1. O art. 671.º, n.º 3, CPC estabelece o chamado regime da dupla conforme: sem prejuízo dos casos em que o recurso de revista é sempre admissível (cf. art. 629.º, n.º 2, CPC), esse recurso não é admitido de um acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamento essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo se desse mesmo acórdão for admissível interpor a revista excepcional (cf. art. 672.º CPC). O regime caracteriza-se por excluir um recurso para o STJ que, em princípio, seria admissível, pelo que o que há que determinar é se as decisões das instâncias são conformes. Quer dizer: o intérprete/aplicador deve preocupar-se em determinar se as decisão são conformes (duae conformes sententiae), e não se as mesmas são desconformes (duae difformes sententiae), pois que é aquela conformidade que exclui a revista, e não esta desconformidade que torna admissível este recurso.
As decisões das instâncias podem ser conformes, mesmo que entre elas exista alguma desconformidade. O art. 671.º, n.º 3, CPC confirma esta conclusão: as decisões das instâncias são conformes se as respectivas fundamentações, apesar de distintas, não forem essencialmente diferentes. Assim, nem toda a desconformidade exclui a conformidade, ou seja, nem toda a desconformidade é uma não-conformidade.
2. Qualquer que seja o critério pelo qual se afere a conformidade entre as decisões das instâncias (matéria que agora não pode ser tratada), é certo que essa conformidade exclui a revista. Porque há necessariamente uma parte vencida no acórdão da Relação, continua a existir um fundamento "para" a interposição da revista por essa parte, mas, apesar disso, o art. 671.º, n.º 3, CPC exclui que continue a existir um fundamento "de" interposição daquele recurso. Há, em termos legais, um "fundamento para" a interposição da revista, mas, também legalmente, deixou de haver um "fundamento de" interposição desse recurso (uma contraposição semelhante é utilizada na clássica obra de von Kries, Die Rechtsmittel des Civilprocesses und des Strafprocesses (1890), 495 s.).
Pode perguntar-se, no entanto, se a falta do fundamento "de" interposição do recurso de revista afasta sempre o fundamento "para" para essa interposição. Em termos mais técnicos, há que perguntar se a inadmissibilidade objectiva da revista decorrente do disposto no art. 671.º, n.º 3, CPC posterga, sempre e em qualquer caso, o fundamento "para" recorrer em termos subjectivos, ou seja, a legitimidade para recorrer da parte vencida no acórdão da Relação (sobre esta legitimidade, cf. art. 631.º CPC).
A resposta não pode deixar de ser negativa. Compreende-se -- ou melhor, pode compreender-se -- que uma parte vencida na decisão da 1.ª instância não possa recorrer para o STJ se ficou de novo vencida no acórdão da Relação, ou seja, pode aceitar-se que a lei retire de um duplo decaimento da parte a inadmissibilidade da interposição da revista por essa parte. O que não pode admitir-se é que a revista continue a ser inadmissível quando se verifique um (alegado) vício na formação da decisão da Relação, isto é, quando a parte vencida pretenda atacar, não a decisão em si, mas a sua formação. Quanto a este aspecto, a parte não pode ser considerada duplamente vencida, dado que a parte pretende alegar, pela primeira vez, um fundamento de recurso que não podia ter invocado na apelação interposta da decisão da 1.ª instância para a Relação.
Para prevenir qualquer confusão, importa acrescentar que não se está a referir a hipótese em que a parte pretende alegar no recurso de revista um fundamento que podia ter alegado aquando da anterior interposição do recurso de apelação. Este fundamento não pode basear a admissibilidade da revista numa situação de conformidade das decisões das instâncias, pelo que se encontra precludido (o que significa, em termos práticos, que o apelante tem o ónus de esgotar todos os fundamentos no recurso interposto da decisão da 1.ª instância). O que se está a considerar é a hipótese de o acórdão da Relação, apesar de confirmar sem voto de vencido e sem fundamento essencialmente diverso a decisão da 1.ª instância, fornecer um novo fundamento para a interposição do recurso de revista.
