Por seu turno os Réus, na respetiva contestação, invocaram a exceção de caso julgado, aduzindo que, no âmbito do processo n.º 134/12.7TBSTB, a ora Autora, ali Ré, invocou a existência de um arrendamento verbal, que não foi reconhecido.
Em 18.02.2022, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Ao elaborar o despacho saneador e na correlação dos argumentos apresentados, com o respetivo enquadramento jurídico, verifico que existe exceção dilatória inominada, que obsta ao conhecimento do mérito da causa (artº 576º, nº 2 do CPC) e que consiste no facto de o argumento da A. de que só posteriormente ao trânsito em julgado da decisão proferida no pº que correu termos no Juízo Central Cível – J2, sob o n º 1348/12.7, é que teve conhecimento da existência do contrato de arrendamento escrito que apresentou, só poder ser invocado em sede de recurso de revisão, nos termos do disposto no artº 696º, al. c) do CPC, a ser apresentado junto do processo onde foi proferida a decisão já transitada em julgado.É que uma exceção com virtualidade a obstar ao efeito de uma decisão transitada em julgado, não pode ser conhecida fora do processo onde tal decisão foi exarada.Mas as partes não tiveram oportunidade de se pronunciar a este propósito, pelo que é necessário dar-lhes a oportunidade de o fazerem.”
Diz a Recorrente que o Tribunal a quo apenas deu a oportunidade de as partes se pronunciarem a este respeito.
Porém, tal afirmação não corresponde ao que os autos espelham, só por desatenção se compreendendo a arguição da violação do princípio do contraditório.
Efetivamente, na primeira data designada para a audiência prévia, que teve lugar no dia 21.12.2021, na presença dos Ilustres mandatários de ambas as partes, a Senhora Juíza proferiu o seguinte despacho:
“Sem prejuízo de entendimento diverso face à junção de certidão dos documentos para que remetem os factos provados da decisão proferida no processo nº 1348/12.7TBSTB, por que se irá diligenciar, entende-se não se verificar nos presentes autos a exceção do caso julgado invocada, quer na sua vertente negativa quer positiva.Equaciona-se, contudo, ser possível verificar-se a exceção da preclusão do direito à invocação do contrato de arrendamento, pela sua não dedução como matéria de exceção na contestação apresentada no referido processo, perspetivando-se duas possibilidades nesta sede: ou o conhecimento imediato da exceção, ou a necessidade de produção de prova a tal propósito em ordem a apurar a superveniência do conhecimento pela A. do contrato de arrendamento vertido nos documentos junto a fls. 351 a 355 e bem assim do momento em que este veio à sua posse.Dando desde já a possibilidade aos Ilustres Mandatários, designadamente à Ilustre Mandatária da A., para se pronunciar a este propósito”.
Portanto, na audiência prévia, as partes – e concretamente a Ilustre Mandatária da Autora, ora Recorrente –, foram notificadas não só de que o tribunal entendia não se verificar a arguida exceção de caso julgado, como equacionava a possibilidade de verificação da preclusão do direito da Autora à invocação do contrato de arrendamento, caso a julgadora viesse a verificar que a mesma não tinha efetuado tal alegação na contestação apresentada no referido processo.
Ora, pese embora a decisão se tenha reportado à preclusão do direito, por referência a momento processual diverso do mencionado na notificação, considerando agora o tribunal a quo que o contrato cuja existência se pretende ver declarada por via desta ação, devia ter sido invocado na oposição à execução, e não na contestação da ação, como referira na notificação efetuada na audiência prévia, a verdade é que as partes, e concretamente a Autora, foram notificadas para se pronunciarem sobre a possibilidade de o tribunal decidir que o direito da Autora a invocar o contrato de arrendamento, mais precisamente, atento o pedido formulado, a ver reconhecida a sua existência, se encontrava precludido por não ter sido invocado em ação anterior.
