"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/04/2015

Jurisprudência (124)



Recurso para uniformização de jurisprudência; oposição de julgados


I. O sumário de STJ 14/4/2015 (2098/11.7TBPBL.C1-A.S1.A) é o seguinte: 

1. O recurso para uniformização de jurisprudência (art. 688.º, n.º 1, do CPC) exige que haja contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, no domínio da mesma legislação e relativamente à mesma questão fundamental de direito.

2. No caso, a questão fundamental de direito tem a ver com o conceito da dupla conformidade e com a interpretação e aplicação da norma do art. 671.º, n.º 3, do CPC (acórdão recorrido) e, bem assim, na versão anterior deste diploma, do art. 721º nº 3 (acórdão-fundamento).

3. Sobre tal questão, os referidos acórdãos adoptaram entendimento diferente:

- Para o acórdão recorrido, mesmo que não haja perfeita coincidência de decisões, continuará a existir dupla conforme, se, na procedência parcial da apelação, a Relação emitir decisão que seja mais favorável para o recorrente do que a decisão da 1ª instância;

- Para o acórdão-fundamento, para existir dupla conforme, terá de se verificar uma sobreposição integral de decisões, ou seja, uma total e irrestrita coincidência entre a decisão da 1ª instância e o acórdão da Relação.

4. Porém, a redacção das normas dos citados arts. 671.º, n.º 3, e 721.º, n.º 3, evidencia que a caracterização da figura da dupla conforme sofreu uma alteração restritiva, passando a exigir-se que a confirmação da decisão da 1ª instância seja feita sem fundamentação essencialmente diferente.

5. Ora, a oposição de acórdãos, como fundamento do recurso de uniformização, pressupõe que se esteja
no domínio da mesma legislação; releva, pois, que, no intervalo entre um e outro acórdão, não tenha ocorrido qualquer mudança legislativa com interferência directa ou indirecta na questão de direito controvertida.

6. Para vingar a oposição entre os acórdãos, as situações apreciadas em cada um deles teriam de ser nuclearmente idênticas e as soluções teriam de ser diferentes, independentemente da alteração legislativa ocorrida entre eles.

7. Não é isso, porém, o que se verifica no caso: perante o quadro normativo anterior, sem interferência da fundamentação das decisões, operaria a contradição entre os acórdãos (limitada ao referido diferente entendimento sobre a dupla conforme); à luz da norma actual, a decisão do acórdão recorrido, fruto da diferente fundamentação, não seria, perante a situação apreciada no acórdão-fundamento, diferente da decisão adoptada neste, ou seja, não existiria dupla conforme.

8. Assim, apesar do diferente entendimento dos dois aludidos acórdãos sobre o conceito da dupla conforme, as situações apreciadas num e noutro não são idênticas, assim como não é substancialmente idêntico o quadro normativo neles considerado e aplicado, não se verificando todos os pressupostos do recurso para uniformização de jurisprudência.
 


II. O regime da dupla conforme fornece um critério de duvidosa valia para bloquear o acesso ao STJ, principalmente quando estão em causa decisões de mérito das instâncias. Em todo o caso, das duas orientações de que o acórdão dá conta, a única aceitável é a que considera que o proferimento pela Relação de uma decisão mais favorável ao recorrente do que a decisão recorrida obsta à admissibilidade do recurso de revista.

A fundamentação do acórdão é algo obscura, pelo menos para quem não acompanhou o processo (no terceiro parágrafo a contar do fim parece haver uma troca entre "acórdão recorrido" e "acórdão-fundamento"). Acima de tudo (e mesmo que haja empenho em seguir o principle of charity) permanece a dúvida sobre se o argumento do STJ é o de que o acórdão-fundamento não pode ser utilizado como tal para efeitos de interposição de recurso para uniformização de jurisprudência, atendendo a que este acórdão, se fosse visto à luz do actual art. 671.º, n.º 3, CPC, não constituiria uma dupla conforme com a decisão da 1.ª instância, dado que a fundamentação nele utilizada não é a mesma que foi utilizada pela 1.ª instância. 

Esta interpretação encontra algum apoio na relevância que o acórdão dá à mudança de critérios de constituição de uma dupla conforme, embora o acórdão, na sua globalidade, dificilmente a corrobore. É pena que o STJ não tenha sido mais claro, para que se percebesse, sem dúvidas, o sentido da sua orientação.

III. Atendendo à divergência jurisprudencial sobre o sentido da dupla conforme -- alguma jurisprudência entende que se verifica a dupla conforme sempre que a decisão da Relação seja mais favorável ao recorrente do que a decisão recorrida, outra exige, para que se verifique a dupla conforme, uma total coincidência entre as decisões das instâncias --, é previsível que venham a ser interpostos novos recursos para uniformização de jurisprudência nesta matéria. Se tal suceder, deve a jurisprudência ser uniformizada de acordo com o primeiro dos referidos entendimentos, dado que é incoerente que, se o acórdão da Relação confirmar a decisão recorrida, o recorrente não possa interpor revista, mas o possa fazer se o acórdão da Relação, em vez de confirmar a decisão recorrida, for mais favorável a esse recorrente.

MTS