"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/09/2023

Jurisprudência 2023 (20)


Princípio do contraditório;
audição prévia; desnecessidade


1. O sumário de RE 25/1/2023 (2444/20.2T8STB.E1) é o seguinte:

I - O princípio do contraditório tem evoluído para uma visão mais ampla, abrangendo o direito de influenciar a decisão, desde há muito sufragada pelo Tribunal Constitucional, e observada em inúmeros arestos dos tribunais superiores, mesmo quanto a questão de direito, quando a decisão seja baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

II – Pode, porém, ser afastado relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância e consequentemente sobre a decisão do litígio, ou seja, quando se verifique a “manifesta desnecessidade” da sua observância.

III – O caso em presença, é exemplo óbvio da dita “manifesta desnecessidade”, porque a questão que motivou a audição prévia é a mesma que justificou a decisão: a preclusão do direito que a Autora pretende ver reconhecido por via da presente ação, por não ter sido invocado anteriormente, quando devia ter sido convocado, pelo que, não se verifica a invocada violação do princípio do contraditório, não configurando decisão-surpresa o facto de o tribunal ter considerado na decisão recorrida que a preclusão se verificara, mas em momento posterior àquele que havia referido na notificação.

IV – Tendo sido reconhecido o direito de propriedade sobre um imóvel e decretada a sua peticionada entrega, existe caso julgado relativamente a este segmento da decisão proferida, confirmada pelo acórdão desta Relação que julgou improcedente a pretensão das RR. de se oporem à restituição do prédio dos AA.

V – Acresce que, quanto à decisão da decretada entrega, não pode igualmente a Autora vir agora esgrimir com a existência de um contrato de arrendamento escrito, porque a tal obsta, não o caso julgado, que não abrange factos que não hajam sido alegados num processo anterior, mas os efeitos da preclusão, que pode atuar independentemente do caso julgado e, consequentemente, também independentemente da verificação daquela tríplice identidade.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Na espécie, verificamos que na petição inicial com que introduziu o feito em juízo, a Autora pediu que seja declarada a existência, validade, e vigência, do contrato de arrendamento rural do prédio misto designado Quinta ..., que identificou, e que seja declarado que ao referido contrato, se aplica o regime jurídico do arrendamento rural.

Por seu turno os Réus, na respetiva contestação, invocaram a exceção de caso julgado, aduzindo que, no âmbito do processo n.º 134/12.7TBSTB, a ora Autora, ali Ré, invocou a existência de um arrendamento verbal, que não foi reconhecido.

Em 18.02.2022, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:

“Ao elaborar o despacho saneador e na correlação dos argumentos apresentados, com o respetivo enquadramento jurídico, verifico que existe exceção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa (artº 576º, nº 2 do CPC) e que consiste no facto de o argumento da A. de que só posteriormente ao trânsito em julgado da decisão proferida no pº que correu termos no Juízo Central Cível – J2, sob o n º 1348/12.7, é que teve conhecimento da existência do contrato de arrendamento escrito que apresentou, só poder ser invocado em sede de recurso de revisão, nos termos do disposto no artº 696º, al. c) do CPC, a ser apresentado junto do processo onde foi proferida a decisão já transitada em julgado.

É que uma exceção com virtualidade a obstar ao efeito de uma decisão transitada em julgado, não pode ser conhecida fora do processo onde tal decisão foi exarada.

Mas as partes não tiveram oportunidade de se pronunciar a este propósito, pelo que é necessário dar-lhes a oportunidade de o fazerem.”

Diz a Recorrente que o Tribunal a quo apenas deu a oportunidade de as partes se pronunciarem a este respeito.

Porém, tal afirmação não corresponde ao que os autos espelham, só por desatenção se compreendendo a arguição da violação do princípio do contraditório.

Efetivamente, na primeira data designada para a audiência prévia, que teve lugar no dia 21.12.2021, na presença dos Ilustres mandatários de ambas as partes, a Senhora Juíza proferiu o seguinte despacho:

“Sem prejuízo de entendimento diverso face à junção de certidão dos documentos para que remetem os factos provados da decisão proferida no processo nº 1348/12.7TBSTB, por que se irá diligenciar, entende-se não se verificar nos presentes autos a exceção do caso julgado invocada, quer na sua vertente negativa quer positiva.

Equaciona-se, contudo, ser possível verificar-se a exceção da preclusão do direito à invocação do contrato de arrendamento, pela sua não dedução como matéria de exceção na contestação apresentada no referido processo, perspetivando-se duas possibilidades nesta sede: ou o conhecimento imediato da exceção, ou a necessidade de produção de prova a tal propósito em ordem a apurar a superveniência do conhecimento pela A. do contrato de arrendamento vertido nos documentos junto a fls. 351 a 355 e bem assim do momento em que este veio à sua posse.

Dando desde já a possibilidade aos Ilustres Mandatários, designadamente à Ilustre Mandatária da A., para se pronunciar a este propósito”.

Portanto, na audiência prévia, as partes – e concretamente a Ilustre Mandatária da Autora, ora Recorrente –, foram notificadas não só de que o tribunal entendia não se verificar a arguida exceção de caso julgado, como equacionava a possibilidade de verificação da preclusão do direito da Autora à invocação do contrato de arrendamento, caso a julgadora viesse a verificar que a mesma não tinha efetuado tal alegação na contestação apresentada no referido processo.

Ora, pese embora a decisão se tenha reportado à preclusão do direito, por referência a momento processual diverso do mencionado na notificação, considerando agora o tribunal a quo que o contrato cuja existência se pretende ver declarada por via desta ação, devia ter sido invocado na oposição à execução, e não na contestação da ação, como referira na notificação efetuada na audiência prévia, a verdade é que as partes, e concretamente a Autora, foram notificadas para se pronunciarem sobre a possibilidade de o tribunal decidir que o direito da Autora a invocar o contrato de arrendamento, mais precisamente, atento o pedido formulado, a ver reconhecida a sua existência, se encontrava precludido por não ter sido invocado em ação anterior.

Como é sabido, o princípio do contraditório «é hoje entendido como a garantia dada à parte de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussão no objecto da causa» [Cfr. PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, ALMEDINA, 2014, pág. 31]

Dando nota da evolução do princípio do contraditório no sentido desta visão mais ampla, abrangendo o direito de influenciar a decisão, como desde há muito vem sendo sufragado pelo Tribunal Constitucional, LEBRE DE FREITAS [In Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, COIMBRA EDITORA, págs. 96 e 97.salienta que à conceção tradicional do contraditório enquanto garantia do desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações das partes, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, «entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo fundamental do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia para passar a ser a influência no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo».

