1. Num artigo dedicado ao
estudo dos reflexos da alteração da lei sobre as decisões judiciais, W.
Habscheid (ZZP 78 (1965), 403) apresenta um caso interessante: em 1941,
durante o Governo de Vichy, foi aprovada uma lei que permitia que, passados
três anos após a separação de pessoas e bens, o cônjuge que tinha sido
considerado culpado nessa separação podia requerer a conversão da separação em
divórcio, mas o tribunal tinha o poder discricionário de decretar ou não
decretar essa conversão; em 1945 e 1946, duas novas leis restabeleceram a
situação legal que existia antes da lei aprovada pelo Governo de Vichy, situação segundo
a qual o cônjuge culpado podia, nas mesmas condições, requerer a conversão da
separação em divórcio, mas -- e nisto reside o aspecto importante -- o
tribunal, perante a verificação do requisito temporal, tinha de decretar a
conversão da separação em divórcio.
A alteração legislativa
colocou a questão de saber se o cônjuge que, durante a vigência da lei de
Vichy, tinha requerido a conversão de separação em divórcio e não a tinha
obtido podia requerer, de novo, essa conversão. Quase unanimemente mas
com fundamentações muito distintas, a jurisprudência e a doutrina francesas
responderam -- num caso que tinha fortes contornos políticos -- que nada
impedia que esse cônjuge voltasse a requer a conversão (e, portanto, a obter,
em termos potestativos, a conversão da separação em divórcio).
No mesmo estudo, W.
Habscheid (ZZP 78 (1965), 435) refere um outro exemplo -- por acaso
igualmente francês -- cuja solução também suscita alguns problemas. O exemplo é
o seguinte: temendo ficar sem as acções de uma sociedade pela iminente invasão
alemã, A alienou, a título fiduciário, essas acções a B; A
morre durante a Segunda Guerra Mundial; o irmão de A pede a restituição
das acções, mas não obtém ganho de causa, dado que o tribunal entendeu que a
pretensão já se encontrava prescrita; em 1950, é publicada uma lei que admite, no caso de uma pessoa ser declarada morta por sentença, a
propositura de qualquer acção durante os seis meses posteriores a essa
declaração; A foi nessa altura declarado
morto; o seu irmão intentou uma nova acção, que o tribunal considerou
admissível.
A estes casos pode
acrescentar-se um outro (completamente imaginado e politicamente neutro):
suponha-se que, numa altura em que não eram admitidas nenhumas presunções
legais, um pretenso filho propõe uma acção de investigação da paternidade; a
acção é julgada improcedente; algum tempo depois, é introduzido na respectiva
ordem jurídica um novo regime legal que estabelece algumas presunções da
paternidade; pode perguntar-se se o pretenso filho pode instaurar, de novo, uma
acção de investigação da sua paternidade.
2. A todos os exemplos
anteriores são comuns os seguintes factos: é intentada uma acção; a acção é
julgada improcedente; sobrevém uma lei que, em teoria, permitiria que, se a
situação fosse por ela apreciada, a acção viesse a ser julgada procedente.
Perante, estas circunstâncias pode perguntar-se se o caso julgado que resultou
da primeira acção obsta à admissibilidade da segunda acção.
Sendo hoje assente que o caso
julgado (mesmo o de uma obrigação instantânea) só vale rebus sic stantibus,
o que se pergunta é se um caso julgado absolutório só pode valer legibus
sic stantibus.
3. A questão colocada nada tem
a ver com obrigações duradouras -- como é tipicamente uma obrigação de
alimentos -- e com a possibilidade de alterar um caso julgado a elas
respeitante com fundamento tanto em factos supervenientes, como numa alteração
legislativa igualmente superveniente (sobre esta última situação, cf. I.
Alexandre (Modificação do Caso Julgado Material Civil por Alteração
das Circunstâncias (pol. 2010), 543 ss.). Em todos os exemplos anteriores a
acção terminou com uma decisão de improcedência, pelo que não se chegou a
constituir nenhuma situação jurídica, muito menos uma situação de carácter
duradouro.
Após uma decisão de
improcedência, o que pode haver de duradouro não pode ser uma situação
constituída por essa decisão (se houve absolvição, nada foi constituído em
termos substantivos), mas antes o estado de coisas que já existia antes da
decisão e que permanece inalterado após o caso julgado. Por exemplo: o alegado
credor que não obteve a condenação do devedor continua a não ser credor; o
cônjuge que não conseguiu o decretamento do divórcio continua a estar casado; o
pretenso filho que não obteve o reconhecimento da paternidade continua a não
estar reconhecido como filho; o devedor que não obteve a declaração da extinção
do crédito continua a ter o dever de realizar a correspondente prestação.
