"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/04/2015

Conhecimento de excepções peremptórias no despacho saneador? Depende!...


I. De acordo com o seu sumário, STJ 26/3/2015 (1847/08.5TVLSB.L1.S1) decidiu o seguinte:

1. As exceções perentórias, como fundamentos de defesa, traduzem-se em questões fundamentais, preliminares em relação ao thema decidendum, delimitando, negativa e internamente, a pretensão deduzida pelo autor.

2. A decisão que verse sobre a procedência ou improcedência de uma exceção perentória inscreve-se no domínio da relação material controvertida e pode ser proferida imediatamente no despacho saneador, se o estado do processo o permitir sem necessidade de mais provas, mesmo que, quando julgada improcedente a exceção, o processo deva prosseguir para conhecimento da existência do direito em causa.

3. Ainda que a eficácia do caso julgado material incida nuclearmente sobre a parte dispositiva da sentença, alcança também os fundamentos e as questões que nela se entroncam, enquanto limites objetivos dessa decisão.

4. A decisão interlocutória que julgue improcedente uma exceção perentória vale, desde o respetivo trânsito em julgado, com o alcance de limite objetivo, negativo, do caso julgado material que vier a recair, a final, sobre a pretensão deduzida.

5. No caso vertente, tendo sido julgada, em sede de saneador, improcedente a exceção de caducidade do direito de a A. investigar a paternidade do R., tal decisão impede que essa questão seja novamente apreciada no processo, valendo como limite objetivo da decisão final. 


II. Na sua generalidade, o sumário do acórdão não levanta nenhuns problemas. É claro que é possível conhecer de uma excepção peremptória no despacho saneador (cf. art. 595.º, n.º 1, al. b), CPC) e é também claro que o decidido neste despacho é vinculativo na posterior sentença final. A linearidade do sumário esconde, no entanto, uma questão muito importante, de certo modo aflorada no item n.º 1 do sumário: a questão tem a ver com as condições nas quais o tribunal pode conhecer de uma excepção peremptória no despacho saneador.

À primeira vista, a questão parece ter uma resposta muito simples e indiscutível: o tribunal pode conhecer de uma excepção peremptória no despacho saneador sempre que tenha os necessários elementos de facto e de direito para tal. Esta resposta está evidentemente correcta, mas não responde a todos os problemas.

O que importa analisar é, por exemplo, se o tribunal pode conhecer da excepção de pagamento antes de ter reconhecido o crédito do autor, da excepção de nulidade antes de ter reconhecido a existência do contrato celebrado entre as partes ou da excepção de caducidade do direito à anulação do contrato antes de ter reconhecido o respectivo fundamento de anulação. Passando para um outro plano, também se pode perguntar se o tribunal pode considerar a acção improcedente com fundamento no contracrédito invocado pelo réu (em reconvenção: cf. art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC) antes de reconhecer o crédito do autor.

No fundo, o que se questiona é se o tribunal pode conhecer de uma excepção peremptória antes de conhecer do direito do autor que essa excepção visa impedir, modificar ou extinguir. Noutros termos: é possível uma decisão de procedência de uma excepção peremptória -- e, portanto, uma decisão de absolvição do pedido (cf. art. 576.º, n.º 3, CPC) -- que deixa em aberto a existência do direito que esta excepção pretende impedir, modificar ou extinguir?

III. Por vezes, entende-se que a excepção peremptória é uma questão prejudicial em relação à apreciação do direito invocado pelo autor (ou em relação à apreciação do mérito da causa (cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado III (1950), 189; a posição tem defensores na moderna doutrina processual portuguesa). A origem desta orientação não é determinável. Talvez a mesma resulte de uma leitura equivocada de Chiovenda, que realmente configurava as excepções peremptórias como uma questão prejudicial, mas para defender que às mesmas se aplicava o regime da apreciação incidental constante do art. 34 Cpc (IT), que estabelece o seguinte: "Il giudice, se per legge o per esplicita domanda di una delle parti è necessario decidere con efficacia di giudicato una questione pregiudiziale che appartiene per materia o valore alla competenza di un giudice superiore, rimette tutta la causa a quest'ultimo, assegnando alle parti un termine perentorio per la riassunzione della causa davanti a lui". (Istituzioni di diritto processuale civile I, 2.ª ed. (1935), 304 ss. e 319.). No entanto, não é este o aspecto que agora importa considerar.

