1. De acordo com o disposto no art. 374.º, n.º 2, CC, se a parte contra quem um documento for apresentado impugnar a veracidade da letra ou da assinatura, incumbe à parte que tenha apresentado o documento a prova da sua veracidade. Trata-se de uma concretização da regra de que a parte que alega um direito tem o ónus de provar os factos constitutivos deste direito (cf. art. 342.º, n.º 1, CC), dado que incumbe à parte interessada em servir-se do documento como meio de prova a demonstração da genuinidade da letra ou da assinatura.
Perante a falta de prova da genuinidade da letra ou da assinatura -- ou seja, perante um non liquet sobre esse facto --, é entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência que o documento, embora não possa valer como documento assinado, é livremente apreciado como documento não assinado. O argumento habitualmente utilizado é retirado do disposto no art. 366.º CC: a força probatória do documento escrito a que falte algum dos requisitos exigidos na lei é apreciada livremente pelo tribunal.
Apesar do carácter unânime da referida orientação, nada impede -- e, aliás, tudo impõe -- que a mesma deva ser repensada. Para simplificar a análise subsequente, utiliza-se apenas a situação em que está em causa a genuinidade da assinatura.
2. Antes do mais, cabe chamar a atenção para que do disposto no art. 366.º CC não resulta, de modo algum, o que a jurisprudência e a doutrina retiram dele. Desde logo, é duvidoso que a falta de prova da genuinidade do documento possa ser equiparada à falta de um requisito legal desse documento. A falta de requisitos legais de um documento verifica-se, por exemplo, quando não for realizada a confirmação perante o notário quer do documento subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler (cf. art. 373.º, n.º 3, CC), quer do documento subscrito a rogo do seu autor (cf. art. 373.º, n.º 4, CC). Uma situação bastante distinta é aquela em que a genuinidade da assinatura que consta de um documento não se encontra provada: o critério da solução do non liquet que consta do art. 414.º CPC impõe que se considere como provada a não genuinidade da assinatura, e não que se ficcione que a assinatura é suprimida do documento.
Mas, ainda que a falta de prova da genuinidade da assinatura possa ser equiparada à falta de um requisito legal, a verdade é que a aplicação do art. 366.º a essa situação está muito longe de justificar a solução preconizada pela jurisprudência e pela doutrina. É certo que, faltando um requisito legal, o documento é livremente apreciado pelo tribunal, mas -- note-se bem -- isso acontece observando o que pode ser designado como uma regra de indivisibilidade da força probatória do documento: o que o art. 366.º CC considera que é livremente apreciado não é o conteúdo do documento depois de desconsiderada a sua subscrição, mas o documento no seu conjunto, incluindo a forma como foi subscrito.
Isto demonstra que, bem ao contrário do entendimento unânime sobre a matéria, o disposto no art. 366.º CC não justifica a transformação de um documento cuja assinatura não se encontra provada num documento sem assinatura. Em concreto: o art. 366.º CC demonstra que um documento assinado com uma assinatura não genuína não pode ser considerado equivalente a um documento não assinado. É nisto que consiste a referida regra da indivisibilidade: a falta de prova da genuinidade da assinatura não permite desconsiderar esta assinatura e continuar a considerar o conteúdo do documento como se o mesmo nunca tivesse sido assinado. Em suma: o estabelecido no art. 366.º CC não permite tornar irrelevante a falta de prova da genuinidade da assinatura.
Assente esta conclusão, importa perceber que consequências é que podem resultar da relevância da falta de prova da genuinidade da assinatura para o valor probatório do conteúdo do documento.
3. A orientação dominante acima referida defende que o non liquet sobre a assinatura implica que, apesar de o tribunal ter de considerar a assinatura como não genuína (cf. art. 414.º CPC), o conteúdo do documento pode continuar a ser livremente apreciado Já se verificou que este raciocínio parte de uma inadmissível equiparação (mesmo se se aplicar o disposto no art. 366.º CC) entre um documento não assinado e um documento cuja assinatura não é genuína. Como acima se referiu, a falta de prova da genuinidade da assinatura não transforma um documento assinado num documento não assinado; o que sucede é que se está perante um documento assinado com uma assinatura que não é genuína.
O referido raciocínio também padece de um salto lógico que o torna muito duvidoso. Se se pode aceitar que um documento que nunca foi assinado seja livremente apreciado, já é muito discutível que um documento assinado cuja assinatura não esteja provada possa ser livremente apreciado pelo tribunal. Afinal, se não está provado que a assinatura que consta do documento é genuína, cabe perguntar o que pode justificar que se parta do princípio de que o seu conteúdo possa ser verdadeiro por provir da pessoa cuja assinatura não foi provada. Dir-se-á que as regras de experiência indiciam precisamente o contrário, já que, se não está provado que a assinatura é genuína, então há que concluir, segundo aquelas regras, que o seu conteúdo também não provém da pessoa cuja assinatura não é genuína.