Visualizando, num esquema, a
situação:
CJA
↓
│––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––-------------–––-→
NEP→ NEP→
(CJA = Caso julgado absolutório; NEP = Não estabelecimento da paternidade)
Esta colocação da questão é
importante, porque demonstra que o que se trata de saber não é se o caso
julgado absolutório pode ser modificado, mas antes de saber se o estado de
coisas que o caso julgado não alterou pode ser modificado com base numa lei
superveniente ao próprio caso julgado. Dito de outra forma: o que agora está em causa não é saber se o
caso julgado da decisão que não reconheceu a paternidade pode ser modificado,
mas antes saber se o não estabelecimento da paternidade pode ser alterado (e
se, portanto, é admissível estabelecer essa paternidade) com base numa lei
superveniente. Ainda mais em concreto: o problema não é de modificação do caso
julgado absolutório, mas de modificação, com fundamento numa lei posterior, da
situação que o caso julgado absolutório deixou inalterada.
A continuação da situação
anterior ao caso julgado absolutório é clara nas situações em que ele incide
sobre uma decisão proferida numa acção constitutiva: uma decisão absolutória
proferida numa acção constitutiva nada constituiu, pelo que se mantém
inalterado o estado de coisas que existia antes da decisão. Por exemplo: uma
decisão de improcedência proferida numa acção divórcio deixa inalterada o estado de casado dos cônjuges. Mas pode
dizer-se o mesmo de qualquer outra decisão absolutória: uma decisão de
improcedência proferida numa acção de reivindicação deixa imodificado o não
reconhecimento do autor como proprietário: a situação (propriedade do autor) não existia antes do caso
julgado e continua a não existir depois do caso julgado.
Esta colocação do problema é
muito relevante, porque, desde logo, permite concluir que a aplicação da lei nova à
situação que já existia antes do caso julgado absolutório e que continua a
persistir após esse caso julgado não pressupõe nenhuma retroactividade dessa
lei. Isto é importante, porque, não havendo que operar com nenhuma
retroactividade da lei nova, não se coloca o problema de salvaguardar o caso
julgado absolutório dessa retroactividade. Em termos mais explícitos: do
disposto no art. 282.º, n.º 3, CRP quanto à salvaguarda dos casos julgados
civis perante a retroactividade da declaração de inconstitucionalidade tem-se
retirado que uma lei retroactiva não pode atingir o caso julgado; mas, como o
que está em causa é saber se a lei nova pode ser aplicada imediatamente a uma
situação que subsiste após um caso julgado absolutório, este caso julgado não é
afectado com essa aplicação e, por isso, não se coloca o problema da sua salvaguarda retroactiva.
O que se discute é se a lei nova é aplicável para o futuro, não se a lei nova
vai destruir o passado (incluindo neste o caso julgado absolutório).
Na ordem jurídica portuguesa, o problema em análise tem ainda de ser visto por uma outra perspectiva. No processo civil português, não há nenhum ónus de o autor alegar todas as causas de pedir concorrentes que podem fundamentar o seu pedido; assim, se o autor não obtiver ganho de causa com fundamento numa causa de pedir, nada impede que essa mesma parte instaure uma nova acção com fundamento numa outra causa de pedir, porque, como os objectos dos dois processos são distintos, não opera a excepção de caso julgado (cf. art. 580.º, n.º 1, e 581.º, n.º 1, CPC). Por exemplo: o autor instaurou uma acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge com fundamento no facto x; nada impede que, se não obtiver ganho de causa, proponha uma outra acção com o fundamento y. Assim, supondo que uma lei nova vem acrescentar o fundamento z às causas do divórcio, nada pode impedir que o cônjuge instaure uma nova acção de divórcio, invocando agora como causa de pedir o facto z.
Na ordem jurídica portuguesa, o problema em análise tem ainda de ser visto por uma outra perspectiva. No processo civil português, não há nenhum ónus de o autor alegar todas as causas de pedir concorrentes que podem fundamentar o seu pedido; assim, se o autor não obtiver ganho de causa com fundamento numa causa de pedir, nada impede que essa mesma parte instaure uma nova acção com fundamento numa outra causa de pedir, porque, como os objectos dos dois processos são distintos, não opera a excepção de caso julgado (cf. art. 580.º, n.º 1, e 581.º, n.º 1, CPC). Por exemplo: o autor instaurou uma acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge com fundamento no facto x; nada impede que, se não obtiver ganho de causa, proponha uma outra acção com o fundamento y. Assim, supondo que uma lei nova vem acrescentar o fundamento z às causas do divórcio, nada pode impedir que o cônjuge instaure uma nova acção de divórcio, invocando agora como causa de pedir o facto z.