Esta visão ampla do princípio do contraditório tem sido acolhida e observada em inúmeros arestos dos tribunais superiores [Cfr. a título meramente exemplificativo, os Acórdãos deste Tribunal da Relação de 28.03.2019, processo n.º 208/10.0TBRDD-B.E1, de 02.05.2019, processo n.º 532/16.9T8ABT.E1, e o Acórdão TRP de 02.12.2019, processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1, com comentário no Blog do IPPC, em 19.04.2019, que, tal como o primeiro dos indicados arestos deste Tribunal, segue de perto o Acórdão do TRG de 19.04.2018, abaixo identificado.], mesmo quanto a questão de direito, quando a decisão seja baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

Acontece que, na situação presente, o tribunal deu às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a hipótese, por si colocada, de considerar que havia preclusão do direito de invocação do contrato de arrendamento porque o mesmo devia ter sido convocado aquando da contestação da ação. Como se afigura evidente, a determinação desta notificação para que as partes, e concretamente a autora, se pronunciassem sobre a possível preclusão decorrente da não invocação da existência do contrato de arrendamento em momento anterior do litígio que as mesmas têm mantido a respeito do imóvel em causa, tornou manifestamente desnecessária uma nova notificação, desta feita para se pronunciarem sobre a verificação da preclusão em virtude de a Autora não ter invocado a existência do contrato aquando da oposição à execução.

Com efeito, sendo pacífico que a lei impõe que a desnecessidade da audição seja manifesta, indicando portanto, que o princípio do contraditório deve ser cumprido mesmo quando possa apresentar-se aparentemente como desnecessária a audição, só podendo ser afastado relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância e consequentemente sobre a decisão do litígio, como se afirmou no Acórdão deste Tribunal da Relação de 28.03.2019 [Proferido no processo n.º 208/10.0TBRDD-B.E1, seguindo o entendimento já vertido no citado Acórdão do TRG de 19.04.2018, proferido no processo n.º 533/04.0TMBRG-K.G1, que se louvou na doutrina expressa por LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 1999, págs. 10, 33 e 34.] impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir tais questões em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que se não as suscitaram e não cuidaram em as discutir no processo, sibi imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa”.

O caso em presença é exemplo óbvio da dita “manifesta desnecessidade”. A questão que motivou a audição prévia é a mesma que justificou a decisão: a preclusão do direito que a Autora pretende ver reconhecido por via da presente ação, por não ter sido invocado anteriormente, quando devia ter sido convocado.

Estamos, portanto, perante uma situação em que uma nova audição se configuraria como um verdadeiro ato inútil, não consentido por lei (artigo 130.º do CPC).

Portanto, sendo a preclusão o fundamento da notificação efetuada, e tendo a Autora sido notificada para se pronunciar a tal respeito, não se verifica a invocada violação do princípio do contraditório, não configurando decisão-surpresa o facto de o tribunal ter considerado na decisão recorrida que a preclusão se verificara, mas em momento posterior àquele que havia referido na notificação."

[MTS]


28/09/2023

Jurisprudência 2023 (19)


Direito ao descanso;
providência cautelar; periculum in mora


1. O sumário de RG 26/1/2023 (2323/22.9T8VCT.G1) é o seguinte:

I – São requisitos (de fundo e de forma) necessários ao decretamento da providência cautelar não especificada:

a) - Probabilidade séria da existência de um direito (aparência do direito - «fumus bonis juris»).
b) - Fundado receio de que a demora natural na solução do litígio causará uma lesão grave e dificilmente reparável (do direito que se pretende fazer valer em ação pendente ou a instaurar - «periculum in mora»).
c) - Desde que o prejuízo resultante de um tal recurso não exceda consideravelmente o dano que, através da providência, se pretenda evitar.
d) - E não cabimento da possibilidade de recorrer a qualquer outro tipo de procedimento cautelar nominado.

II – Visando a providência cautelar evitar a lesão de um direito, esta não pode ser decretada se essa lesão já se tiver consumado, salvo se essa lesão fundamentar o receio de ocorrência de outras lesões idênticas e futuras, a produção de lesões de natureza continuada ou repetida ou o agravamento do dano (como seja em caso de lesões ao direito de personalidade resultantes de actividades ruidosas e perturbadoras do direito ao descanso), pois nesse caso tais lesões são merecedoras de tutela cautelar.

III – Estando em causa uma obrigação de prestação de facto infungível com uma vertente positiva – qual seja, que os requeridos recolham e guardem, designadamente na sua casa de habitação, os seus dois cães, entre as 21h00m e as 7h00m, por forma a que não prejudiquem ou perturbem, com o seu latido, o descanso e o sono dos requerentes –, tal constitui uma daquelas situações que justifica plenamente a fixação de uma sanção pecuniária compulsória (art. 829º-A do CC e art. 365º, n.º 2, do CPC).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Considerando que as [...] asserções aduzidas pelos recorrentes estão, direta ou indiretamente, conexionadas com a inverificação dos requisitos do procedimento cautelar comum, a elas nos pronunciaremos conjuntamente.

Sendo assim, e a fim de nos atermos/restringirmos ao circunstancialismo concreto, importa ter presente a facticidade sumariamente apurada:"

- Os requerentes habitam o prédio urbano situado na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., no qual residem com os seus dois filhos (EE, de 9 anos de idade, e ..., de 4 anos) e onde, diariamente, fazem as suas refeições, de onde partem para os seus locais de trabalho, para onde regressam no final do dia de trabalho, onde estudam, onde dormem e descansam, onde recebem familiares e amigos, onde recebem a sua correspondência (pontos 1 e 2 dos factos provados);

- Contígua à casa dos requerentes, situa-se a casa do requeridos, constituída por três andares, tendo a sua “frente”, tal como um jardim frontal, de frente para a Rua ..., sendo que este jardim tem uma cota superior relativamente ao solo onde está edificado o prédio urbano dos requerentes (pontos 3 e 5 dos factos provados);

- A casa dos requerentes dista cerca de 5,00 m do muro que separa a sua propriedade da dos requeridos, distando cerca 4,00 m a casa dos requeridos ao referido muro (pontos 9 e 10 dos factos provados);

Os requeridos são proprietários de dois cães, adultos, de grande porte, de raça “Serra da Estrela”, que não saem da propriedade dos requeridos, aí permanecendo de dia e de noite (pontos 11 e 12 dos factos provados);

- Em data não concretamente apurada do ano de 2020, os referidos cães passaram a ladrar diariamente, de forma persistente, num volume muito alto e, por vezes, em uníssono, o que sucede quando os requeridos chegam a casa, ou seja, pelas 18h30m/19h00m, até às 6h00m/6h30m da madrugada (pontos 13 e 14 dos factos provados); [...]

- Por outro lado, o ladrar diário dos dois cães, no horário de adormecer dos dois filhos dos requerentes, agita e perturba o mais velho, impedindo-o de adormecer quando se prepara para o fazer, deixando-o agitado (ponto 19 dos factos provados); [...]

- Os cães dos requeridos apenas ladram quando vêem alguém estranho, quando existem barulhos estranhos, quando alguém bate ao portão, quando estão na presença de gatos no quintal ou no caminho, ou quando são provocados por alguém (ponto 29 dos factos provados);

- A partir do mês de Junho de 2021, os requeridos passaram a guardar os cães durante a noite, entre as 23h00m e as 7h00m, pelo que durante esse período os animais não ladram (ponto 31 dos factos provados).

