"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



06/04/2015

Jurisprudência (111)




Oposição à execução com fundamento na realização de benfeitorias;
efeitos do recebimento da oposição

1. O sumário de RP  24/3/2015 (841/14.1T2OVR-D.P1) é o seguinte: 

I. Fundando-se a oposição à execução na realização de benfeitorias no bem cuja entrega se pretende, o recebimento da oposição não suspende o prosseguimento da execução, a menos que o executado preste caução.

II. Contudo, ainda que o executado preste caução, o exequente sempre poderia impossibilitar a suspensão caucionando a quantia pedida a título de benfeitorias.

III. Não tendo o executado prestado caução, não há lugar à suspensão da execução e o bem deve ser apreendido, sucedendo, porém, que a sua entrega não se poderá concretizar enquanto se mantiverem pendentes os embargos. 

[acórdão não publicado enviado pelo Dr. J. H. Delgado Carvalho].

2. Numa execução para entrega de coisa certa, o executado pode deduzir oposição à execução com fundamento em benfeitorias a que tenha direito (art. 860.º, n.º 1, CPC), mas, se o exequente caucionar a quantia pedida pelo executado a título de benfeitorias, o recebimento daquela oposição não suspende o prosseguimento da execução (art. 860.º, n.º 2, CPC). Perante este regime (que relaciona a prestação de caução pelo exequente com a não suspensão da execução), coloca-se o problema de saber se, na falta de prestação de caução pelo exequente, a suspensão da execução é automática ou fica dependente da prestação de caução pelo executado (cf. art. 733.º, n.º 1, al. a), CPC, aplicável à execução para entrega de coisa ex vi art. 551.º, n.º 2, CPC).

A RP, inspirando-se na posição de Lebre de Freitas (A Ação Executiva À luz do Código de Processo Civil de 2013, 6.ª ed. (2014), 437 s.), entende que, se o executado não prestar caução, a execução não se suspende: da não prestação de caução pelo exequente não se segue automaticamente a suspensão da execução. Como resulta dos itens I. e II. do sumário, antes de discutir as consequências da falta de prestação de caução pelo exequente há que discutir as consequências da falta dessa prestação pelo executado. Dito de outro modo: as consequências da falta de prestação de caução pelo exequente têm se ser vistas em ligação com as consequências da prestação de caução pelo executado.

Assim, em concreto:

-- Se o  executado embargante prestar caução, esta parte obtém a suspensão da execução (art. 733.º, n.º 1, al. a), e 551.º, n.º 2, CPC);

-- Depois disso, se o exequente prestar caução, esta parte impõe o levantamento da suspensão da execução (a RP retira esta premissa do disposto no art. 860.º, n.º 2, CPC);

-- Finalmente, se nem o executado, nem o exequente prestarem caução, não se verifica a suspensão da execução, mas o exequente não pode receber a coisa durante a pendência dos embargos; a RP retira esta consequência da aplicação analógica do disposto no art. 733.º, n.º 4, CPC.

3. A posição adoptada pela RP é, como se vai procurar demonstrar, bastante discutível.

O executado que pretende ser indemnizado pelas benfeitorias realizadas na coisa cuja entrega lhe é pedida goza do direito de retenção dessa coisa (cf. art. 754.º e 755.º, n.º 1, CC), mas esse direito de retenção fica "excluído" (na terminologia legal) se a outra parte (in casu, o exequente) prestar caução suficiente. Postos estes dados legais, o problema a resolver é o de saber como compatibilizar esta “exclusão” do direito de retenção do executado (efeito substantivo: art. 756.º, al. d), CC) com a não suspensão da execução (efeito processual: art. 860.º, n.º 2, CPC). Se aquela “exclusão” do direito de retenção for harmonizável com esta não suspensão da execução, então haverá que concluir que o exequente, ao provocar aquela “exclusão”, também obtém esta não suspensão. 

