 (108)


Matéria de facto; apreciação da prova;
presunções judiciais


I. O sumário de RG 28/4/2022 (3162/20.7T8GMR.G1é o seguinte:

1. Não há qualquer contradição em dar como provado que, numa acção de anulação de testamento, à data de elaboração do mesmo o testador já estava diagnosticado com a doença de Alzheimer, e dar simultaneamente como não provado que aquando da outorga do testamento, o estado de saúde do testador não lhe permitisse discernir de forma a entender o sentido da sua actuação e proceder de acordo com a sua vontade, e que o testador não estivesse livre e capaz de se autodeterminar de acordo com a sua vontade quando outorgou o testamento referido.

2. A existência de um diagnóstico de Alzheimer prévio à elaboração do testamento não implica uma inversão do ónus da prova, a qual apenas ocorre nos casos previstos no art. 344º CC.

3. O diagnóstico de Alzheimer não é um dado abstracto, é uma situação concreta, que pode variar de caso para caso, para além daqueles traços que são comuns a todos os doentes.

4. O que pode suceder é operar uma presunção judicial, nos termos do art. 349º CC.

5. Essas presunções inserem-se no quadro do julgamento da matéria de facto, e como tal são casuísticas.

6. E assim, o uso de uma presunção judicial que permita extrair do diagnóstico de Alzheimer prévio ao testamento a conclusão de que à data da elaboração deste o testador já não estava capaz de formar de forma livre e lúcida a sua vontade e de a expressar correctamente, depende dos factos concretos que o autor conseguir provar acerca do estado mental do testador à data da declaração de vontade.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"2. [...] pretende o recorrente que estes factos não provados:

“a) aquando da outorga do testamento, o estado de saúde do testador não lhe permitisse discernir de forma a entender o sentido da sua actuação e proceder de acordo com a sua vontade
b) o testador não estivesse livre e capaz de se autodeterminar de acordo com a sua vontade quando outorgou o testamento referido em 5)
c) o testador tivesse quadros depressivos profundos e fosse facilmente manipulável”

sejam dados como provados.

Mas sem razão.

Em primeiro lugar, estas 3 alíneas podem ser condensadas numa única proposição: que o testador G. J. não estivesse, na data do testamento, capaz de formar a sua vontade de forma livre e esclarecida e proceder de acordo com essa vontade.

Para poder afirmar tal coisa, seria necessário demonstrar uma de duas coisas:

a) que o testador estivesse no momento afectado por uma qualquer incapacidade acidental e transitória;
b) que o testador estivesse nessa altura já a sofrer as consequências de uma doença que lhe retirasse de forma prolongada essa capacidade de percepção, volição e discernimento.

O cenário da alínea a) não foi alegado, pelo que nem se coloca.

Resta-nos o cenário da alínea b).

Só que esse foi o que acabámos de analisar. A posição que o recorrente defende é a de que o seu pai sofria de Alzheimer já desde 1995, pelo que quando elaborou o seu testamento, em 6.3.2008, já a doença o tinha privado da capacidade de entendimento e de formar de forma livre e esclarecida a sua vontade.

O que se provou foi que efectivamente ao testador tinha sido diagnosticada a doença de Alzheimer, mas a data mais recuada que foi possível estabelecer para esse diagnóstico foi Setembro de 2005.

Assim, temos alguém a quem é diagnosticada a doença de Alzheimer em Setembro de 2005, e que em Abril de 2008 faz um testamento. E a questão que se coloca é a de saber se na data em que fez o testamento já a doença o tinha privado da capacidade de formar livre e esclarecidamente a sua vontade e de a manifestar perante terceiros.

A resposta a tal pergunta, não tendo sido possível recorrer a perícia médico-neurológica no momento do testamento, só pode emergir de prova circunstancial, ou seja, de prova que nos diga qual o comportamento do testador no momento em que expressou a sua vontade perante o Notário.

E aqui, voltamos mais uma vez a ter de dizer que concordamos na íntegra com tudo o que se escreveu na sentença recorrida. E quando a decisão recorrida está correcta, o Tribunal de recurso pouco tem a dizer ou acrescentar.

O tribunal recorrido fundamentou assim a decisão:

As testemunhas que estiveram presentes no momento da outorga do testamento foram credíveis nos seus depoimentos, tendo contrariado a tese da incapacidade alegada pelo autor.

