"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/04/2015

Jurisprudência (120)


Substituição processual; representação da herança; curador especial


1. O sumário de STJ 12/3/2015 (3588/10.4TBOER-B.L1.S1) é o seguinte:

I - A legitimidade é, fundamentalmente, uma posição perante uma determinada pretensão deduzida em juízo, e, no caso do autor, afere-se pelo interesse em demandar, que, por sua vez, se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção.

II - O art. 2074.º do CC está relacionado com o exercício dos direitos e obrigações que o herdeiro tinha contra o falecido, naturalmente em vida dele, os quais, por força do seu n.º 1, se conservam em relação à herança e até à liquidação e partilha, podendo tal exercício ser conflituante, se o herdeiro for o cabeça de casal.

III - Do art. 2074.º, n.º 3, do CC, decorre que se, por qualquer circunstância, houver necessidade de recorrer a juízo para cobrar o crédito da herança contra o herdeiro, ou o crédito do herdeiro contra a herança e o herdeiro, seja ele credor ou o devedor, e este for o cabeça de casal, nomear-se-á, para a respectiva acção (de cobrança judicial), um curador especial.

IV - Aquele preceito legal é aplicável, também, na situação em que um herdeiro reclama da herança um seu direito, ou a herança reclama dele uma obrigação, sendo que, no momento da propositura da acção, o herdeiro não era cabeça de casal, tendo passado a sê-lo posteriormente.

2. Segundo se percebe da fundamentação do acórdão, foi proposta pelo cabeça-de-casal (com fundamento no disposto no art. 2088.º, n.º 1, CC) uma acção de restituição da posse de uns bens que supostamente pertenciam à herança; durante a pendência desta causa, houve uma alteração no desempenho das funções de cabeça-de-casal, tendo o demandado passado a desempenhar essas funções (em substituição do autor da acção). O STJ entendeu que, dado que o réu não podia cumular, a posição de demandado e de cabeça-de-casal, a herança devia passar a ser representada por um curador especial, aplicando (segundo parece, por analogia) o disposto no art. 2074.º, n.º 3, CC.

É evidente que o herdeiro demandado não pode exercer as funções de cabeça-de-casal, para as quais foi nomeado durante a pendência da causa. Mas, ao contrário do que o STJ entendeu, a questão não se resolve apenas com a atribuição da representação da herança a um curador especial.

O problema é o seguinte: a acção de restituição tinha sido proposta pelo cabeça-de-casal como autor -- e não como representante da herança -- com fundamento no art..2088.º, n.º 1, CC (é, aliás, como autor que esse cabeça-de casal é sempre nomeado no acórdão), o que significa que esse cabeça-de-casal agiu como substituto processual da herança; assim, a herança nunca foi parte (formal) na causa: ela era antes a parte substituída; por isso, quando o cabeça-de-casal passa a ser o próprio demandado, não basta resolver o problema através da nomeação de um curador especial à herança, pela simples razão de que esta não era parte na causa.

Da circunstância de o demandado não poder ser simultaneamente réu e substituto processual da herança não pode resultar que esta herança passa ex lege de parte substituída a parte na causa (in casu, a autor da causa) quando se verifica aquela incompatibilidade. Basta ter presente que a intervenção na acção do adquirente ou do cessionário nos termos do art. 263.º, n.º 1, CPC só pode ocorrer através da habilitação. Por isso, bastante mais aceitável era exigir que a herança se habilitasse à acção (tinha para tal personalidade judiciária -- cf. art. 12.º, al. a), CPC -- e, porque os bens cuja restituição se pedia supostamente a integram, legitimidade processual -- cf. art. 30.º, n.º 1, CPC). Só nesta base se poderia defender que a herança -- que então seria parte da causa -- deveria ser representada por um curador especial. 

Resta acrescentar que esta representação da herança por um curador especial nada tem a ver com a legitimidade, mas antes com a capacidade processual: é, aliás, desta que trata o art. 2074.º, n.º 3, CC.

MTS