Como é sabido, o princípio do contraditório «é hoje entendido como a garantia dada à parte de participação efectiva na evolução da instância, tendo a possibilidade de influenciar todas as decisões e desenvolvimentos processuais com repercussão no objecto da causa» [Cfr. PAULO RAMOS DE FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO, in Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, ALMEDINA, 2014, pág. 31]
Dando nota da evolução do princípio do contraditório no sentido desta visão mais ampla, abrangendo o direito de influenciar a decisão, como desde há muito vem sendo sufragado pelo Tribunal Constitucional, LEBRE DE FREITAS [In Introdução ao Processo Civil, Conceitos e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, COIMBRA EDITORA, págs. 96 e 97.] salienta que à conceção tradicional do contraditório enquanto garantia do desenvolvimento do processo em discussão dialética, com as vantagens decorrentes da fiscalização recíproca das afirmações das partes, substitui-se hoje uma noção mais lata de contraditoriedade, «entendida como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão. O escopo fundamental do princípio do contraditório deixou assim de ser a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia para passar a ser a influência no sentido positivo de direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo».
Esta visão ampla do princípio do contraditório tem sido acolhida e observada em inúmeros arestos dos tribunais superiores [Cfr. a título meramente exemplificativo, os Acórdãos deste Tribunal da Relação de 28.03.2019, processo n.º 208/10.0TBRDD-B.E1, de 02.05.2019, processo n.º 532/16.9T8ABT.E1, e o Acórdão TRP de 02.12.2019, processo n.º 14227/19.8T8PRT.P1, com comentário no Blog do IPPC, em 19.04.2019, que, tal como o primeiro dos indicados arestos deste Tribunal, segue de perto o Acórdão do TRG de 19.04.2018, abaixo identificado.], mesmo quanto a questão de direito, quando a decisão seja baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.
Com efeito, sendo pacífico que a lei impõe que a desnecessidade da audição seja manifesta, indicando portanto, que o princípio do contraditório deve ser cumprido mesmo quando possa apresentar-se aparentemente como desnecessária a audição, só podendo ser afastado relativamente a questões cuja decisão não tenha, ainda que reflexamente, qualquer repercussão sobre o desenvolvimento da instância e consequentemente sobre a decisão do litígio, como se afirmou no Acórdão deste Tribunal da Relação de 28.03.2019 [Proferido no processo n.º 208/10.0TBRDD-B.E1, seguindo o entendimento já vertido no citado Acórdão do TRG de 19.04.2018, proferido no processo n.º 533/04.0TMBRG-K.G1, que se louvou na doutrina expressa por LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA e RUI PINTO, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 1999, págs. 10, 33 e 34.] impõe-se afinar o conceito de “manifesta desnecessidade” tendo presente que casos existem em que, não obstante se tratar de questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, estas tinham obrigação de prever que o tribunal podia decidir tais questões em determinado sentido, como veio a decidir, pelo que se não as suscitaram e não cuidaram em as discutir no processo, sibi imputet, não podendo razoavelmente considerar-se que, nesses casos, a decisão proferida pelo tribunal configure uma decisão-surpresa”.
O caso em presença é exemplo óbvio da dita “manifesta desnecessidade”. A questão que motivou a audição prévia é a mesma que justificou a decisão: a preclusão do direito que a Autora pretende ver reconhecido por via da presente ação, por não ter sido invocado anteriormente, quando devia ter sido convocado.
Estamos, portanto, perante uma situação em que uma nova audição se configuraria como um verdadeiro ato inútil, não consentido por lei (artigo 130.º do CPC).
Portanto, sendo a preclusão o fundamento da notificação efetuada, e tendo a Autora sido notificada para se pronunciar a tal respeito, não se verifica a invocada violação do princípio do contraditório, não configurando decisão-surpresa o facto de o tribunal ter considerado na decisão recorrida que a preclusão se verificara, mas em momento posterior àquele que havia referido na notificação."
[MTS]