Desde logo, o Sr. Notário, C. R., foi peremptório em afirmar que não hesitaria em recusar o testamento se não estivesse absolutamente certo da livre vontade do testador. É, de resto, essa a sua prática habitual: quando se lhe suscitam dúvidas quanto à capacidade do testador -designadamente se o mesmo padece de alguma doença que pode ser incapacitante-, faz-se acompanhar de médicos, recusando o acto se estes não atestarem a capacidade. Por vezes, mesmo conhecendo a capacidade do testador, visando acautelar impugnações futuras, designadamente se aquele for muito idoso, faz-se também acompanhar de médicos que atestam a capacidade para o acto.

Daí que, se previamente à celebração do testamento lhe tivesse sido comunicado que o testador padecia de Alzheimer (como se viu supra, em Setembro de 2005 já estaria medicado para a doença), só celebraria o testamento se médicos atestassem a capacidade.
 
Porém, uma vez que nada lhe foi referido nesse sentido, seguiu os procedimentos habituais, falando com o testador durante algum tempo, para perceber a sua vontade, só depois celebrando o acto.

Nessa conversa não se lhe suscitou qualquer dúvida, quer quanto à capacidade do testador, quer quanto à sua real vontade, pois, como se disse já, se tal dúvida tivesse, não celebraria o testamento.

Ora, estando em causa um notário, experiente e visivelmente preocupado em não desvirtuar a vontade dos testadores, não há razão alguma para duvidar de que manteve com o autor do testamento um tipo de conversa que lhe permitiu, por um lado, perceber se o mesmo estava capaz, por outro, se o texto do testamento correspondia efectivamente ao que aquele pretendia.

H. C., advogado que esteve nesse acto, também foi muito claro no seu depoimento.

Foi o próprio quem elaborou o testamento, nos termos que lhe foram solicitados.

Conheceu o testador em 2004, no escritório do Dr. L. L., onde o depoente exercia e exerce advocacia, nada fazendo suspeitar que pudesse ter alguma doença incapacitante.

O ano de 2007 terá sido aquele em que G. G. foi pela última vez ao escritório do Dr. L. L., de quem era amigo pessoal. Nessa altura apresentava dificuldades, mas apenas de locomoção. E terá sido por causa dessa menor mobilidade que, em Março de 2008, o testamento foi outorgado na casa onde o testador residia durante grandes períodos de tempo, que era a casa do ora réu [artigo 6)]”.

Não temos muito mais a acrescentar.

Apenas realçar que o depoimento mais importante e decisivo, nesta matéria, foi o da testemunha C. T., o Notário que elaborou o testamento. Pela sua preparação técnica e pela sua experiência profissional, esta testemunha era a que melhor estava em condições de se aperceber se o testador estava ou não estava na plena posse das suas capacidades intelectuais. Do seu depoimento retira-se o seguinte:

-os factos ocorreram há 13 anos;
-fui à casa do testador;
-o formalismo que eu sigo é sempre o mesmo: faço ao testador as perguntas normais para ver se sabe o que quer e se está orientado no espaço e no tempo;
-quando tenho dúvidas levo médicos;
-neste caso não tive qualquer dúvida quanto às capacidades do testador;
-se as tivesse tido tinha recusado elaborar o testamento e tinha chamado médicos;
-lembro-me dos testamentos que são complicados, pelas mais variadas razões (testador surdo-mudo, etc) mas dos normais não me lembro, pelo que este foi normal;
-não sei porque é que o testador não assinou: às vezes dizem que tremem muito, não conseguem assinar, e eu digo que não há problemas, põem o dedo;
-este para mim não foi um testamento complicado;
-para mim o testador estava na plena posse das suas capacidades.

E não se tente desvalorizar este depoimento com o argumento de que a testemunha disse que já não se recordava da situação em concreto. É verdade que disse. Mas até isso lhe dá credibilidade. Poderia ser estranho se a testemunha se recordasse com detalhe de um testamento, igual a tantos outros, que fez há 13 anos. E a lógica do depoimento da testemunha é imbatível: embora não se recorde deste testamento em concreto, garante que segue sempre o mesmo formalismo, sendo o primeiro passo tentar aperceber-se da capacidade do testador para o acto. E se fez o testamento foi porque nada na conversa nem no comportamento do testador o fez suspeitar de que o mesmo não estivesse totalmente capaz de lhe transmitir de forma livre e esclarecida a sua vontade.