Na apelação interposta, quanto ao primeiro requisito do procedimento cautelar decretado, depois de afirmarem não contestarem a existência do direito ao repouso por parte dos requerentes, contrapõem os recorrentes afirmando não se mostrar provado, nem suficientemente indiciado nos autos, que existe da sua parte a violação do direito por aqueles alegada, não se cumprindo assim este requisito para ser decretada a providência requerida.

Ora, face à abundante matéria de facto sumariamente provada não existe dúvida que tais direitos dos apelados foram violados pela conduta dos apelantes.

Com efeito, basta ter presente os enumerados pontos 13 a 21, 24 a 26 e 28 dos factos provados para desde logo se aquilatar da violação e afetação do direito à saúde, ao repouso, descanso e tranquilidade dos requerentes, em particular da requerente mulher, atenta a sua especial condição de saúde (mercê do aneurisma cerebral sofrido em 2018, que a deixou com graves sequelas e lhe impõem uma necessidade acrescida de repouso), bem como dos filhos menores do casal, na medida em que estes revelam sinais de agitação e de perturbação, sobretudo no momento de se deitarem.

Mais resulta (sumariamente) demonstrada a repercussão (sintomatológica) na saúde da requerente mulher de tais barulhos/ruídos provocados pelo latir dos cães dos requeridos, obrigando-a inclusivamente a recorrer a ajuda médica e medicamentosa.

Por conseguinte, é de concluir pela conexão causal entre o ladrar dos cães dos vizinhos e as dificuldades de dormir que a requerente mulher e os filhos patenteiam.

Parafraseando Sandra Passinhas [Cfr. Sandra Passinhas - Os animais e o regime português da propriedade horizontal, Revista da Ordem dos Advogados (ROA] diremos que o poder-utilizar de um entra em colisão com o respeito pelo poder-ser do outro, na situação em que os requeridos têm na sua propriedade cães que ladram persistentemente no período do entardecer (bem como, antes de serem recolhidos a partir das 23h, pela noite dentro), impedindo ou dificultando o repouso, o descanso e o sono dos requerentes. Na apreciação e julgamento de tais efeitos nos lesados, como se disse, o critério que o julgador deve seguir não é do tipo de pessoa médio, cidadão normal e comum, mas antes o de cada pessoa em concreto. Mesmo que o ladrar de um cão seja suportável por uma pessoa normal, mas habitando no prédio vizinho como é o caso uma pessoa que sofreu um aneurisma cerebral, que lhe deixou várias sequelas e limitações, tendo uma necessidade de repouso acrescido, como acontece com a requerente mulher, a quem o ladrar causa prejuízos intoleráveis, então o tribunal deve agir de acordo com esta concreta ofensa à personalidade do vizinho. Deve prevalecer o direito de personalidade dos requerentes sobre o direito de propriedade, de carácter patrimonial, dos requeridos detentores dos animais, devendo por isso o conflito ser decidido a favor do direito de personalidade.

E se é certo que a vivência nos meios rurais impõe que nas relações de vizinhança seja de tolerar os ruídos provocados pelos animais domésticos, e a suportar algumas contrariedades e incomodidades daí advenientes, certo é também que essa tolerância e limitação deverá apenas ocorrer na medida adequada e proporcionada à satisfação dos interesses tutelados pelo direito dominante, para que todos possam continuar a viver em sociedade no ambiente rural que escolheram [Cfr. Ac. do STJ de 3/10/2019 (relatora Rosa Tching), in www.dgsi.pt.]. Essa tolerância deixa de se impor quando, como na situação dos autos, é elevado o atentado ao descanso e sossego dos recorridos.

De facto, quando esses incómodos ultrapassam o grau de razoabilidade e de tolerabilidade – como bem explicitou o Mm.º Juiz “a quo”, quando os latidos são persistentes e, pela sua intensidade, impeçam os requerentes de descansar e de dormir, como é o caso –, fica a presente providência plenamente justificada.

De todo o exposto, resulta à saciedade, a violação ilícita por parte dos apelantes, do direito à integridade física e moral, à saúde e ao repouso dos requerentes, isto é, a violação do seu direito de personalidade.

Donde, ao contrário do propugnado pelos recorrentes, é de secundar a verificação do requisito da probabilidade séria da existência de um direito (aparência do direito - «fumus bonis juris»).

Dizem também os recorrentes não se verificar a existência do “periculum in mora”, posto que se entendessem que havia o perigo de a situação se agravar se não fosse resolvida rapidamente, deveriam instaurar este procedimento cautelar logo que terminaram com as diligências que efetuaram, o que não aconteceu por vontade e decisão deles.

Vejamos.

Para que o recurso à tutela cautelar possa ser considerado justificado exige-se que o periculum in mora seja actual e iminente.

Deste modo, a providência cautelar deve ser indeferida, porque injustificada, nos casos em que o requerente se tenha conformado com a situação de perigo que ameaça afetar o seu direito, assumindo uma conduta inerte e passiva perante esse facto.

Ou seja, visando a providência cautelar evitar a lesão de um direito, esta não pode ser decretada, porque injustificada, se essa lesão já se tiver consumado (ainda que grave e de difícil reparação), salvo se essa lesão fundamentar o receio de ocorrência de outras lesões idênticas e futuras, a produção de lesões de natureza continuada ou repetida ou o agravamento do dano [Cfr. Marco Filipe Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, Almedina, 3.ª ed., 2017, p. 202/204 e 205.]. Nestes casos, as lesões que revistam carácter de continuidade ou de repetição são merecedoras do âmbito de protecção cautelar.

No mesmo sentido, sustenta Abrantes Geraldes [Cfr. António Abrantes Geraldes, Temas …, Vol. III, pp. 89/90.] que “não deixam de ser tuteladas situações em que o evento é anunciado por uma série de elementos de facto ou em que o evento danoso já verificado continua a produzir efeitos que se prolongam no tempo, agravando o estado de insatisfação”.

Estando, pois, “fora da proteção concedida pelo procedimento cautelar comum as lesões de direitos já inteiramente consumadas, ainda que se trate de lesões graves, mas já nada obsta a que, relativamente a lesões continuadas ou repetidas, seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição de actos lesivos , v.g em casos de lesões ao direito de personalidade resultantes de actividades ruidosas e perturbadoras do direito ao descanso (…)”. [...]

Para além do mais, “as lesões já verificadas não são inócuas. Elas servem ainda para dar maior seriedade e, assim, justificar a concessão de uma providência destinada a evitar a repetição ou a persistência de situações lesivas, admitindo o deferimento de uma providência cautelar se e enquanto subsistir uma situação de perigo de ocorrência de novos danos ou de agravamento dos danos entretanto ocorridos”.

Como tivemos já oportunidade de salientar, em consequência dos ruídos e barulhos persistentes e intensos emitidos pelos cães dos requeridos, os requerentes veem afetado o seu sossego, tranquilidade e descanso, em especial no período do entardecer [---].

Trata-se de uma situação de violação efectiva e actual do direito ao repouso, descanso e tranquilidade dos requerentes e do seu agregado familiar que, a manter-se, lesa a sua saúde física e psicológica dado que, em termos de experiência comum, é sabido que a privação reiterada do repouso e o “stress” causado pelos ruídos de certa intensidade é susceptível de afectar seriamente o bem-estar físico e a saúde, designadamente no foro psicológico.

