"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/11/2017

Jurisprudência estrangeira (28)



Ónus da prova;
distribuição

BGH 23/11/2017 (III ZR 60/16) decidiu o seguinte:

Nas situações de violações grosseiramente negligentes dos deveres do pessoal de vigilância de uma piscina, incumbe ao obrigado à indemnização o ónus da prova da falta do nexo de causalidade entre as violações daqueles deveres e os danos na saúde do utente. A situação jurídica é comparável, sob este ponto de vista, à da responsabilidade civil médica. Aqui como ali trata-se de deveres que são direccionados à protecção da vida e da saúde. 

 


Paper (322)

 
-- Zhang, Wenliang, Sino–Foreign Recognition and Enforcement of Judgments: A Promising “Follow-Suit” Model? (SSRN 11.2017)


Bibliografia (605)

 
-- Stieglmeier, Henry, Vertragsarbitrage und Internationales Privat- und Zivilverfahrensrecht / Mit rechtsvergleichenden Aspekten aus dem englischen und französischen Recht (Duncker & Humblot: Berlin 2017)

Jurisprudência (740)


Presunções judiciais; 
poderes do STJ


1. O sumário de STJ 18/5/2017 (20/14.8T8AVR.P1.S1) é o seguinte:

[...] Da conjugação do disposto nos artigos 682.º e 674.º n.º 3 do Código de Processo Civil com os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, retira-se que o Supremo Tribunal de Justiça pode exercer o controlo sobre a construção ou desconstrução das presunções judiciais, utilizadas pelas instâncias, sindicando se a utilização das mesmas violou alguma norma legal, se carecem de coerência lógica ou, ainda, se falta o facto base, ou seja se o facto conhecido não está provado. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O art.º 682.º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Civil, dispõe:

Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3, do art.º674.º.
 


Por seu turno, o art.º 674.º, n.º 3, do mesmo diploma legal, estatui:

O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. 


Resulta destas disposições legais que os tribunais da relação têm a última palavra na fixação da matéria de facto com interesse para a composição do litígio, exercendo os poderes conferidos pelo art.º 662.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, sendo certo que quanto a essa matéria não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, como determina o n.º 4 da mesma disposição legal.

O Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, define e aplica o regime jurídico que julgue adequado aos factos fixados, podendo ter, quanto à fixação da matéria de facto, uma intervenção residual quando considere que ocorreu alguma violação dos preceitos legais que exijam determinada espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova.


Pode ainda o Supremo Tribunal de Justiça determinar que o processo volte ao tribunal recorrido, caso entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito, nos termos do n.º 3, do art.º 682.º, do Código de Processo Civil.

Como observa o Juiz Conselheiro António Abrantes Geraldes [Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016 -3.ª Edição, Almedina, pág. 367] “Afinal, em tais situações, defrontamo-nos com verdadeiros erros de direito que, nesta perspetiva, se integram também na esfera de competência do Supremo”, acrescentando “Em concretização de cada uma destas exceções, o Supremo Tribunal de Justiça pode cassar uma decisão sustentada em determinado facto cuja prova, dependente de documento escrito, foi declarada a partir de depoimento testemunhal, de documento de valor inferior, de confissão ineficaz ou de presunção judicial”.

No caso concreto dos autos o tribunal da relação considerou que, atentos os factos provados, a 1ª instância não podia presumir, nos termos dos artigos 349.º e 351.º do Código Civil, ter sido a A., ou alguém a seu mando, a danificar o dispositivo de Sistema de Posicionamento Global (GPS).

Na definição legal as presunções são ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art.º 349.º do Código Civil), sendo certo que as presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351.º do mesmo diploma legal).

O Professor Manuel A. Domingues de Andrade [Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora Limitada, pág. 215] conceitualiza a figura da presunção como sendo a “prova por indução ou inferência (prova conjetural) a partir dum facto provado por outra forma – e não destinado a representar nem mesmo a indicar (como o sinal ou contramarca) o facto que constitui a matéria a provar. Chama-se presunção a própria inferência; ou ainda (menos propriamente) o facto que lhe serve de base- facto que, mais rigorosamente, se designará por base da presunção.”

O Professor Antunes Varela [Manual de Processo Civil, Coimbra Editora Limitada, em coautoria com J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, pág. 484] dá-nos uma noção clara da figura ao afirmar que “diz-se prova por presunção a que, partindo de determinado facto, chega por mera dedução lógica à demonstração da realidade de um outro facto”, clarificando ainda mais “A presunção consiste na dedução, na inferência, no raciocínio lógico por meio do qual se parte de um facto certo provado, ou conhecido, e se chega a um facto desconhecido.”

A possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça poder controlar as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias tem-se revestido de alguma controvérsia, como se faz eco na doutrina e é demonstrado pela jurisprudência.

O Professor Miguel Teixeira de Sousa [Estudos sobre o novo processo civil, Lex, pág.442] refere que “o erro sobre a fixação dos factos materiais da causa também pode incidir sobre as presunções judiciais baseadas nos factos apurados nas instâncias, isto é, sobre as ilações extraídas desses factos com fundamento em regras de experiência”, acrescentando que “a incompetência do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à matéria de facto implica, com as restrições constantes no art.º 722.º, n.º 2, 2.ª parte, (atual art.º 674.º, n.º 3), que esse órgão não pode controlar a escolha e a decisão sobre essa matéria realizadas nas instâncias. Mas daí nada resulta quanto ao controlo pelo Supremo das presunções judiciais utilizadas pelas instâncias com base nos factos considerados adquiridos, porque a inadmissibilidade de alterar a matéria de facto nada pode significar quanto ao controlo sobre essas presunções. Quer dizer: quaisquer que sejam as limitações quanto à alteração pelo Supremo da matéria de facto, essas restrições nada valem para o controlo das presunções judiciais, porque este toma como base a matéria apurada nas instâncias e não envolve qualquer modificação desta matéria.”

Esta tomada de posição do referido Professor leva-o a rejeitar a corrente jurisprudencial que recusa ao Supremo Tribunal de Justiça qualquer possibilidade de controlo sobre as presunções judiciais utilizadas pelas instâncias, citando, entre outros, um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17/11/1994, com anotação discordante do Professor Vaz Serra, BMJ 441, 284.

Ainda na linha crítica ao radicalismo de tal posição, sustenta o Professor Miguel Teixeira de Sousa que no mínimo “ainda que se considerasse que as presunções judiciais deveriam ser tratadas, quanto à possibilidade do seu controlo pelo Supremo, como a generalidade da matéria de facto, haveria que concluir que, pelo menos, lhes seriam aplicáveis os poderes gerais de controlo do Supremo sobre a matéria de facto”, sublinhando que é neste sentido que vai a corrente maioritária da jurisprudência que admite que o Supremo Tribunal de Justiça possa verificar se o Tribunal da Relação usou adequadamente ou deixou indevidamente de usar esses poderes de controlo sobre a coerência da presunção judicial com os factos apurados (neste sentido, entre outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/10/1994, CJ/S-94/3, pág. 277).

São consideradas situações que exigem intervenção do Supremo Tribunal de Justiça quando a fixação de um facto através de uma presunção judicial viola a exigência de um certo meio de prova (por exemplo quando a lei exige que determinado facto só possa ser provado por documento), ou quando ocorra uma ofensa da força probatória de um desses meios (quando a presunção contraria um facto que se encontra plenamente provado).

Ainda seria de admitir o controlo sobre presunções judiciais baseadas em regras da experiência conhecidas da generalidade da opinião pública, que podem ser consideradas factos notórios, podendo o Supremo Tribunal de Justiça usar da faculdade prevista no art.º 412.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

A jurisprudência mais recente alinha no sentido desta orientação que admite um controle pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre a construção ou desconstrução das presunções judiciais, podendo verificar se a utilização das mesmas pelo Tribunal da Relação violou alguma norma legal, se carecem de coerência lógica ou, ainda, se falta o facto base, ou seja se o facto conhecido não está provado.

Vejamos alguma dessa jurisprudência, mais emblemática, da secção social, do Supremo Tribunal de Justiça:

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03-04-2013 - Recurso n.º 241/08.2TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Gonçalves Rocha:

- As presunções são ilações que a lei ou o julgador tira dum facto conhecido para firmar um facto desconhecido, conforme estabelece o artigo 349.º do Código Civil.

- Tratando-se dum meio probatório que é admitido para prova de factos suscetíveis de serem provados por prova testemunhal, conforme determina o artigo 351.º do Código Civil, está por isso vedado ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o uso deste meio probatório pelas instâncias, visto a sua competência, afora as situações de controlo de prova tabelada, se restringir a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos fixados pelas instâncias, conforme resulta dos artigos 722.º, n.º 3, e 729.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

- No entanto, já poderá o Supremo Tribunal de Justiça aferir se as presunções extraídas pelas instâncias violam os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, por se tratar duma questão de direito, podendo assim sindicar se as ilações foram inferidas de forma válida, designadamente se foram retiradas dum facto desconhecido por não ter sido dado como provado e bem assim se contrariam ou conflituam com a restante matéria de facto que tenha sido dada como provada, após ter sido submetida ao crivo probatório.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-01-2008 - Recurso n.º 2902/07 - 4.ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Sousa Grandão:

- A Relação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica e pode sindicar as presunções judiciais tiradas pela primeira instância no que respeita a saber se elas alteram ou não a factualidade apurada e, bem assim, se elas constituem, ou não, decorrência lógica de uma concreta factualidade apurada, atividade esta que não é, por norma, sindicável pelo STJ.