A única forma de abalar o peso probatório deste depoimento seria minando a credibilidade da testemunha. O que não foi feito, nem sequer tentado.

E não é o facto de ter sido diagnosticada ao testador a doença de Alzheimer 2 anos e 8 meses antes da data do testamento, que nos deve levar a concluir que ele já não estava em condições de emitir a sua vontade de forma livre e esclarecida. Mesmo sem ter sido produzida prova pericial sobre este tema, podemos assentar em que a doença de Alzheimer é uma doença de progressão gradual de perda das capacidades cognitivas. Mas sabemos que o testador estava medicado contra ela, pelo neurologista que o seguia há vários anos, e sabemos que o Notário que fez o testamento lhe fez as perguntas habituais para aferir da sua capacidade de testar, e das respostas que recebeu concluiu que nada impedia a realização do testamento. Só podemos concluir daqui que na data em que fez o testamento, o testador estava num estádio da doença em que ainda tinha as suas capacidades de saber o que queria e de o transmitir a terceiros intacta.

Diga-se ainda que o facto de G. J. não ter assinado o testamento não fortalece a tese do recorrente. O testador podia não conseguir assinar devido aos efeitos da doença de Parkinson, que se manifesta em diminuição motora, mas não de perda de faculdades cognitivas. [...]

E em conclusão, consideramos que não se vislumbra qualquer erro na decisão da matéria de facto. A qual confirmamos."

[MTS]



25/01/2023

Jurisprudência 2022 (107)


Reg. 650/2012;
sucessão; lei aplicável


1. O sumário de RE 30/6/2022 (1119/21.0T8LLE-A.E1) é o seguinte:

I.- O Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4-07-2012, atribui, como regra geral, à lei da residência habitual do de cujus à data do óbito a competência para regular a sua sucessão.

II.- Mas o falecido pode escolher a lei da sua nacionalidade, mesmo que tenha lavrado testamento antes da entrada em vigor do Regulamento, nos termos do disposto no artigo 83.º/4.

III.- Se o de cujus escolheu a lei de Grenada como lei da nacionalidade a aplicar e, após a data da celebração do testamento, contraiu matrimónio, por aplicação do artigo 13.º da Lei de Testamentos, Capítulo 340 das Leis de Grenada, as disposições testamentárias são revogadas, incluindo a que escolheu a lei da nacionalidade para regular a sua sucessão.

IV.- O que implica o ressurgir da lei geral a que alude o artigo 21.º/1, do Regulamento (UE) 650/2012, sendo, por isso, competente para regular a sucessão a lei portuguesa, porque lei da residência habitual no momento do óbito.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"2.- A interpretação do testamento, à luz do Regulamento (EU) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4-07-2012, da Lei de Testamentos de Grenada e do Direito Sucessório Português.

A questão a dirimir resume-se nestes termos:

- (…) tinha nacionalidade de Grenada;
- Residia habitualmente em Portugal;
- Em 30 de novembro de 2011, lavrou testamento, em Faro, Portugal;
- Em 12 de dezembro de 2011 contraiu matrimónio com (…), em Portugal;
- Faleceu em 10 de novembro de 2020, na sua residência habitual, em Portugal.
 
No testamento referido dispôs o seguinte:

“Que revoga todos os seus testamentos feitos no estrangeiro e que esta disposição lhe é permitida pela lei pessoal”.
 
Na data do óbito já se encontrava em vigor o Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos atos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu.

No seu artigo 21.º dispõe esta lei da União Europeia que: Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao conjunto da sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha a residência habitual no momento do óbito.

Mas, o artigo 22.º dispõe: 1. Uma pessoa pode escolher como lei para regular toda a sua sucessão a lei do Estado de que é nacional no momento em que faz a escolha ou no momento do óbito.

Ora, apesar de residir habitualmente em Portugal, a falecida escolheu para regular a sua sucessão testamentária a lei da sua nacionalidade, ou seja, Grenada.

Com efeito, se o de cujus escolheu para revogar os testamentos feitos anteriormente a lei da sua nacionalidade, é evidente que também nesse ato escolheu para regular a sua sucessão testamentária a lei da sua nacionalidade, como manifestação da professio iuris, ou seja, da autonomia da vontade no direito internacional privado.