A verdade é que, se a excepção peremptória constituísse uma questão prejudicial, ter-se-ia verificado, nas milenares relações entre a actio e a exceptio, uma mudança radical. No direito romano, era indiscutível que a prioridade era reconhecida à actio e que a exceptio destruía ou paralisava a actio. Mais importante até: como resulta da conhecida passagem de Ulpianus, D. 44.1.1. (Agere etiam is videtur, qui exceptione utitur: nam reus in exceptione actor est.), a actio é o contraposto da exceptio, pelo que não é possível conhecer isoladamente da exceptio

Assim, se a excepção fosse considerada uma questão prejudicial e se constituísse, portanto, um objecto autónomo, isso implicaria não só que a exceptio seria o prius e a actio o posterius, mas também que estaria desfeita a relação entre a actio e a exceptio que era característica do direito romano. Em vez do binómio inseparável actio/exceptio (e de ser a exceptio a operar em função da actio), ter-se-ia agora o binómio separável exceptio-actio (e, portanto, a  ser actio a operar em função da exceptio, sendo esta apreciada prévia e autonomamente e sendo a actio apenas apreciada se a exceptio não vier a ser considerada procedente). 

Em vez de uma análise processual, há boas razões para se preferir uma linguagem e uma análise substantivas, dado que o efeito impeditivo, modificativo ou extintivo se produz sobre uma situação substantiva, e não, como ainda entendia Chiovenda, sobre a actio (cf. Istituzioni di diritto processuale civile I, 2.ª ed., 309 s.). Assim, em vez da actio, há que falar do Anspruch (pretensão) e utilizar o binómio Anspruch/Einrede (pretensão/excepção). Deste modo, se se tivesse verificado a referida inversão, o binómio seria agora Einrede-Anspruch: o Anspruch só seria apreciado pelo tribunal em função do conhecimento realizado quanto à Einrede.

IV. A concepção da excepção peremptória como uma questão prejudicial não é aceitável. Nada certamente de inesperado, se se tiver presente que a excepção se destina a obstar à procedência da causa apesar da reconhecimento do direito do autor (ou apesar da veracidade dos factos alegados pelo autor). "A E.[xceptio] é [...] uma condição negativa da condenação (Gai. IV 119: exceptio ita formulae inseritur, ut condicionalem faciat condemnationem" (Wenger, Paulys VI-2 (1909), 1554): por isso, o tribunal só pode proferir uma decisão condenatória se a excepção não for considerada procedente (Kaser/Hackl, Das römische Zivilprozessrecht, 2.ª ed. (1996), 320). Partindo desta base clássica da exceptio, podem ser invocados alguns argumentos contra a sua concepção como uma questão prejudicial.

A concepção da excepção peremptória como uma questão prejudicial é incompatível com a sua -- alias, muito frequente -- alegação a título subsidiário perante a impugnação da acção. Se, por exemplo, o autor solicitar o cumprimento de uma prestação emergente de um contrato, o réu pode impugnar a celebração do contrato e alegar, a título subsidiário, a invalidade do contrato ou o pagamento da prestação. Como é que uma alegação subsidiária do réu se transforma numa alegação principal desta parte e como é que ela afasta a apreciação da impugnação também deduzida pelo réu, eis o que as orientações que qualificam a excepção peremptória como uma questão prejudicial terão de explicar. 

A isto acresce que, se, na sentença final, o tribunal tiver de conhecer da existência de um contrato e do pagamento da respectiva prestação, não é aceitável que o tribunal comece por apreciar este pagamento e não venha a conhecer da existência do contrato no caso de reconhecer esse pagamento com a justificação de que, se está provado o pagamento, está encontrado um fundamento de improcedência da acção. Se tal sucedesse, imediatamente se alegaria -- com total acerto -- que a sentença seria nula por não conhecer de uma matéria de que não podia deixar de conhecer -- em concreto, a existência do contrato celebrado entre as partes.

Ao contrário do que entende a concepção que configura a excepção peremptória como uma questão prejudicial, esta excepção não pode constituir um objecto autónomo na apreciação do mérito da causa. A excepção peremptória é sempre relativa (ou, talvez mesmo, relacional): só há excepção se houver uma situação jurídica a que ela se possa opor ("a uma pretensão pode contrapor-se uma excepção": Windscheid/Kipp, Lehrbuch des Pandektenrechts, 9.ª ed. (1906), 202). É aliás por isso que a não invocação de uma excepção peremptória num processo implica a sua preclusão num processo posterior (cf. art. 573.º, n.º 1, CPC): uma vez reconhecida a pretensão do autor numa causa, não é admissível invocar em nenhum processo (mesmo executivo) uma excepção que se refere a essa mesma pretensão.