Existe, pois, no caso dos autos um dano imaterial evidente que, além de revestir especial gravidade por atentar contra os direitos de personalidade, se acumula e tende a agravar-se, pois que é contínuo e repetido, e que acarreta grave prejuízo aos requerentes e ao seu agregado familiar. [...]

Em suma, é de subscrever a afirmação explicitada na sentença recorrida no sentido de ser indiscutível que o comportamento dos requeridos, ao deixarem os dois cães, de grande porte, soltos, no quintal da sua propriedade, durante a noite – numa primeira fase toda a noite e a partir do mês de junho de 2021 até às 23 horas – levando-os a ladrar diária, persistente e ruidosamente, causa lesão grave e dificilmente reparável a tais direitos (periculum in mora).

Bem andou, por isso, a decisão recorrida ao julgar procedente a providência cautelar requerida, pelo que tal decisão tem de se manter, com a consequente improcedência, nessa parte, da apelação."

[MTS]


27/09/2023

Jurisprudência 2023 (18)


Ineptidão da petição inicial;
preclusão; efeitos*


I. O sumário de RG 26/1/2023 (2475/21.5T8GMR) é o seguinte:

1. Quando se pede a declaração da aquisição do direito de propriedade por usucapião, mas não se identifica a parcela de terreno cuja aquisição se pede, nomeadamente sem referir a área da dita parcela nem as confrontações da mesma, estamos perante um pedido ininteligível, que causa a ineptidão da petição inicial.

2. Esse vício é ao mesmo tempo uma nulidade de todo o processo e uma excepção dilatória, e deveria levar à absolvição do réu da instância (art. 278º,1,b CPC).

3. Porém, por força do art. 200º,2 CPC, proferida a sentença em primeira instância sem o Tribunal conhecer dessa excepção ou nulidade, fica precludida a possibilidade de dela conhecer posteriormente.

4. Não obstante, o vício de que a petição inicial padece mantém-se tão grave em sede de recurso como no início do processo, e é inultrapassável, não sendo possível que uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido dê origem a uma sentença que julgue esse mesmo pedido procedente. Resta, pois, por exclusão de parte, absolver o réu do pedido.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Não havendo qualquer controvérsia quanto aos factos provados e não provados, as questões que se colocam são puramente jurídicas.

A recorrente e autora pretende que o Tribunal declare que ela adquiriu “o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...52/..., melhor identificados nos artigos supra desta petição inicial a favor da A., de per si e na qualidade de Cabeça de Casal por usucapião, nomeadamente do terreno onde está implementada a sua habitação”.

Se formos olhar para a petição inicial em busca de uma definição completa da parcela de terreno que a autora pretende adquirir, apenas vemos a seguinte referência: “o referido BB, já casado em 1993, solicitou à Ré sua mãe que o deixasse construir uma casa n... canto do campo que havia sido adquirido denominado Campo ..., sito no lugar ..., actualmente na rua ..., da freguesia ..., do concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...52/..., conforme flui da cópia que se junta e se dá por reproduzida para todos os efeitos legais – cfr. doc. nº ...”. E mais adiante: “durante vários anos foi a A., e o seu falecido marido efectuando obras e melhorando quer a casa, quer todo o logradouro á volta do mesmo, fazendo benfeitorias, que aumentaram após a morte do marido, tendo efectuado melhorias muito significativas no mesmo, no qual despendeu várias dezenas de milhares de euros uma vez que pretendia e pretende habitar na sua habitação até ao final dos seus dias”.

O Tribunal recorrido apercebeu-se do problema, quando escreveu: “pretende a autora obter a condenação judicial da Ré a ver declarada a aquisição a seu favor, por usucapião, de uma parcela de terreno, de dimensões e características não especificadas, que seria parte integrante de um prédio descrito na CRP ..., sob o nº ...52/..., inscrito em nome da Ré”. Só que seguiu em frente, apreciando a questão da usucapião.

Pensamos porém que não deveria ter seguido.

O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição (art. 3º,1 CPC).

O princípio do dispositivo é estruturante do processo civil. Escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in CPC anotado, anotação ao art. 3º, que “quanto ao princípio do dispositivo, podendo as partes dispor dos direitos de natureza privada, sobre as mesmas recai o ónus de promover e de impulsionar os instrumentos de natureza processual destinados a assegurar a respectiva tutela. (…) O mesmo princípio estende-se à configuração do objecto do processo, através da formulação do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamentação à acção ou a defesa (art. 5º,1). A formulação do pedido (art. 552º,1,e), que vai determinar o objecto da instância e que circunscreve o âmbito da decisão final é uma necessidade que resulta, além do mais, da consagração plena do princípio do dispositivo, que faz recair sobre os interessados que recorrem às instâncias judiciais o ónus de conformação do objecto do processo (art. 3º), com repercussão nos limites da sentença (art. 609º,1). O pedido delimita os poderes do juiz, já que este não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”.

Recorrendo ao que escreve o primeiro dos autores citados, in Temas da Reforma do Processo Civil, 1997, fls. 105: “mas não basta concluir pela necessidade de formulação do pedido. A lei processual impõe também que o pedido seja formulado de modo claro e inteligível, que seja preciso e determinado. Compreende-se perfeitamente esta exigência legal, na medida em que se torna indispensável para assegurar à contraparte o exercício do direito de defesa e colocar o autor a coberto de decisões judiciais que, porventura, tenham um alcance ou sentido diferentes dos pretendidos. Sendo um elemento fundamental para definir o objecto do processo, deve apresentar características que o tornem inteligível, idóneo e determinado, conforme Castro Mendes refere na sua obra Direito Processual Civil, vol. II, pág. 290. A petição inicial será pois inepta, quando por meio dela não puder descobrir-se que tipo de providência o autor se propõe obter ou qual o efeito jurídico que pretende conseguir por via da acção (…)”.

Mais adiante, escreve o mesmo autor, quanto às características da petição quanto ao pedido: “(…) Precisão e determinação: a indeterminabilidade ou a ambiguidade do objecto do processo constituem uma falha tão grave quanto as referidas no ponto anterior (pedidos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros), devendo o autor expressar a sua vontade de forma que possa ser facilmente apreendida por terceiros de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto quando tiver de ser proferida a sentença. Será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstracto (cfr. A. Reis, ob cit, pág. 363, nota 1), como aquele que foi objecto do Acórdão da Relação de Évora, de 13-12-84, e que consistia em “proibir o réu de todo e qualquer acto ofensivo de interesses do autor”, ou quando se pretende a condenação na entrega de um prédio rústico ou urbano, sem qualquer identificação (não respeita esta regra a petição onde apenas se pede o reconhecimento da propriedade de uma parcela de terreno, sem indicar a sua área, sem delimitações ou outros elementos identificadores [...] ou quando se pede que o autor se abstenha de todo e qualquer acto ofensivo de interesses – cfr. Teixeira de Sousa, in As partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, pág. 122”).