A compatibilização entre a “exclusão” do direito de retenção e a não suspensão da execução não parece ser especialmente problemática. Antes do mais, há que atender ao efeito substantivo decorrente da prestação de caução: a "exclusão" do direito de retenção. A possibilidade da produção deste efeito em juízo não parece ser questionável, como se pode demonstrar através de um exemplo simples. Considere-se que, numa acção de reivindicação, o réu invoca, como excepção peremptória, o direito de retenção; se o autor prestar caução nos termos do art. 756.º, al. d), CC, os efeitos decorrentes daquela direito deixam de se produzir na acção, pelo que o réu, em vez de ser condenado a entregar a coisa contra o pagamento pelo autor das despesas que teve com essa coisa, vai ser condenado a entregar, sem qualquer condição, essa coisa. Quer dizer: a prestação de caução pelo autor teve como consequência que o tribunal, em vez de proferir uma condenação condicional, pode proferir uma condenação tout court.

Assente a possibilidade repercutir em juízo, como efeito substantivo, a “exclusão” do direito de retenção através da prestação de caução, é altura de procurar compatibilizar esse efeito com o efeito processual que também decorre dessa caução: a não suspensão da execução como consequência da dedução de embargos pelo executado. Parece ser possível conjugar harmonicamente aquele efeito substantivo com este efeito processual. Se a prestação de caução pelo exequente "exclui" o direito de retenção do executado, o mais coerente é admitir que os efeitos processuais decorrentes dos embargos deduzidos pelo executado sejam, para o exequente, os menores possíveis. Com a prestação de caução, o exequente "excluiu" o direito de retenção do executado; logo, é lógico que a dedução de embargos pelo executado (fundamentados num direito de retenção que o exequente "excluiu") não se repercuta negativamente na execução (e, nomeadamente, não implique a suspensão da execução).

Lógico é também que, permitindo a lei – isto é, o art. 756.º, al. d), CC e o art. 860.º, n.º 2, CPC – que o exequente contra o qual é invocado o direito de retenção possa, através da prestação de uma caução, “excluir” o direito de retenção e obstar à suspensão da execução, não seja imposta ao executado a prestação de caução para obter essa suspensão. Como acima se terá demonstrado, a relação entre a “exclusão” do direito de retenção e a não suspensão da execução é perfeitamente compreensível, pelo que nada tem de estranho que, em vez de ser o executado embargante a ter de provocar a suspensão da execução, tenha de ser o exequente a evitar essa suspensão. Se o exequente, através da prestação de caução, pode provocar dois efeitos que lhe são vantajosos – apesar de um ser substantivo e o outro processual –, o que é lógico é que tenha de ser esse exequente a desencadear ambos esses efeitos, e não que seja o executado a ter evitar um deles (a não suspensão da execução) através da prestação de caução.

Contra o anteriormente afirmado poder-se-ia invocar que, se, através da prestação da caução, o exequente “exclui” o direito de retenção do executado, então os embargos deduzidos por esta parte perdem qualquer justificação e deveriam extinguir-se. O que, no fundo, se argumenta é que, como a “exclusão” do direito de retenção não pode implicar a inutilidade superveniente dos embargos de executado, então essa “exclusão” não pode ter qualquer repercussão em juízo. Basta esta verificação para que se possa duvidar da bondade do argumento, pois que não é crível que um facto impeditivo, modificativo ou extintivo de um direito invocado em juízo não possa tenha repercussão no processo. A perspectiva de análise dos efeitos da “exclusão” do direito de retenção na execução pendente tem de ser outra: não pode ser a da negação desses efeitos, mas antes a da aceitação desses efeitos. Cabe então analisar que efeitos da “exclusão” do direito de retenção, que não a inutilidade superveniente da oposição à execução, se podem produzir em juízo.

