"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/10/2015

Jurisprudência (212)



Recurso de apelação; alegações de recurso; conclusões das alegações


1. O sumário de STJ 1/10/2015 (824/11.3TTLRS.L1.S1) é o seguinte:

I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe.

II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso.

III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação.

IV – Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº 1 constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação.
 


2. A frequência com que os tribunais superiores são chamados a resolver problemas relacionados com as conclusões das alegações do recorrente é talvez inesperada. Também é algo surpreendente que a jurisprudência ainda se mostre dividida quanto ao entendimento a dar ao disposto no art. 639.º, n.º 1, CPC (que exige que o recorrente, nas suas alegações, deva concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão), em conjugação com o estabelecido no art. 640.º, n.º 1, CPC (que exige que o recorrente que impugna a decisão da matéria de facto indique, nas respectivas alegações, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que impõem uma diversa decisão sobre esses factos e ainda a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas).

O caso que o acórdão sumariado decidiu constitui exemplo da divergência jurisprudencial acima referida. A Relação considerou que não podia conhecer do objecto do recurso interposto pela Demandada da decisão da 1.ª instância, "com fundamento em que a Recorrente não sintetizou nas respectivas conclusões os fundamentos porque pede a alteração, bem como os concretos meios probatórios e sua localização"; perante esta decisão da Relação, aquela Recorrente interpôs um recurso de revista excepcional com fundamento em contradição do acórdão da Relação com o decidido em STJ 18/5/2004 (05A1334) (cf. art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC).

O recurso de revista excepcional teve a sua tramitação legal, com decisão prévia da formação competente (cf. art. 672.º, n.º 3, CPC) e vista ao MP, que formulou parecer no sentido da revogação do acórdão recorrido.

O acórdão sumariado dá uma resposta -- que pode ser considerada exemplar -- ao problema em análise. Confirmando a jurisprudência que o STJ vem adoptando sobre a matéria, o acórdão considerou que o que conta é que, nas conclusões, sejam identificados os pontos de facto impugnados pelo recorrente e as respostas alternativas por ele propostas. Efectivamente, uma coisa é impor o cumprimento dos ónus estabelecidos no art. 640.º, n.º 1 e 2, CPC ao recorrente, outra bem diferente é impor que esses ónus têm de voltar a ser cumpridos nas conclusões das alegações.

Talvez o acórdão possa ajudar a consolidar jurisprudência no sentido de que, nas conclusões das suas alegações, basta que o recorrente refira, de forma sintética, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e a resposta alternativa que, em sua opinião, se impõe, não cabendo ao recorrente voltar a cumprir nessas conclusões o ónus de indicar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem uma diversa decisão sobre aqueles pontos. Essa consolidação teria, além do mais, a vantagem de evitar que o STJ viesse a ser novamente chamado a pronunciar-se (em última análise, através de uma revista que, por ser excepcional, devia estar reservada para aspectos substanciais), sobre o conteúdo necessário das conclusões das alegações do recorrente que impugna a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto.

3. Uma observação final. A incerteza jurisprudencial sobre a forma de dar cumprimento aos ónus estabelecidos no art. 640.º, n.º 1 e 2, CPC conduz, como bem se pode compreender, os recorrentes a uma conduta defensiva e preventiva: embora a lei não o exija, à cautela o melhor é repetir o cumprimento de todos os ónus estabelecidos no art. 640.º, n.º 1, e 2, CPC nas conclusões das alegações. Com isto, corre-se o risco de que o que não é legal acabe por se transformar num uso (e quiçá num costume), aumentando inutilmente o formalismo processual.

MTS