Ora, no caso dos autos, estamos perante um pedido que padece exactamente desse mal: a pretensão da autora é que o Tribunal declare que ela adquiriu por usucapião uma determinada parcela de terreno. Mas de concreto apenas sabemos que essa parcela faz parte de um prédio descrito na CRP ..., sob o nº ...52/..., inscrito em nome da Ré. Nada mais sabemos: nem a sua área, nem as suas confrontações. Se o Juiz chegasse à sentença e entendesse dar razão à autora, que parcela exacta da superfície terrestre é que iria declarar que tinha sido adquirida por usucapião? Não sabemos, porque ela não está indicada. Quer o pedido, quer a causa de pedir, não contém essa precisão.

Claro que este exercício mental é puramente académico, pois como já vimos, também a causa de pedir sofre do mesmo mal, não estando identificada devidamente (nem sendo passível de identificação) a parcela exacta (com indicação da área e confrontações) que é objecto do pedido. Ainda podemos aceitar que nessa parcela se situa a casa onde a autora reside. Mas, qual a respectiva área? E o logradouro? Quais as suas dimensões? 200 metros quadrados? 2.000 metros quadrados? 20.000 metros quadrados? Nada sabemos, porque nada foi alegado. E quais as confrontações? Também nada sabemos porque nada foi alegado.

E imagine-se que, tendo obtido ganho de causa, a autora se apresentava no registo predial para registar a aquisição por usucapião. Que parcela ia registar? Com que área? Com que confrontações? O registo seria liminarmente recusado (cfr. art. 82º C. Reg. Predial).

Há uma grave indeterminação do pedido, o mesmo sucedendo com a causa de pedir, tão grave que afecta de modo insanável o objecto do processo.

E logo, por força do art. 186º,1,2,a CPC, estamos perante uma petição inicial inepta, por ininteligibilidade do pedido. O que significa que ocorre uma nulidade de todo o processo.

Tal vício, que é de conhecimento oficioso (art. 196º CPC), deveria levar à absolvição do réu da instância (art. 278º,1,b CPC).

Porém, dispõe o art. 200º,2 CPC o seguinte:

As nulidades a que se referem o artigo 186.º e o n.º 1 do artigo 193.º são apreciadas no despacho saneador, se antes o juiz as não houver apreciado; se não houver despacho saneador, pode conhecer-se delas até à sentença final.

Em anotação a este artigo, escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa que “neste contexto, a prolação do despacho saneador tem efeitos preclusivos quanto ao conhecimento das nulidades previstas nos arts. 186º a 193º,1, significando isso que, proferido o despacho saneador, fica encerrada a hipótese de o juiz suscitar aquelas nulidades. Se o processo não comportar ou não tiver despacho saneador, o juiz pode conhecer destes dois vícios até à sentença final”.

É certo que a ineptidão da petição inicial, além de determinar a nulidade de todo o processo, tem também a natureza de excepção dilatória (arts. 577º, b e 595º,1,a CPC). Por aplicação do art. 576º,2 CPC, as excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância (…).

Os mesmos autores anotam: “Se o processo for nulo, não faz sentido que o juiz profira uma decisão de mérito sobre a questão apresentada ao Tribunal. Esta nulidade surge quando a petição inicial é inepta. Sendo esta peça a base de qualquer processo, mas padecendo de algum dos vícios constantes do art. 186º,2, todo o processo ficará inquinado, sendo por isso nulo (…) Importa, no entanto, contar com a possibilidade de se considerar sanada tal nulidade sustentada na falta ou inteligibilidade do pedido ou da causa de pedir, a partir da apreciação da posição assumida pelo réu na contestação, nos termos do art. 186º,3”. No caso concreto sabemos que a ré nada disse na contestação quanto a uma eventual ineptidão da petição, antes defendeu o conhecimento do mérito da causa. Porém, não deixa de ser incontornável que o facto de a ré não ter arguido esse vício, substantivamente não convalida a petição: esta continua a ter um objecto demasiado vago e indefinido para permitir uma correcta apreciação do mérito.

O conhecimento das excepções dilatórias é um dever oficioso do Tribunal, como resulta do art. 578º CPC.

Porém, como já vimos, existe um limite para o conhecimento deste vício resultante da ineptidão da petição inicial, que é a sentença final. Passado esse marco, já nem o Tribunal de recurso pode conhecer do mesmo, para absolver o réu da instância.

Todavia, o vício de que a petição inicial padece mantém-se tão grave agora como no início do processo, e é inultrapassável, não sendo possível que uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido dê origem a uma sentença que julgue esse mesmo pedido procedente.

A sentença recorrida julgou totalmente improcedente a acção e absolveu a Ré dos pedidos contra ela formulados. Esta Relação concorda com essa absolvição dos pedidos, embora com um fundamento diferente.

Assim, resumindo e concluindo, uma petição inicial inepta por ininteligibilidade do pedido, quando já não é processualmente possível conhecer desse vício, dá lugar não à absolvição da instância mas à absolvição do pedido.

E assim sendo, pelas mesmas razões, resta julgar o recurso também totalmente improcedente, pois, independentemente de saber se assistia razão à recorrente quanto à questão que veio suscitar no recurso, com o pedido ininteligível que formulou nunca poderia a acção ter sido julgada procedente."

*3. [Comentário] O decidido no acórdão dá por assente que o disposto no art. 200.º, n.º 2, CPC limita o momento do conhecimento oficioso da ineptidão inicial que é permitido pelo estabelecido no art. 196.º 1.ª parte CPC.

Apesar de se poder admitir que é essa a visão comum, importa referir que o estabelecido no art. 200.º, n.º 2, CPC deve ser visto em conjunto com o disposto no art. 198.º, n.º 1, CPC. Dito de outra forma: o art. 198.º, n.º 1, CPC impõe que a ineptidão da petição inicial seja arguida na contestação; é para este caso (e apenas para ele) que o art. 200.º, n.º 1, CPC impõe que essa ineptidão deva ser conhecida no despacho saneador.

Sabendo-se que, caso sub iudice, "a ré nada disse na contestação quanto a uma eventual ineptidão da petição", nada teria impedido o seu conhecimento posterior pelo tribunal.

MTS

26/09/2023

Jurisprudência 2023 (17)


Audiência prévia;
dispensa judicial; audição prévia*


1. O sumário de RC 24/1/2023 (3689/21.3T8LRA.C1) é, na parte agora relevante, o seguinte:

I - O NCPC passou a dispor, como regra, a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, nomeadamente quando o juiz “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (artº 591 nº1 b) do C.P.C.).

II - O juiz pode dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e nas quais, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º do C.P.C.

III - Para além destes casos tipificados na lei, é ainda possível, por aplicação do princípio da adequação formal contido nos artºs 6 e 547 do C.P.C., a dispensa da audiência prévia, naqueles casos em que, sendo possível a decisão de mérito, as questões a decidir tenham sido já objecto de discussão nos articulados, desde que precedida de prévia consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, previsto no artº 3º, nº 3, do CPC.

IV - Não existindo oposição das partes à dispensa de audiência prévia, podem as alegações orais que nele se haveriam de produzir, ser substituídas por alegações escritas. [...]