No direito português, há uma situação que, sem qualquer dificuldade, preenche o referido requisito da novidade do fundamento da revista. Apesar da coincidência quanto ao sentido condenatório ou absolutório das decisões das
instâncias, a revista é admissível se a parte pretender reagir contra o
não uso ou o uso deficiente dos poderes da Relação sobre a matéria de facto
no julgamento da apelação (cf. art. 662.º, n.º 1 e 2, CPC). Ainda que a Relação tenha proferido uma
decisão idêntica à decisão da 1.ª instância, a parte pode interpor recurso de
revista se puder invocar como fundamento deste recurso o não uso ou uso deficiente pela Relação dos poderes sobre a matéria de facto. Por exemplo: mesmo que a Relação confirme a condenação do réu constante da decisão recorrida, o réu condenado pode interpor recurso de revista se a Relação não tiver controlado a valoração da prova realizada na 1.ª instância com o argumento de que a falta de imediação impede essa reapreciação.
Pode encontrar-se um exemplo jurisprudencial desta orientação em STJ 19/2/2015 (405/09.1TMCBR.C1.S1): não obstante a ré de uma acção de divórcio ter sido condenada na 1.ª instância e na Relação (apesar de também ter ganho o pedido reconvencional que formulou) e de, portanto, se verificar uma conformidade entre as decisões das instâncias, o STJ admitiu a revista que foi interposta por essa parte do acórdão da Relação que rejeitou a apelação por entender que a recorrente não tinha cumprido os requisitos exigidos para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto (cf. art. 640.º CPC). Embora nada conste do acórdão (porque possivelmente a questão da admissibilidade da revista foi apreciada num despacho anterior), pode subentender-se que o STJ admitiu que a parte vencida em ambas as instâncias tinha direito a um duplo grau de jurisdição quanto à recusa da reapreciação pela Relação da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto com o fundamento de que essa recorrente não tinha cumprido os ónus inerentes à impugnação dessa decisão.
3. A conformidade (ou, se for o caso, a desconformidade) das decisões das instâncias constitui um "critério absolutamente inadequado para a decisão do legislador sobre a admissibilidade ou a não admissibilidade de qualquer outra impugnação" de uma decisão (Bettermann, ZZP 77 (1964), 34). Incumbe à jurisprudência, com uma aplicação cuidada e criteriosa do regime da dupla conforme, não ampliar os inconvenientes deste regime.
MTS
Pode encontrar-se um exemplo jurisprudencial desta orientação em STJ 19/2/2015 (405/09.1TMCBR.C1.S1): não obstante a ré de uma acção de divórcio ter sido condenada na 1.ª instância e na Relação (apesar de também ter ganho o pedido reconvencional que formulou) e de, portanto, se verificar uma conformidade entre as decisões das instâncias, o STJ admitiu a revista que foi interposta por essa parte do acórdão da Relação que rejeitou a apelação por entender que a recorrente não tinha cumprido os requisitos exigidos para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto (cf. art. 640.º CPC). Embora nada conste do acórdão (porque possivelmente a questão da admissibilidade da revista foi apreciada num despacho anterior), pode subentender-se que o STJ admitiu que a parte vencida em ambas as instâncias tinha direito a um duplo grau de jurisdição quanto à recusa da reapreciação pela Relação da decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto com o fundamento de que essa recorrente não tinha cumprido os ónus inerentes à impugnação dessa decisão.
3. A conformidade (ou, se for o caso, a desconformidade) das decisões das instâncias constitui um "critério absolutamente inadequado para a decisão do legislador sobre a admissibilidade ou a não admissibilidade de qualquer outra impugnação" de uma decisão (Bettermann, ZZP 77 (1964), 34). Incumbe à jurisprudência, com uma aplicação cuidada e criteriosa do regime da dupla conforme, não ampliar os inconvenientes deste regime.
MTS