As excepções peremptórias costumam ser distinguidas entre excepções em sentido próprio (restrito ou substantivo) e excepções em sentido impróprio (ou amplo): aquelas correspondem às muito antigas exceptiones iuris e consistem na invocação de um contra-direito oponível ao direito do autor; estas são reconduzíveis às exceptiones facti e consistem na invocação de um facto que demonstra que, no momento da propositura da acção, o autor já não era titular da pretensão que alega. A concepção da excepção como uma questão prejudicial não é aplicável a nenhuma destas modalidades da excepção.

Quando a excepção peremptória assenta numa contra-norma e constitui um contra-direito do réu -- o que pode ser exemplificado com a invocação da exceptio non adimpleti contractus ou do direito de retenção --, a concepção da excepção como uma questão prejudicial implica aplicar a contra-norma antes de aplicar a norma e de reconhecer o contra-direito do réu antes de verificar o direito do autor. Certo é, no entanto, que não tem sentido reconhecer a exceptio non adimpleti ou o direito de retenção antes de conhecer do dever de cumprimento ou do dever de entrega da coisa do réu. 

O mesmo há que concluir das excepções em sentido impróprio. Por exemplo: se o réu alegar o pagamento, o tribunal não pode considerar a acção improcedente com base nesta excepção antes de reconhecer que o crédito do autor se constituiu e entretanto se extinguiu por aquele pagamento. 

Impõe-se, portanto, afastar a concepção de que a excepção peremptória é uma questão prejudicial da apreciação do mérito da causa.  Isto implica que a excepção se mantêm no âmbito do art. 91.º CPC (relativo às questões incidentais), e não no âmbito do art. 92.º CPC (referido às questões prejudiciais). Sendo a opção legal no sentido de incluir as excepções peremptórias no âmbito da apreciação incidental, pode acrescentar-se que não há nenhuma razão intransponível que justifique que a decisão sobre a excepção não possa adquirir ope legis valor de caso julgado material (se a decisão sobre a pretensão do autor adquire valor de caso julgado, o que obsta a que a decisão sobre a excepção alegada pelo réu possa adquirir esse mesmo valor?). Isto é, no entanto, uma questão que agora não pode ser analisada.

Interessa analisar as consequências da conclusão de as excepções peremptórias não podem ser configuradas como uma questão prejudicial para as condições em que é possível conhecer de uma dessas excepções no despacho saneador.

V. É claro que a situação não é problemática quando, no despacho saneador, se pode conhecer em simultâneo da pretensão e da excepção. Por exemplo: o tribunal está em condições de reconhecer quer a existência e a validade do contrato, quer o cumprimento da respectiva prestação contratual; nesta hipótese, o tribunal pode absolver o réu do pedido com base nesta excepção extintiva.

A situação problemática é aquela em que, no momento da elaboração do despacho saneador, o tribunal já se pode pronunciar sobre a excepção sem ainda se poder pronunciar sobre a pretensão. Por exemplo: o tribunal já pode dar como assente que houve pagamento (ou melhor, uma entrega de dinheiro que, no caso de o contrato ter sido celebrado e ser válido, consubstancia pagamento), mas ainda não se pode pronunciar nem sobre a existência do contrato, nem sobre a sua validade; pergunta-se: o tribunal pode conhecer desse pagamento no despacho saneador? O caso torna-se até mais interessante se tiver sido o réu a suscitar, em simultâneo, a questão relativa à validade e a questão referente ao pagamento, pois que então também se pode perguntar se o tribunal pode considerar o pagamento deixando em aberto a questão da validade do contrato.

Afastada que foi a concepção de que a excepção peremptória é uma questão prejudicial da apreciação de outros aspectos atinentes ao mérito da causa, a resposta parece evidente: o tribunal não pode pronunciar-se no despacho saneador sobre a excepção antes de se pronunciar sobre a pretensão, ou seja, não pode considerar a acção improcedente com base na excepção peremptória antes de reconhecer a existência do direito alegado pelo autor. Dito de outra forma: o tribunal não pode justificar o julgamento de procedência da excepção com o argumento de que não interessa analisar a pretensão do autor, porque, ainda que esta viesse a ser reconhecida, a acção sempre haveria de improceder com fundamento na excepção.

Esta conclusão também vale para as excepções impeditivas, isto é, para as excepções que impedem o preenchimento de uma previsão legal (como, por exemplo, a invalidade). Assim, por exemplo, não é possível que o tribunal, no despacho saneador, considere que o contrato é nulo sem previamente se ter certificado de que o contrato foi realmente celebrado entre as partes.