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"a) Se a decisão proferida enferma de nulidade por preterição da audiência prévia, prevista no artº 591 do C.P.C.

É ponto assente que o NCPC (Lei 41/2013), passou a dispor, como regra, a obrigatoriedade da realização de audiência prévia, nomeadamente quando o juiz “tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (artº 591 nº1 b) do C.P.C.).

Esta regra comporta as excepções contidas nos artºs 592 e 593 do C.P.C., prevendo o primeiro dos preceitos acima mencionados, os casos em que a audiência prévia não tem lugar e o segundo, os casos em que a audiência prévia pode ser dispensada.

Nos termos previstos no artº 593 do C.P.C., o juiz pode dispensar a audiência prévia nas acções que hajam de prosseguir e nas quais, a realizar-se, a audiência prévia só tivesse por objecto as finalidades indicadas nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591.º do C.P.C.

Destes preceitos se pode concluir que “quando a acção houver de prosseguir (isto é, não deva findar no despacho saneador pela procedência de excepção dilatória que já tenha sido debatida nos articulados) e o juiz pretenda decidir de imediato, no todo ou em parte, do mérito da causa (ou apreciar excepção dilatória que não tenha sido debatida nos articulados ou que vá julgar improcedente) deve realizar-se audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito que importe para esse conhecimento.

É o que resulta claro da não inclusão da alínea b) do n.º 1 do artigo 591.º no elenco das situações para que remete o n.º 1 do artigo 593.º e da relação necessária entre o artigo 592.º e o artigo 593.º.

Preside a esta opção a intenção de facultar às partes a última oportunidade de exporem os seus argumentos para convencer o juiz sobre a solução de mérito a proferir, tendo o legislador optado pela solução de que isso se processe em sede de audiência prévia e, portanto, de forma oral através da discussão entre os intervenientes. Esta última oportunidade encontra-se, por exemplo, nas acções não contestadas em que a revelia é operante, caso em que não obstante o réu não tenha apresentado contestação lhe é permitido apresentar alegações, nessa ocasião por escrito (artigo 567.º).” [Ac. da R. do Porto de 27/09/2017, proc. nº 136/16.6T8MAI-A.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida, disponível para consulta in www.dsgi.pt]

A obrigatoriedade de realização da audiência prévia, por contraponto à possibilidade de dispensa prevista no artº 508-B nº1 b) do C.P.C. (na versão anterior à Lei 41/2013), tem sido defendida de forma praticamente unânime pela nossa jurisprudência [---] e já assim foi defendido pela ora relatora no proc. nº 3054/17.7T8LSB-A.L1, em Acórdão de 08/02/18, proferido no T.R.Lisboa. [...]

A questão que ora se coloca respeita aos casos em que as questões a decidir tenham sido objecto de discussão nos articulados e o juiz entenda que o estado dos autos permite já o conhecimento do mérito da causa.

Admitimos que nestes casos, a dispensa da audiência prévia é possível por via do mecanismo da adequação formal prevista no artº 547 e 6 do C.P.C., sem prejuízo de esta dispensa, a ponderar pelo Juiz, ser precedida de prévia consulta das partes, por exigência do princípio do contraditório, como decorre do artº 3º, nº 3, do NCPC [Neste sentido, [Ramos de Faria et al.Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, Almedina, Coimbra, 2013, p. 494.], podendo as partes, neste caso requerer a marcação de audiência prévia (tendo em conta que mesmo nos casos previstos no artº 593 do C.P.C. o poderiam fazer).

Concede-se assim às partes uma derradeira oportunidade de discutirem não só a possibilidade entrevista pelo julgador de decisão imediata do mérito da causa, sem necessidade de averiguação de factos ainda controvertidos, como de discutirem o mérito da causa, face às pretensões e argumentos deduzidos nos articulados, podendo ainda suprir as imprecisões ou deficiências que eventualmente resultem dos articulados e que, de alguma forma, possam influir no resultado do litígio.

Essencial é que se mostre cumprido o exercício do contraditório, princípio constitucional de um Estado de Direito (cfr. artº 20 nº1 da Constituição) e princípio enformador do nosso ordenamento processual civil (cfr. artº 3 nº3 do C.P.C.).

Nos presentes autos, foi o R. notificado da intenção do Juiz a quo de dispensar a realização de audiência prévia, tendo-se conformado com essa intenção, porque nada requereu em contrário. Podendo nessa ocasião, ainda não existir despacho a advertir as partes de que se iria conhecer de mérito, o certo é que em momento anterior à decisão, foram as partes notificadas de que o juiz a quo entendia “ser possível desde já conhecer do mérito da causa” pelo que, e para evitar decisões surpresa, se concedia “o prazo de 10 dias, para as partes, querendo, alegarem o que tiverem por conveniente a esse propósito – cfr. art. 3.º, n.º 3, do CPC.”

O princípio da adequação processual permite ao magistrado substituir as alegações orais a proferir na audiência prévia, por alegações escritas. Essencial é que às partes seja concedido o direito ao contraditório, que nos presentes autos se mostra plenamente assegurado.

Não é assim possível invocar nulidade processual, pois a audiência prévia tem imanente o princípio do contraditório, plenamente assegurado neste caso. Acresce que, devidamente notificado, o R. nada disse, não requereu a realização desta audiência, não invocou a nulidade que ora vem arguir, manifestando com o seu comportamento, anuência a esta dispensa e à possibilidade de conhecer do mérito da causa. A invocação de nulidade processual neste recurso, constitui assim uma flagrante violação dos deveres de boa fé e de cooperação contidos no artº 6 do C.P.C."

3. [Comentário] Não se discorda da posição defendida no acórdão, mas, salvo melhor opinião, não é necessário fazer uso de qualquer poder de gestão processual.

O art. 593.º, n.º 1, CPC permite a dispensa da audiência prévia (nomeadamente) quando ao juiz cumpra proferir despacho saneador. Uma das funções (possíveis) do despacho saneador é conhecer do mérito da causa, desde que o estado do processo o permita (art. 595.º, n.º 1, al. b), CPC). No entanto, se tiver havido dispensa da audiência prévia, há que assegurar, antes desse conhecimento, a audição prévia das partes (art. 3.º, n.º 3, CPC).

Como se vê, a solução está toda na lei, não sendo necessário recorrer a nenhum poder de gestão processual.

MTS

25/09/2023

Jurisprudência 2023 (16)


Cessão de crédito;
substituição processual


1. O sumário de RC (dec. sing.) 24/1/2023 (27987/21.7YIPRT.C1) é o seguinte:

I. O artigo 263 do Código de Processo Civil trata das consequências processuais da transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, durante a pendência da causa.

“O artigo orienta-se, por razões de economia processual e de protecção da parte contrária, pela irrelevância da transmissão da coisa ou do direito durante a pendência da causa”.

Transmitente e adquirente são a mesma parte sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (art. 581.º, n.º 2).

II. A norma do seu n.º 1 consagra uma situação de substituição processual: o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, agora como substituto do adquirente, que é a parte substituída.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O artigo 263 do Código de Processo Civil trata das consequências processuais da transmissão, por ato entre vivos, da coisa ou direito litigioso, durante a pendência da causa.