Acompanhamos neste entendimento Helena Mota in A Autonomia Conflitual e o Reenvio no Âmbito do Regulamento (UE) n.º 650/2012 de PE e do Conselho, FDUP, janeiro de 2014, disponível on-line, onde realça que “(…) o legislador comunitário, mais do que tentar restringir a liberdade contratual entendeu que a professio iuris serve (ainda) nesta sede como corretor dessa putativa limitação ao permitir-lhe que, no momento em que faz a disposição por morte, escolha a própria lex sucessionis; será até normal que o faça sabendo que a escolha desta lei, nos termos do artigo 22.º, n.º 2, deve revestir a forma de uma disposição por morte ou resultar, tacitamente, dos termos desta disposição. Não será crível que o de cujus, ao fazer, por hipótese um testamento e tendo a preocupação de escolher a lei aplicável à sua validade material, também não o acoste à lei sucessória que também pode escolher nesse mesmo momento”.

É o caso dos autos.

Uma interpretação que concluísse pelo afastamento da lei da nacionalidade a todas as cláusulas do testamento apenas se poderia estribar numa declaração testamentária inequívoca de afastamento dessa lei.

Ora, no caso presente, tal declaração não foi contemplada, o que se consagrou foi o contrário.

Logo, ao testamento é aplicável a lei de Grenada, tendo a falecida afastado a regra geral prevista no artigo 21.º do Regulamento, o que este veio a permitir pelo artigo 83.º/4.

Aqui chegados, importa agora aplicar a lei de Grenada.

Não contestam os interessados que os tribunais portugueses são os competentes para decidir a relação material controvertida (artigo 4.º do Regulamento) e que a lei de Grenada permite a revogação dos testamentos anteriores, por nova declaração testamentária, o que implica a validade da referida declaração.

Bem como que o Regulamento, no citado artigo 83.º/4, permite a escolha da lei da nacionalidade para regular a sucessão, quanto aos testamentos efetuados antes de 17-08-2015, data da sua entrada em vigor.

Também se mostra incontestado que a lei de Grenada manda revogar o testamento que seja lavrado antes do casamento (artigo 13.º da Lei de Testamentos, Capítulo 340 das Leis de Grenada), pelo que o casamento celebrado entre a falecida e o interessado (…), em 10-11-2020 [sic], teve o efeito de revogar o testamento celebrado em 12-12-2011 [sic].

De onde se conclui que (…) faleceu sem testamento, pelo que é ineficaz a sua declaração de vontade de que escolhia a lei pessoal para regular a sua sucessão, o que tem como consequência o reenvio, pela Lei de Grenada, da competência à lei do país da sua residência habitual para regular a sua sucessão por morte.

Com efeito, falecendo sem disposição de última vontade, a lei aplicável à sucessão é a portuguesa, onde residia habitualmente à data do óbito, por ressurgimento da regra geral do artigo 21.º/1, do Regulamento 650/2012.

Porque seguiu o mesmo raciocínio lógico-dedutivo, à mesma conclusão chegou o parecer que o recorrente juntou aos autos, onde se analisa o caso em apreço."

[MTS]

24/01/2023

Jurisprudência 2022 (106)


Interesse processual


1. O sumário de RG 28/4/2022 (226/19.3T8VFL.G1) é o seguinte:

A circunstância de o cidadão, nos termos do disposto no artigo 116.º do Código do Registo Predial, ter a possibilidade de se socorrer da escritura de justificação notarial ou do processo de justificação, não é sinónimo de que ele está, sem mais, impedido de em primeira linha recorrer a juízo.

É constitutiva a ação declarativa em que os autores sustentam que cada um deles adquiriu por usucapião o direito de propriedade de uma concreta "parcela" de um imóvel que se encontra registado na sua totalidade como pertencendo em ¼ a autores e réus, dado que a procedência dos seus pedidos origina uma alteração do estado jurídico da coisa e da respetiva descrição predial; onde hoje há apenas um imóvel passará a haver três, por força da desanexação de duas partes do primitivo bem.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"II
1.º

Na fundamentação da sua decisão a Meritíssima Juiz deixou dito, nomeadamente, que:

«Analisando os pedidos e a causa de pedir alegados pelos autores em momento algum alegam que o direito que pretendem ver declarado está a ser violado ou está na iminência de ser violado pelos réus, concluindo-se assim pela inexistência de uma causa de pedir que integre o pedido de condenação dos réus.

