"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/04/2015

Oposição à execução com fundamento na realização de benfeitorias; efeitos do recebimento da oposição (2)


1. Três notas em acréscimo ao afirmado em Jurisprudência (111)

A primeira delas respeita aos efeitos da prestação de caução num processo pendente. É antiga a concepção de que a cautio é uma garantia contra um prejuízo patrimonial (Paulys III (1899), 1814) -- ou melhor, como qualquer garantia, contra uma eventualidade que é, in casu, um prejuízo patrimonial. O direito processual mostra que a prestação de caução se destina a garantir a reparação de um eventual prejuízo, mas também mostra -- e este é o aspecto que agora importa acentuar -- que, pelo menos em alguns casos, essa prestação produz um efeito "paralisante" a favor da parte que presta a caução. Não será mesmo descabido qualificar a prestação de caução como um ónus da parte, dado que esta obtém um efeito favorável como contrapartida daquela prestação: em alguns casos, esse efeito pode ser "paralisante" de um efeito favorável à outra parte.

Acrescentando dois exemplos àqueles que já foram referidos: (i) quando, a pedido do requerido, a providência cautelar é substituída por uma caução (cf. art. 368.º, n.º 3, CPC), o requerido que presta a caução não extingue o direito do requerente a obter a providência cautelar, antes paralisa este direito através da disponibilização de uma quantia monetária que garante a reparação dos prejuízos que o requerente pode vir a ter com a não concessão da providência cautelar requerida; (ii) quando o executado presta caução para obter a suspensão da penhora sobre certos bens (cf. art. 785.º, n.º 3, CPC), essa parte não extingue o direito do exequente a penhorar bens do executado, antes paralisa os efeitos da penhora sobre os bens penhorados (em relação aos quais deixa de se verificar a inoponibilidade estabelecida no art. 819.º CC, destinando-se a caução precisamente a servir de sucedâneo dos bens que venham a ser alienados pelo executado).

Dentro da problemática que tem vindo a ser analisada, o mesmo pode ser dito da prestação de caução pela contraparte do titular do direito de retenção (cf. art. 756.º, al. d), CC). Também esta prestação não extingue o direito de retenção, antes paralisa os efeitos que decorrem da sua alegação pelo respectivo titular. Talvez seja mesmo esta razão pela qual a lei fala de "exclusão" do direito de retenção como consequência da prestação de caução.
 
2. Uma segunda nota respeita a uma questão diversa. Trata-se da dupla produção de efeitos -- uns substantivos, outros processuais -- que decorre da prestação de caução pelo exequente. Esta prestação "exclui" o direito de retenção (efeito substantivo: art. 756.º, al. d), CC) e impede a suspensão da execução como consequência da dedução de embargos pelo titular do direito de retenção (efeito processual: art. 860.º, n.º 2, CPC).

Verifica-se, na hipótese, um concurso (cumulativo) de normas: um mesmo acto -- a prestação de caução pelo exequente -- é subsumível a uma previsão substantiva (a do art. 756.º, al. d), CC) e a uma previsão processual (a do art. 860.º, n.º 2, CPC), sendo essa a razão por que dela decorrem efeitos substantivos e efeitos processuais. A prestação de caução pelo exequente constitui exemplo de um acto duplo, ou seja, de um acto (das partes) que é simultaneamente substantivo e processual. As consequências desta qualificação são bem conhecidas: ao contrário do que sucede quanto aos actos (apenas) processuais, um acto duplo pode ser impugnado com fundamento em falta e vícios da vontade. Uma confirmação disto encontra-se no disposto no art. 359.º, n.º 1, CC quanto à declaração de nulidade ou anulação da confissão.

3. Uma terceira nota destina-se a acentuar que a situação em análise constitui um excelente exemplo para confirmar as relações de dependência mútua e recíproca entre o direito substantivo e o direito processual. No caso concreto, nenhum dos dois efeitos que decorrem da prestação de caução pode ser isolado do outro efeito:

-- A prestação de caução produz um efeito substantivo ("exclusão" do direito de retenção) que não pode deixar de se produzir igualmente em processo (mesmo que este já esteja pendente no momento da prestação de caução); quer dizer: não pode ser ignorada num processo pendente -- nomeadamente, nuns embargos de executado -- a "exclusão" do direito de retenção que decorre daquela prestação;

-- O efeito processual (impedimento à suspensão da execução) que decorre da prestação de caução não pode impedir o efeito substantivo ("exclusão" do direito de retenção) que também resulta daquela prestação; isto é: a circunstância de a prestação de caução ocorrer durante a pendência de um processo -- e de, portanto, se produzir necessariamente o efeito processual -- não pode constituir fundamento para que o correspondente efeito substantivo não se produza igualmente e não se cumule no processo pendente àquele efeito processual.

4. Apesar da brevidade da análise do problema, o que foi afirmado nos dois posts é suficiente para que se possa concluir que, numa matéria que parecia situar-se numa periferia recôndita do sistema processual civil, há, afinal, muito de fundamental, sob o ponto de vista metodológico, a considerar e a ponderar.

MTS