No caso, conforme referido pelo Tribunal recorrido, a transmissão do direito ocorre em julho de 2022, tendo a ação entrado em abril de 2021, ou seja, a transmissão do direito ocorre na pendência da causa.

Como ensina Teixeira de Sousa (Blog, CPC Online, anotação ao artigo em análise):

“O disposto no artigo assenta no pressuposto de que a pendência da causa não retira a nenhuma das partes a legitimidade (material) para a transmissão da coisa ou do direito litigioso. O artigo orienta-se, por razões de economia processual e de protecção da parte contrária, pela irrelevância da transmissão da coisa ou do direito durante a pendência da causa, poupando o autor a ter de instaurar uma nova acção contra o terceiro adquirente e evitando que o réu tenha de ser demandado numa nova acção pelo adquirente. Transmitente e adquirente são a mesma parte sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica (art. 581.º, n.º 2).”

A norma (do n.º 1) consagra uma situação de substituição processual: o transmitente continua a ter legitimidade para a causa, agora como substituto do adquirente, que é a parte substituída.

O transmitente (substituto processual) pode continuar a praticar atos processuais na acção.

A substituição processual termina quando o adquirente, através do incidente de habilitação (art. 356.º), é admitido a substituir o transmitente (n.º 1 in fine), ou seja, quando se verifica a substituição do substituto processual (transmitente) pela parte substituída (adquirente).

Ainda que o adquirente (parte substituída) não venha a substituir o transmitente (substituto processual), a sentença proferida – de sentido favorável ou desfavorável a este transmitente – produz efeitos em relação àquele adquirente (n.º 3).

Com este enquadramento, facilmente se percebe que o interesse na definição do crédito e o aproveitamento do processo imperam sobre a perda de titularidade pela transmissão na pendência da causa.

O transmitente mantém interesse na definição do crédito (que transmitiu), o que o legitima a poder continuar os atos processuais da ação.

O cessionário não foi ainda habilitado.

Assim, não ocorre a decidida inutilidade da lide e o Autor mantém legitimidade como substituto do adquirente."

[MTS]

22/09/2023

Jurisprudência europeia (TJ) (293)


Reenvio prejudicial — Cooperação judiciária em matéria civil — Competência judiciária, reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial — Regulamento (UE) n.° 1215/2012 — Competências especiais — Competência em matéria de contratos celebrados pelos consumidores — Artigo 18.°, n.° 1 — Conceito de “outra parte no contrato” — Artigo 63.° — Domicílio de uma pessoa coletiva — Regulamento (CE) n.° 593/2008 — Lei aplicável às obrigações contratuais — Escolha da lei aplicável — Artigo 3.° — Liberdade de escolha — Artigo 6.° — Contratos de consumo — Limites — Contrato celebrado com um consumidor e que tem por objeto direitos de utilização periódica das habitações turísticas através de um sistema de pontos


TJ 14/9/2023 (C‑821/21, NM/Club La Costa et al.) decidiu o seguinte:

1)      O artigo 18.°, n.° 1, do Regulamento (UE) n.° 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial,

deve ser interpretado no sentido de que:

a expressão «outra parte no contrato», que figura nesta disposição, deve ser entendida no sentido de que visa apenas a pessoa, singular ou coletiva, que é parte no contrato em causa e não outras pessoas, alheias a esse contrato, ainda que estejam ligadas a essa pessoa.

2)      O artigo 63.°, n.os 1 e 2, do Regulamento n.° 1215/2012

deve ser interpretado no sentido de que:

a determinação, nos termos desta disposição, do domicílio da «outra parte no contrato», na aceção do artigo 18.°, n.° 1, deste regulamento, não constitui uma limitação da escolha que pode ser feita pelo consumidor ao abrigo deste artigo 18.°, n.° 1.

A este respeito, as especificações dadas neste artigo 63.°, n.° 2, relativas ao conceito de «sede social» constituem definições autónomas.

3)      O artigo 3.° do Regulamento (CE) n.° 593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I),

deve ser interpretado no sentido de que:

não se opõe a uma cláusula de escolha da lei aplicável que figura nas condições gerais de um contrato ou num documento separado para o qual esse contrato remete e que foi entregue ao consumidor, desde que essa cláusula informe o consumidor do facto de que beneficia, em todo o caso, ao abrigo do artigo 6.°, n.° 2, deste regulamento, da proteção que lhe é garantida pelas disposições imperativas da lei do país em que tem a sua residência habitual.

4)      O artigo 6.°, n.° 1, do Regulamento n.° 593/2008

deve ser interpretado no sentido de que:

nesta disposição e quando não tenha sido efetuada uma escolha válida da lei aplicável a esse contrato, esta lei deve ser determinada em conformidade com a referida disposição, que pode ser invocada pelas duas partes no referido contrato, incluindo o profissional, não obstante a circunstância de a lei que é aplicável ao mesmo contrato, nos termos dos artigos 3.° e 4.° deste regulamento, poder ser mais favorável ao consumidor.


Jurisprudência 2023 (15)


Protecção do consumidor;
prescrição extintiva; procedimento de injunção


1. O sumário de RL 26/1/2023 (107382/20.0YIPRT.L1-8é o seguinte:

- O art.º 10 da Lei 23/96, de 23/7, consagrou uma prescrição extintiva ou liberatória, e não meramente presuntiva.

- O prazo prescricional de 6 meses abrange não só a obrigação principal como os juros de mora.

- A injunção visa a cobrança de prestações pecuniárias emergentes de contratos e não já obrigações indemnizatórias decorrentes de incumprimento do contrato e/ou resultantes de responsabilidade civil.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Sustenta a apelante a inexistência de prescrição das facturas juntas, excepção feita à do doc. nº 8 (factura nº A622765466, conta contrato 1355541975, no valor de €35,14, datada de 19/5/16), ex vi das Leis 23/96 de 26/7 (art.º 10) e 1-A/2020, de 19/3 (Sarcov-2)

A finalidade da Lei 23/96 de 26/7 (alterada pelas Leis 12/2008 de 26/2, 6/2011 de 10/3 e 44/2011, de 22/6 e 10/2018 de 28/1), é a de proteger o utente ou utilizador de qualquer dos bens ou serviços públicos nela enumerados – a água, a electricidade, o gás ou o telefone. [...]

O art.º 1 da Lei 23/96 estipula que: “A presente lei consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente.

O art.º 1º da Lei 23/96 de 26/7 estipula que: “A presente lei consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente”.

E a alínea d) determina que o serviço de telefone é um dos serviços públicos abrangidos. [...]

Está o crédito da requerente prescrito?

O art.º 10 da Lei cit. determina que:” O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de 6 meses após a sua prestação”.

A prescrição pode ser presuntiva ou extintiva.

O instituto da prescrição extintiva visa o fim social de eliminar o estado de incerteza nascido da falta de exercício de um direito por um período de tempo definido pela lei, penalizando a inacção do titular do direito.

Por isso, volvido o prazo indicado na lei, que varia consoante os casos e, invocada a prescrição pelo beneficiário, tem este a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito – art.ºs 303 e 304 CC.