Na verdade, o que os autores pretendem é que o Tribunal declare que os mesmos são titulares de um direito de propriedade único e exclusivo sobre uma determinada parcela de terreno que identificam e delimitam, parcela que alegadamente adquiriram por usucapião.

Assim, dúvidas inexistem que em causa está uma ação de simples apreciação.

É precisamente nas ações de simples apreciação que o interesse processual assume maior relevância. Assim, considerando que, as ações de simples apreciação destinam-se a obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto [cfr. artigo 10.º n.º 3 a) do Código de Processo Civil], tem-se sido entendimento pacífico e constante que não basta qualquer situação subjetiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, para que haja interesse processual na ação e, portanto, tem-se defendido que, "nas ações de simples apreciação, a incerteza contra a qual o autor pretende reagir deve ser objetiva e grave." (…)

In casu, não estão alegados factos que integrem o interesse em agir dos autores tal como definido supra. Em parte alguma da petição inicial, os autores alegaram factos consubstanciadores desta incerteza objetiva e grave da existência do direito de que se arrogam titulares.

Ademais, sempre se diga que dos factos alegados pelos autores não se assaca a existência de um verdadeiro litígio nem a verificação de um qualquer impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial, razão pela qual, devem os autores, recorrer aos meio extrajudiciais para obterem o título de aquisição do direito de que se arrogam únicos e exclusivos proprietários.

Face ao exposto, é manifesta a falta do interesse em agir por parte dos autores.» [...]

3.º

À luz da causa de pedir apresentada pelos autores, temos um imóvel que se encontra registado como pertencendo em compropriedade a autores e réus, cabendo a cada um deles uma quota de ¼.

Mas, os autores dizem-nos que isso, quanto a eles, não corresponde à realidade, dado que, aquando das partilhas realizadas por óbito de E. N. e de sua mulher M. G., a quem o imóvel pertencia no seu todo, este foi dividido de facto, pelos seus herdeiros, em quatro partes. Estes herdeiros, "após dividirem e demarcarem as partes que lhes ficaram a pertencer, (…) de acordo com a quota-parte de cada um, o que aconteceu logo após o falecimento de (…) E. N. (…) e M. G., cujos decessos ocorreram, como se disse e respetivamente, em 09/05/1959 e 08/01/1965, entraram na posse, cada um, da sua parte, guardando-a, lavrando-a, cultivando-a, limpando-a, plantando na mesma árvores de fruto e vinha, na mesma semeando outros produtos agrícolas, que recolhiam e consumiam em proveito próprio, vendendo os excedentes, cujos preços das vendas, revertiam a seu favor, que gastavam em tudo o que necessitavam, pagando, inclusivamente, o imposto predial ao Estado, após o inscreverem cada um na matriz em seu nome na proporção de ¼" (7). "Posses essas que sempre foram de boa-fé, louvadas na divisão e partilha entre irmãos, pacifica, seja, sem o mínimo de violência, pública, seja, à vista uns dos outros e sem jamais qualquer um deles se ter oposto, quer expressa, quer tacitamente àquelas divisões, fabricos e granjeios, à vista de todos os vizinhos, designadamente dos confinantes, não deduzindo estes também a menor oposição, pois que nenhum prejuízo sofreram, nem poderiam sofrer com tais divisões, factos possessórios ditos, que praticados e exercidos foram, desde os decessos de seus pais, em continuação dos mesmos, seja, há mais de 50 e 60 anos, o que tudo fora feito ininterruptamente, quer, por si, quer por seus herdeiros ou transmissários que lhes vieram a suceder e sempre todos eles, de boa-fé e conscientes de que usavam e possuíam, coisa própria, sem prejudicarem fosse quem fosse." (---)

Em novembro de 2002 o autor adquiriu uma dessas "parcelas" e "logo após a compra, deram continuidade aos mesmos factos, de seus antecessores, lavrando a parcela, agricultando-a, fabricando as videiras e recolhendo as uvas que transformavam em vinho, plantando árvores de fruto, colhendo-lhe os frutos que consumiam em seu proveito, plantando legumes e hortaliças e tudo o mais que essa parcela produz, tudo consumindo em seu único proveito, inscrevendo-a na matriz em seu nome como 1/4, pagando o respetivo imposto, seja, praticando na mesma todos os atos e factos de posse, como fazem os verdadeiros proprietários, como já o faziam os seus antecessores, e dentro do mesmo circunstancialismo em que eles o faziam" (---).