Poder-se-ia afirmar que a livre apreciação defendida pela doutrina e pela jurisprudência se destinaria precisamente a permitir a infirmação desta inferência, ou seja, a permitir a formação da convicção da veracidade do conteúdo do documento apesar da não genuinidade da assinatura. O problema é que a lei fornece uma outra solução: conforme se estabelece no art. 376.º, n.º 1, CC, a genuinidade da assinatura faz presumir a veracidade do conteúdo do documento, embora se admita a arguição e a prova da sua falsidade pelo seu alegado autor; sendo assim, da falta de prova sobre a genuinidade da assinatura deve presumir-se, por um raciocínio simétrico, a não verdade do conteúdo do documento, devendo apenas admitir-se que o apresentante do documento possa fazer prova da veracidade do seu conteúdo.
É interessante verificar como esta solução respeita a referida regra de indivisibilidade sobre a força probatória do documento. Em vez de, como pretende a orientação dominante, a falta de prova da genuinidade da assinatura ser separada da prova da veracidade do conteúdo do documento, aquela solução legal parte do non liquet sobre a genuinidade da assinatura para concluir pela presunção da não veracidade do conteúdo do documento. Isto é: em vez de ficcionar que o documento nunca esteve assinado, a lei parte da falta de prova da genuinidade da assinatura e infere desta falta a não verdade do conteúdo do documento. Se o art. 376.º, n.º 1 e 2, CC infere da prova da genuinidade da assinatura a prova da veracidade do conteúdo do documento, não há nenhum motivo para não dar relevância à falta de prova da genuinidade da assinatura e para não utilizar esta falta como base para a inferência da não veracidade do conteúdo do documento. Trata-se, deve dizer-se, de uma presunção legal (embora iuris tantum), e não de uma presunção natural assente em qualquer regra de experiência.
4. A orientação dominante na jurisprudência e na doutrina também teria de ser aplicável à situação em que, em vez de se verificar um non liquet sobre a genuinidade da assinatura, estivesse provada essa não genuinidade pela parte contra a qual o documento tenha sido apresentado, dado que, como se sabe, aquele non liquet implica que o tribunal ficcione que a assinatura não é genuína. O problema é o mesmo, embora ele torne ainda mais evidentes os inconvenientes daquela orientação, dado que, perante a prova da falta de genuinidade da assinatura, aquela corrente admite, ainda assim, que o tribunal, através da livre apreciação, possa vir a considerar verdadeiro o conteúdo do documento.
Esta solução é contrária às regras de experiência e, acima de tudo, desprotege completamente a parte que provou que a assinatura que lhe é atribuída não é afinal da sua autoria, ou seja, que ilidiu a presunção decorrente do art. 376.º, n.º 1, CC. Cabe efectivamente perguntar qual a justificação que se pode encontrar para que, apesar da prova da não genuinidade da assinatura pela parte contra a qual o documento foi apresentado, ainda assim o tribunal possa considerar verdadeiro o conteúdo do documento que é desfavorável para essa mesma parte. A admitir-se esta solução, isso traduzir-se-ia na imposição de um duplo ónus da prova a essa parte: a parte contra a qual o documento foi apresentado teria de ilidir a presunção estabelecida no art. 376.º, n.º 1, CC e, além disso, teria de demonstrar que o conteúdo do documento não é verdadeiro.
Este regime implicaria uma inaceitável situação de desigualdade entre as partes. Enquanto o apresentante do documento só teria de provar a genuinidade da assinatura para beneficiar, nos termos do disposto no art. 376.º, n.º 1 e 2, CC, da presunção da veracidade do conteúdo do documento, a parte contra a qual o documento é apresentado só poderia obstar à consideração da veracidade desse conteúdo pelo tribunal demonstrando que a sua assinatura não é genuína e, além disso, que o conteúdo do documento não é verdadeiro.
Isto é suficiente para que deva concluir que, ao contrário do entendimento unânime, a prova da não genuinidade da assinatura não pode transformar o documento assinado num documento não assinado, cujo valor probatório passa a ser livremente apreciado pelo tribunal (apesar -- note-se -- de a parte contra a qual o documento foi apresentado ter provado a não genuinidade da assinatura). A solução não pode passar pela desconsideração da assinatura, mas antes precisamente pela relevância da prova da não genuinidade dessa assinatura, dado que a parte contra a qual o documento é apresentado necessita desta prova para fazer operar a seu favor a presunção da não veracidade do conteúdo do documento (e, portanto, para a dispensar da prova desta não veracidade).
5. Como se julga ter demonstrado, não há nenhuma justificação para que, perante a falta de prova da genuinidade da assinatura (pela parte que apresentou o documento) ou perante a prova da não genuinidade desta assinatura (pela parte contra a qual o documento foi apresentado), o tribunal considere irrelevante aquele non liquet ou aquela prova do contrário e possa apreciar livremente a veracidade do conteúdo do documento. O regime legal é bem distinto (e, aliás, bastante justificado e adequado): a falta de prova da genuinidade da assinatura e a prova da não genuinidade da assinatura fazem presumir iuris tantum a não veracidade do conteúdo do documento.
MTS