A prescrição presuntiva, ao invés, consiste numa mera presunção de pagamento, que pode ser ilidida pela confissão do devedor, e destina-se a proteger o devedor contra o risco de satisfazer duas vezes dívidas de que não é costume guardar a quitação durante muito tempo – art.ºs 312 a 314 CC.

Antes da publicação da Lei 23/96 de 26/7, as dívidas relativas à prestação do serviço telefónico prescreviam no prazo de 5 anos – art.º 310 g) CC – inexistindo qualquer dúvida de que se estava perante um prazo de prescrição extintiva.

Como refere Calvão da Silva “a nova lei não pretende estabelecer uma presunção de pagamento, mas determinar que a obrigação civil se extingue …A prescrição propriamente dita é só uma - a extintiva ou liberatória. E ela, a prescrição extintiva, é que constitui a regra, por razões de interesse e ordem pública como a certeza do direito e a segurança do comércio jurídico. Já a chamada prescrição presuntiva não passa de excepção, sujeita ao regime especial do art.º 312 e segs. CC” – in RLJ, ano 132-152.

Não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, sendo certo que o intérprete presumirá que o legislador consagrou as decisões mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados – art.º 9 nº 2 e 3 CC.

Assim e em conclusão, atenta finalidade e o texto da Lei 23/96, de 23/7, o art.º 10 consagrou uma prescrição extintiva ou liberatória, e não meramente presuntiva – cfr. Ac STJ de 9/11/96, 6/7/2006 e 18/5/2004 in www.dgsi.pt, e Ac RE proc. nº 2821/01.

Desde quando se inicia a contagem do prazo de prescrição?

Três entendimentos têm sido sustentados quanto a esta matéria:

Um deles, defendido por Calvão da Silva – RLJ 132º, 138 sgs – 156 v –, sustenta que o prazo de prescrição de 6 meses inicia-se a partir da prestação dos serviços.

Tratando-se de serviços reiterados e periódicos, o prazo de 6 meses conta-se a partir de cada um dos serviços prestados, ou seja, desde a prestação mensal do serviço, data da exigibilidade da obrigação e da possibilidade de exercício do direito, e tal assim tanto quanto à apresentação da factura, como no que se refere à invocação do direito em juízo.

Outros defendem que o prazo de 6 meses é o prazo para a apresentação da factura; com a apresentação da factura o prazo prescricional interrompe-se; consideram também ser de 6 meses o prazo consentido entre a apresentação da factura e a instauração da acção, sob pena de extinção do direito de pagamento.

Esta posição não se coaduna com o art.º 323 CC que exige um acto de natureza jurisdicional para a interrupção da prescrição; a apresentação da factura funciona como interpelação para pagamento – art.º 805 CC – constituindo o devedor em mora, não acarreta a interrupção do prazo prescricional.

Menezes Cordeiro restringe a aplicação do prazo de 6 meses à apresentação da factura, acolhendo a partir daí o prazo geral de prescrição de 5 anos – art.º 310 g) CC – até ser intentada a acção.

A Lei 23/96 visa a defesa do consumidor – atalhar, numa sociedade de consumo, um endividamento excessivo, prevenir uma acumulação de dívidas que o utente deve pagar periodicamente, mas terá dificuldade em fazê-lo se for excessivamente protelada a exigência do seu pagamento -, por isso estabeleceram um prazo novo, especial, mais curto do que o estabelecido no art.º 310 g) CC.

As empresas que prestam estes serviços são empresas que têm ao seu serviço uma tecnologia muito desenvolvida, não sendo de prever ou admitir que se atrasem ou demorem no envio das facturas dos serviços prestados. [...]

Uma vez que os serviços são prestados continuadamente, sendo facturados mensalmente, o início do decurso do prazo ocorre logo que termine cada período sujeito a facturação autónoma.

Aí se impõe não só um ónus, mas também um dever correlativo ao direito conferido para protecção dos consumidores.

O atraso ou eventual negligência no cumprimento desse dever não podem acarretar a dilatação desse prazo de prescrição, que se pretendeu ser muito curto, tendo em vista a protecção dos direitos dos consumidores.

As empresas de telecomunicações são dotadas de tecnologia avançada e de sistemas informáticos desenvolvidos o que lhes permite uma grande eficiência nos seus serviços pelo que, podem intentar uma acção contra o consumidor relapso, num curto espaço de tempo – Ac. STJ 6/7/2006, já cit.

A Lei 1-A/2020 de 19/3 estabeleceu medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo Sars – Cov 2 e da doença Covis 19.

No âmbito desse regime excepcional foi tido em conta o modo em que deveriam ter lugar as audiências de julgamento e outras diligências necessárias – cfr. art.º 6-E.

No nº 7 do art.º cit. estabeleceu-se a suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência (a), os actos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de entrega judicial de casa de morada de família (b), os actos de execução e entrega do local arrendado no âmbito de acções de despejo…(c), os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos e procedimentos referidos nas alíneas anteriores (d) e os prazos de prescrição e de caducidade relativos aos processos cujas diligências não possam ser realizadas nos termos dos nºs 2, 4 ou 8 (e).

Ora, tendo em conta o preceituado na lei e o constante dos autos, afastada está a sua aplicação in casu - não estamos em sede de processo de insolvência, nem de entrega do local arrendado, nem em sede de diligências que se prendam com a realização de audiências em tribunal e/ou presença física das partes. [...]

Nas obrigações pecuniárias são devidos juros desde a constituição em mora – art.º 806 CC.

Os juros reconduzem-se a uma cláusula acessória do núcleo essencial do contrato que consiste na prestação de um serviço tendo como contrapartida o pagamento de um preço.

Assim sendo, o prazo de prescrição para a obrigação principal não pode deixar de abranger os juros (obrigação acessória), sob pena de termos um prazo prescricional de 6 meses para a obrigação principal e um prazo de 5 anos (art.º 310 d) CC) para o pagamento de juros que só se justificam em face daquela, em completo desacerto e à revelia do preconizado no art.º 9/3 CC (o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas).

Na verdade, consistindo a obrigação principal na prestação de serviço e contrapartida o pagamento do preço, apenas a violação desta obrigação pode constituir o requerido/réu em mora e na obrigação de indemnizar – o pagamento dos juros pressupõe e depende da verificação de uma causa necessária e adequada à constituição dessa obrigação.

Assim sendo, não se vislumbra como se poderá autonomizar a obrigação do pagamento de juros (acessória) da obrigação principal (pagamento do preço/réu), sendo-lhe extensível o regime preconizado para a obrigação principal, nela se incluindo o prazo de prescricional que, in casu (Lei 23/96 de 10/7) é de 6 meses.

Não se compreende que o legislador tenha criado e previsto um regime especial destinado a proteger o utente dos serviços públicos essenciais e que essa protecção não abranja/estenda aos juros.

Apesar do art.º 561 CC prever a autonomização dos juros, certo é que tal autonomização ocorre em casos especiais nomeadamente no da cedência do crédito a terceiros - cfr. Ac. RL de 7/4/22, relatora Vera Antunes, in www.dgsi.pt."

[MTS]