E em junho de 2002 a autora comprou uma outra "parcela" e "logo após a compra entrou na posse daquela parcela, nela praticando os atos de posse que já vinham sendo praticados pelos anteriores proprietários e transmitentes e dentro do mesmo circunstancialismo, seja pelo E. S. e mulher M. G., de todo o prédio, pelos seus sucessores, cada um, na sua parcela e pelos subsequentes proprietários, conforme supra artigos 4º, 16º, 17º, 29º, 31º, 32º e 34º, plantando no mesmo, além doutras árvores, oliveiras." (---)

Assim, os autores sustentam que cada um deles é proprietário de uma concreta "parcela" do imóvel e que não são comproprietários, em ¼, da totalidade do prédio, tendo aqueles seus direitos de propriedade sido adquiridos por usucapião.

Neste cenário, consideram os autores que "se verifica uma necessidade justificada, razoável e fundada da propositura da presente ação" (---).

Ora, "o interesse processual (ou interesse em agir) pode ser definido como o interesse da parte ativa em obter a tutela jurisdicional" (Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, pág. 366.). E «a utilidade da tutela pode respeitar à utilidade do resultado a obter ("utilitá sostanziale"); nesta situação, o interesse processual só falta se o resultado a obter for, em abstrato, inútil.» (Castro Mendes e Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. I, 2022, pág. 367.) "É o interesse em utilizar a arma judiciária - em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio" (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 79 e 80.). "Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a ação - mas não mais do que isso." (Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, pág. 181.)

É evidente a utilidade e razoabilidade do recurso a juízo por parte dos autores, atendendo ao que alegam e pedem. E sendo assim, à partida, têm interesse em agir.

Contudo, poderá dizer-se, como disse a Meritíssima Juiz, que não há "qualquer impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial, razão pela qual, devem os autores, recorrer aos meio extrajudiciais para obterem o título de aquisição do direito de que se arrogam únicos e exclusivos proprietários", deixando implícita a ideia de que existindo esta alternativa não é possível optar-se, desde logo, pela via judicial.

Neste ponto, atenta a particularidade de nesta lide os dois novos prédios, alegadamente adquiridos por usucapião, serem como que retirados ou destacados de um outro que está registado como sendo um só e pertencendo em compropriedade a todas as partes, não se tem como inquestionável a inexistência de "impedimento à utilização pelos autores da escritura pública de justificação notarial ou da ação de justificação prevista no código de registo predial". Na verdade, do artigo 116.º e seguintes do Código do Registo Predial parece resultar que, quando já "exista inscrição de aquisição", é em relação a todo o imóvel inscrito, e não uma ou mais partes dele, que se reporta o "novo trato sucessivo" fundado na usucapião de que aí se fala.

De qualquer modo, dentro da linha do decidido no Ac. Rel. Lisboa de 5-1-2021 no Proc. 10486/18.1T8LRS.L1-7 (---) e tendo em mente que "a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (…)" (---), julgamos que a circunstância de o cidadão ter a possibilidade de se socorrer da escritura de justificação notarial ou do processo de justificação, a que se refere o artigo 116.º do Código do Registo Predial, não é sinónimo de que ele está, sem mais, impedido de em primeira linha recorrer a juízo. Importa ter presente que, por um lado, pela via judicial se obtém maior proteção e segurança jurídica e que, com o trânsito em julgado da decisão, a questão fica definitivamente resolvida. E, por outro, deve ter-se em consideração que a escolha em primeiro lugar da via extrajudicial não significa que fica garantido que não haverá a necessidade de uma intervenção dos tribunais; que se assegura que os tribunais não terão de se ocupar com esta matéria. Veja-se o que acontecerá no caso de surgir uma impugnação da escritura de justificação notarial ou um recurso de uma decisão do notário desfavorável à pretensão do cidadão, designadamente por entender que estes mecanismos não são adequados ao caso concreto que lhe é apresentado (---).

Aqui chegados, conclui-se que os autores têm interesse em agir."

[MTS]