"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/04/2015

Jurisprudência (113)


Processo especial de revitalização; extinção da instância; 
abuso do direito; litigância de má fé


1. O sumário de RE 12/3/2015 (845/13.1TBABF.E1): 

[i] Constitui acção para cobrança de dívidas do devedor, consagrada no artigo 17.º-E, n.º 1, do CIRE, a acção condenatória, onde se pede a declaração de incumprimento definitivo de um contrato promessa, com consequente condenação da promitente vendedora no pagamento do sinal em dobro; [ii] encontrando-se o devedor submetido a processo especial de revitalização, com administrador judicial provisório já nomeado, vedada está a interposição de acção para cobrança de dívida; [iii] se, não obstante esta proibição, esta [for] instaurada, deve a mesma ser declarada extinta, mesmo que tenha obtido decisão de mérito, se o plano de recuperação vier a ser aprovado e homologado; [iv] deve ser despojado [do] direito de requerer a extinção da acção, com fundamento no instituto do abuso de direito, o devedor/demandado que não leva ao conhecimento da acção [...] declarativa [a] pendência do processo de revitalização, nem cria as condições necessárias para o aditamento à relação de bens, no âmbito do dito processo especial, da dívida a que alude a acção condenatória, apesar de dela ter conhecimento.

2. Para melhor compreensão do sumário e do sentido da decisão há que explicitar que o art. 17.º-E, n.º 1, CIRE estabelece que a nomeação pelo juiz, no âmbito de um processo especial de revitalização, do administrador judicial provisório obsta à instauração de quaisquer acções de cobrança de dívidas contra o devedor e que, no caso concreto, o plano de recuperação não chegou a ser homologado. É neste contexto que tem de ser entendida a qualificação como abusiva da alegação, pela demandada, da nulidade do processo de cobrança que foi realizada pela RE: não tendo esta parte, no momento oportuno, dado conhecimento, no processo de cobrança da dívida, da pendência do processo especial de revitalização, é abusiva a invocação da nulidade do processo depois da não homologação do plano de recuperação. A orientação da RE é totalmente correcta, embora tenha faltado concluir que o referido abuso é subsumível à litigância de má fé, dado que, como, aliás, a RE salienta, a parte omitiu gravemente o seu dever de cooperação (cf. art. 542.º, n.º 2, al. c), CPC) ao não dar a conhecer ao tribunal e à contraparte do processo de cobrança a pendência do processo especial de revitalização. O que se verificou foi, portanto, uma situação de litigância de má fé, pelo que faltou a aplicação da respectiva sanção à parte (cf. art. 542.º, n.º 1, CPC).

Também tem interesse acentuar que, segundo parece, a RE nada teria a opor, se o plano de recuperação tivesse sido aprovado, à declaração de extinção do processo de cobrança, mesmo que neste já tivesse sido proferida uma decisão de mérito e, portanto, obtido um caso julgado. Trata-se de uma hipótese interessante que merece uma análise aprofundada, desde logo quanto ao vício de que padeceu o processo que esteve indevidamente pendente e no qual foi obtido o caso julgado (nulidade?, inadmissibilidade?, outro vício?) e depois quanto à possibilidade de fazer repercutir esse vício sobre o valor de caso julgado. Certo é que a possibilidade de extinguir (retroactivamente) a instância após o trânsito em julgado da decisão é favorecida pela (hoje) preponderante concepção processual do caso julgado: o trânsito em julgado apenas impõe que um juiz numa posterior acção tenha de respeitar o decidido (autoridade de caso julgado) ou não possa voltar a decidir o mesmo do que foi decidido (excepção de caso julgado). Maiores dificuldades existiriam se se seguisse uma concepção material do caso julgado, pois que então a extinção do processo implicaria destruir a situação jurídica constituída (ou "novada") por esse caso julgado.

MTS