Factos instrumentais; consideração em recurso;
confissão extrajudicial; prova testemunhal
1. O sumário de RP 29/9/2015 (3052/05.3TBVLG-A.P1) é o seguinte:
I – Pode lançar-se mão, mesmo em recurso, dos factos instrumentais, alegados no processo e resultantes da discussão da causa, nos termos do artº 5º nº 2 al. a) CPCiv, mais a mais se constam do pedido formulado em recurso, tal como aliás já resultava, neste caso, do direito de pregresso – artº 264º nº3 CPCiv95/96.
II – A força probatória plena decorrente da confissão em documento extrajudicial não inibe a prova por testemunhas quer retirada do contexto do documento rectius a prova das circunstâncias em que a declaração foi produzida (artº 393º nº 3 CCiv), quer quando acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção contrária ao documento – v.g., um princípio de prova escrita, como o é um cheque passado a terceiro, que não, em contrato de crédito ao consumo, ao mutuante ou ao fornecedor do bem.
2. Extrai-se da fundamentação do acórdão a seguinte passagem:
"Temos portanto perante nós, de um lado, uma declaração escrita dos Oponentes, relativa ao recebimento de determinada quantia e o compromisso de a devolver de forma remunerada – todavia, de outro lado, temos a prova de que tal quantia, ou o produto da mesma, pelo menos enquanto traduzido no contrato (bem de consumo) não foi efectivamente entregue aos Oponentes.
Trata-se assim, no contexto das afirmações efectuadas no documento de “crédito ao consumo”, de uma confissão, na acepção do disposto no artº 352º CCiv, isto é, “o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e que favorece a parte contrária”, e confissão extrajudicial – artº 358º nº 2 CCiv.
A confissão extrajudicial possui força probatória material, tal como definido no artº 358º nº 2 CCiv – “a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”.
Trata-se de uma força probatória plena, a qual, porém, pode ser contrariada, conforme dispõe o artº 347º CCiv.
Este contrariar da força probatória plena não implica, em princípio, o uso da prova testemunhal, como decorre do disposto nos artºs 393º nº 2 e 394º CCiv – “não é admitida a prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por qualquer outro meio com força probatória plena”; “é inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artºs 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento, ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores”.
Esta proibição tem sido, ao menos maioritariamente, interpretada com restrições pelos tribunais, na esteira do estudo do Prof. Vaz Serra, Bol. [MJ] 112/191ss. ou na Revista Decana [= RLJ], 101/270ss, 103/13ss. ou 107/311ss.
Não há dúvida de que as normas citadas, proibindo a prova testemunhal, têm na base a desconfiança em relação a esta prova, consubstanciada em brocardos conhecidos – lettres passent témoins, verba volant scripta manent.
Mas as restrições do citado e consagrado Autor a uma interpretação lata ou meramente declarativa do preceito, passam por dois tipos de observações:
- a primeira, a de que a prova da declaração não inibe a prova do contexto do documento, rectius a prova das circunstâncias em que a declaração foi produzida (artº 393º nº 3 CCiv);
- a segunda, na esteira das leis francesa e italiana, ordenamentos onde se admite a prova testemunhal, desde que acompanhada de circunstâncias que tornem verosímil a convenção contrária ao documento – poderá ser um princípio de prova escrita, poderá ser ainda que se prove ter sido impossível moral ou materialmente, ao contraente, obter uma prova escrita, ou pode ser que se tenha perdido, sem culpa do contraente, o documento que fornecia a prova (louvamo-nos no voto de vencido do Consº Nascimento Costa no Ac.S.T.J. 3/6/99 Col.II/138 e 139; todavia, a doutrina é maioritária, no sentido apontado, na jurisprudência do nosso mais alto tribunal – veja-se, por todos, S.T.J. 23/2/2010 Col.I/71, relatado pelo Consº Alves Velho, ou S.T.J. 7/2/08 Col.I/77, relatado pelo Consº Santos Bernardino; deste Tribunal da Relação, veja-se, por todos, Ac.R.P. 26/11/07 Col.V/184 e 185, relatado pelo Desemb. Caimoto Jácome).
O citado Ac.S.T.J. 7/2/08, citando o Prof. Vaz Serra, Revista Decana cit., escreveu: “Efectivamente, se as circunstâncias do caso concreto tornam verosímil a convenção, a prova testemunhal desta não tem já os mesmos perigos que a regra dos artºs 394º e 395º se destina a conjurar, dado que o tribunal se não apoiará, para considerar provada a convenção, apenas nos depoimentos das testemunhas, mas também nas circunstâncias objectivas que tornam verosímil a convenção; nesta hipótese, a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias e a prova testemunhal limita-se a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias”.
Tudo isto para concluir que, com base na prova escrita consistente no próprio fac-simile do cheque que materializou a entrega da quantia que se tinha em vista mutuar, se concluiu que os Oponentes não chegaram sequer a receber, nem a quantia mutuada, nem o bem objecto do contrato, como bem de consumo".
MTS