O que, no fundo, se entende é que o tribunal não pode criar o paradoxo de considerar procedente o pedido assente no facto impeditivo, modificativo ou extintivo antes de julgar procedente o pedido baseado no facto constitutivo a que aquele facto se opõe. Não é que o direito não conviva com alguns paradoxos (cf. Fletcher, Colum. L. Rev. 85 (1985), 1263 ss. e 1268 ss.); mas não é aceitável que o tribunal crie o paradoxo de dispensar a apreciação da pretensão do autor com base na procedência da excepção invocada pelo réu para se opor a essa mesma pretensão.

Quando é invocada uma excepção peremptória, o objecto do processo passa a comportar, além do facto constitutivo invocado pelo autor, um facto impeditivo, modificativo ou extintivo alegado pelo réu. Consequentemente, o objecto da decisão passa a ser não só aquele facto alegado pelo autor, mas também este facto invocado pelo réu. Este objecto passa de uno (o tribunal só tem de se pronunciar sobre a pretensão do autor) para plúrimo (o tribunal também tem de se pronunciar sobre a excepção invocada pelo réu). Assim, resta acrescentar que é nulo por omissão de pronúncia sobre a pretensão do autor o despacho saneador que conheça da procedência de uma excepção peremptória -- e que, consequentemente, absolva o réu do pedido e extinga a instância -- com o fundamento de que é inútil a continuação desta, dado que, mesmo que a pretensão do autor viesse a ser reconhecida, a acção terminaria necessariamente com aquela decisão de improcedência (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), e 613.º, n.º 3, CPC).

Do exposto decorre que o tribunal não pode conhecer de uma excepção peremptória no despacho saneador e absolver o réu do pedido com base nessa excepção antes de reconhecer a pretensão que essa excepção visa impedir, modificar ou extinguir.

VI. Nada obsta, no entanto, a que, no despacho saneador, o tribunal considere uma excepção peremptória improcedente. Esta decisão de improcedência não depende do prévio reconhecimento da pretensão do autor: para declarar que a excepção não existe, basta a pressuposição da existência dessa pretensão, desde que esta pressuposição possa vir a ser confirmada ou infirmada mais tarde no processo, ou seja, desde que o conhecimento do tribunal não se limite à apreciação da excepção peremptória.

Nada impede que, no despacho saneador, seja antecipado o julgamento de improcedência sobre a excepção peremptória e que, depois, se averigúe no processo a pretensão do autor. Nesta hipótese, embora em momentos distintos, são apreciados a pretensão alegada pelo autor e a excepção invocada pelo réu. Como acima se demonstrou, o que não é admissível é julgar a excepção procedente e dispensar, com base nesta procedência, a averiguação da pretensão do autor.

VII. Também se pode configurar a hipótese contrária àquela que se tem vindo a examinar: então há que analisar se, no despacho saneador, o juiz pode considerar procedente o pedido do autor, reservando para a sentença final o conhecimento de eventuais excepções oponíveis à pretensão que, entretanto, já se encontra reconhecida. Na ordem jurídica portuguesa, a sentença com reserva (Vorbehaltsurteil; sentenza con riserva) não encontra nenhuma regulamentação legal, limitando-se a (pouca) experiência com o regime dessa sentença ao disposto no Reg. 1896/2006: primeiro é emitida a injunção de pagamento europeia (art. 12.º Reg. 1896/2006), só depois é que o requerido se pode opor (art. 16.º a 20.º Reg. 1896/2006).

Atenta a falta de regulamentação legal sobre a sentença (não definitiva) com reserva, haverá que analisar o valor do reconhecimento da pretensão do autor no despacho saneador, nomeadamente para efeitos de execução. Quanto a este aspecto, pode perguntar-se se, apesar de não ter sido interposto recurso do despacho saneador, se justifica, para protecção do réu executado que ainda não viu analisada em 1.ª instância a excepção que alegou, a aplicação analógica do regime da execução provisória (cf. art. 704.º CPC); mas também se pode perguntar se, tendo sido interposto recurso do despacho saneador, o regime da execução provisória -- que então seria aplicável -- protege suficientemente o réu executado. Como se vê, a questão merece ser estudada (incluindo nela, naturalmente, a própria admissibilidade da decisão com reserva).

VIII. Resumindo o essencial: a excepção peremptória não é uma questão prejudicial da apreciação do mérito da causa; é antes uma questão prejudicada quando não for reconhecida a pretensão do autor, pois que então não pode operar o seu efeito impeditivo, modificativo ou extintivo.

MTS