Quando o exequente presta caução para “excluir” o direito de retenção, isso não significa que o exequente reconhece (ou confessa) aquele direito de retenção e que, portanto, os embargos de executado devem extinguir-se por confissão do pedido (cf. art. 277.º, al. d), CPC). O efeito da prestação de caução pelo exequente é outro: para o caso de o tribunal vir a reconhecer o direito de retenção do executado, então o exequente, com a prestação de caução, paralisa os seus efeitos. Quer dizer: a prestação de caução só opera no caso de o direito de retenção vir a ser reconhecido, pelo que essa prestação só opera a título eventual ou subsidiário.

Isto permite concluir que os efeitos produzidos em juízo pela “exclusão” do direito de retenção decorrente da prestação de caução pelo exequente são semelhantes àqueles que são produzidos pela invocação de uma excepção peremptória (um tema que merece, certamente, uma análise mais aprofundada): o exequente limita-se a produzir um efeito que, no caso de o direito de retenção do executado vir a ser reconhecido, paralisa os seus efeitos. Na perspectiva do exequente, a situação apresenta-se da seguinte forma: para a hipótese de o direito de retenção do executado vir a ser reconhecido nos embargos, a prestação de caução pelo exequente obsta a que esse direito produza efeitos na execução.

Pode assim concluir-se que a caução é prestada pelo exequente a título eventual ou subsidiário: ela serve, não para destruir o direito de retenção do executado, mas para paralisar os efeitos decorrentes desse direito. Nada, aliás, há de extraordinário na conclusão de que aquela caução é prestada a título eventual ou subsidiário. Por exemplo: não sendo definitiva a sentença que serve de título executivo, o exequente ou qualquer outro credor só pode ser pago se prestar caução (cf. art. 704.º, n.º 2, CPC); também nesta hipótese a prestação de caução é apenas condicional: a prestação de caução destina-se a garantir os interesses do executado no caso de a sentença que foi apresentada como título executivo vir a ser revogada ou modificada pelo tribunal de recurso. Outro exemplo: o art. 647.º, n.º 4, CPC permite que o recorrente obtenha a atribuição de efeito suspensivo à apelação, desde que demonstre que a execução imediata da decisão recorrida é susceptível de lhe causar prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução; esta caução também é prestada a título eventual, dado que ela se destina a garantir a posição do recorrido apenas no caso de a Relação vir a confirmar a decisão recorrida.

4. Pelo exposto impõe-se uma conclusão inversa àquela que consta do acórdão da RP: é a prestação de caução pelo exequente que justifica que a oposição à execução não tenha efeito suspensivo, não a prestação de caução pelo executado que impõe que o exequente tenha de prestar caução para obstar à suspensão da execução. Tudo isto, no fundo, confirma o disposto no art. 860.º, n.º 2, CPC: só a prestação de caução pelo exequente obsta a que os embargos de executado produzam a suspensão da execução.

Esta solução não parece arbitrária. Através da prestação de caução, o exequente tem a faculdade de “excluir” o direito de retenção do executado (art. 756.º, al. d), CC) e de obstar à suspensão da execução (art. 860.º, n.º 2, CPC); é mais lógico que seja o exequente a produzir ambos estes efeitos através de uma única prestação de caução do que o executado a ter de obter, através de uma idêntica prestação de caução, a suspensão da execução quando o exequente não “excluiu” o seu direito de retenção. Se o exequente não “excluiu” o direito de retenção do executado, não tem sentido que tenha de ser esta parte a ter de obter a suspensão da execução.

No caso concreto, a exequente não prestou caução, pelo que não "excluiu" o direito de retenção do executado (efeito substantivo), nem produziu a não suspensão da execução (efeito processual). Sendo assim, parece haver que concluir em sentido oposto à orientação da RP (e, bem assim, à da 1.ª instância, que foi idêntica à da RP): mantendo-se o direito de retenção do executado pela não prestação de caução pelo exequente, a dedução de oposição pelo executado implica a suspensão da execução.

MTS