Do exposto resulta que o que
se pode discutir é se a lei nova é imediatamente aplicável à situação que o
caso julgado absolutório não alterou e que, por isso, persiste no momento da
entrada em vigor dessa lei. Por exemplo: A não obteve o reconhecimento
da sua paternidade; B não conseguiu o decretamento do divórcio; o que,
em ambos os casos, importa averiguar é se uma alteração legislativa posterior é
imediatamente aplicável ao não estabelecimento da paternidade de A ou ao
estado de casado de B. Para
a resposta a esta pergunta, a circunstância de ter havido um caso julgado
absolutório (que não reconheceu a paternidade ou que não decretou o divórcio) é
completamente irrelevante. O que é relevante é que a situação que já existia
antes do caso julgado -- e que este não alterou -- se mantém no momento da
entrada em vigor da lei nova.
A resposta já está implícita no que antes se referiu. Há que
concluir, na verdade, que um caso julgado absolutório não obsta à aplicação imediata de uma
lei nova à situação jurídica que o mesmo não alterou e que, por isso, persiste
depois dele. Aquele caso julgado não impede a aplicação imediata de uma lei
nova à situação jurídica que ele não alterou e que subiste no momento da
entrada em vigor daquela lei. Em suma: o caso julgado absolutório só vale legibus
sic stantibus.
Visualizando, num esquema, a solução proposta:
CJA LN NA
↓ ↓ ↓
│––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––-------------–––-→
NEP→ NEP→
Visualizando, num esquema, a solução proposta:
CJA LN NA
↓ ↓ ↓
│––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––-------------–––-→
NEP→ NEP→
(LN = Lei nova; NA = Nova acção)
4. Importa precisar o sentido da solução proposta. Esta solução significa que o caso julgado absolutório não obsta a que possa ser instaurada uma nova acção com fundamento na lei nova, ou seja, ela implica que esse caso julgado não produz uma excepção de caso julgado na segunda acção. Neste momento, não se discute se esta excepção não opera porque as causas de pedir das duas acções são distintas ou porque, apesar de isto não suceder, a lei superveniente bloqueia aquela excepção. Muito provavelmente, verificar-se-á, conforme a hipótese concreta, uma ou outra das referidas situações.
4. Importa precisar o sentido da solução proposta. Esta solução significa que o caso julgado absolutório não obsta a que possa ser instaurada uma nova acção com fundamento na lei nova, ou seja, ela implica que esse caso julgado não produz uma excepção de caso julgado na segunda acção. Neste momento, não se discute se esta excepção não opera porque as causas de pedir das duas acções são distintas ou porque, apesar de isto não suceder, a lei superveniente bloqueia aquela excepção. Muito provavelmente, verificar-se-á, conforme a hipótese concreta, uma ou outra das referidas situações.
Uma
das consequências da solução agora defendida pode ser a destruição retroactiva
do caso julgado absolutório: isso sucede sempre que, na segunda acção, seja
constituída uma situação jurídica com eficácia retroactiva. Suponha-se, por
exemplo, que, depois de uma decisão de improcedência, é estabelecida a
paternidade numa segunda acção com fundamento numa lei nova; este
estabelecimento é retroactivo (cf. art. 1797.º, n.º 2, CC), o que destrói o anterior
caso julgado absolutório. A solução impõe-se por si mesma e não pode constituir obstáculo à solução acima defendida, dado que a
alternativa seria o estabelecimento da paternidade apenas a partir do caso
julgado absolutório – o que é uma impossibilidade jurídica.
5.
As reflexões anteriores incidem apenas sobre o caso julgado absolutório.
Supõe-se que há boas razões para discutir de forma distinta a susceptibilidade
de instauração de uma nova acção com fundamento numa lei nova depois de um caso
julgado absolutório (que não constitui nenhuma situação jurídica) e de um caso
julgado condenatório (que constitui – em sentido amplo – uma nova situação
jurídica).
Porque
o caso julgado condenatório constitui (lato
sensu) uma nova situação jurídica, há que distinguir duas hipóteses:
–
Se o caso julgado condenatório tiver constituído uma situação duradoura, é
possível alterar esse caso julgado com fundamento numa lei superveniente (cf.
art. 619.º, n.º 2, CPC);
–
Se o caso julgado condenatório tiver constituído uma situação instantânea, só é
possível afectar esse caso julgado se a lei nova tiver eficácia retroactiva;
contra esta possibilidade vale, no entanto, a tutela constitucional do caso
julgado e a insusceptibilidade de o afectar por uma lei retroactiva (cf. art.
282.º, n.º 3, CRP).
MTS