- Ao STJ cabe apenas indagar se é, ou não, admissível a utilização das referidas presunções, face ao estatuído no art.º 351.º do Código Civil, ou seja, apenas lhe cabe determinar se certo facto pode ser tido como provado com base em mera ilação, ou se, na espécie, se exige um grau superior de segurança na prova (art.º 722.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).

- Também se a ilação extraída contraria ou entra em colisão com um facto que foi submetido a concreta discussão probatória e que o tribunal houve como não provado, o STJ pode intervir corretivamente nos termos do art.º 729.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, bastando-se a correção com a simples eliminação da ilação extraída.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-01-2006 - Recurso n.º 3228/05 - 4.ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Sousa Peixoto:

- É lícito às instâncias, lançando mão do mecanismo das presunções judiciais, extrair ilações da factualidade que foi dada como provada.

- Tal mecanismo inspira-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica e nos próprios dados da intuição humana e traduz-se num juízo de valor formulado sobre os factos provados que se integra na matéria de facto.

- Relativamente às ilações assim extraídas, o Supremo só pode verificar se elas exorbitam o âmbito dos factos provados ou se deturpam o sentido normal dos factos de que foram retiradas, isto é, averiguar se foram extraídas dentro dos limites contidos nos artigos 349.º e 351.º do CC.

- Se aqueles limites não tiverem sido respeitados, estaremos perante um caso de violação da lei e, então, porque se trata já de uma questão de direito, caberá ao Supremo intervir, controlando e decidindo em ordem a fazer respeitar a conteúdo fáctico que foi dado como provado.


Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-11-2010 - Recurso n.º 3411/06.4TTLSB.S1- 4.ª Secção, relatado pelo Juiz Conselheiro Sousa Grandão:

- Porque as presunções judiciais se inserem no julgamento da matéria de facto e constituem um meio probatório da livre apreciação do julgador, está vedado ao Supremo proceder à sua avocação, visto que a sua competência funcional, afora as situações de controlo da prova tabelada, se restringe à apreciação definitiva do regime jurídico, que julgue adequado, aos factos materiais fixados pelas instâncias e, pela mesma razão, não pode o Supremo sindicar o uso, ou não uso, pela Relação, desse meio probatório.

- Por ser uma questão de direito, o Supremo já pode intervir para averiguar se as presunções extraídas pelas instâncias violam os artigos 349.º e 351.º do Código Civil, ou seja, se foram inferidas de factos desconhecidos – designadamente por não terem sido provados – ou irrelevantes para o efeito – designadamente porque o facto presumido exige um grau superior de segurança na prova – e, bem assim, se a ilação extraída conflitua com factualidade provada ou contraria outra que, submetida expressamente ao crivo probatório, tenha sido dada como não provada.


 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.07.2016 - Proc. n.º 487/14.4TTPRT.P1.S1 (Revista – 4.ª Secção), relatado pela Juíza Conselheira Ana Luísa Geraldes:

- Ao Supremo Tribunal de Justiça, em regra, apenas está cometida a reapreciação de questões de direito (art. 682.º, n.º 1, do NCPC), assim se distinguindo das instâncias encarregadas também da delimitação da matéria de facto e da modificabilidade da decisão sobre tal matéria.

- A sua intervenção na decisão da matéria de facto está limitada aos casos previstos nos arts. 674.º, n.º 3 e 682.º, n.º 3, do CPC, o que exclui a possibilidade de interferir no juízo da Relação sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como são os depoimentos testemunhais e documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais.

- Não está, porém, vedado legalmente ao Supremo verificar se o uso de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação ofende qualquer norma legal, se padece de alguma ilogicidade ou se parte de factos não provados.
Também na jurisdição cível a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem seguido esta, mais recente, orientação.

Vejamos, a título de exemplo, o acórdão de 10/01/2017, Revista 841/12.6.TBMGR.C1.S1, relatado pelo Juiz Conselheiro António Joaquim Piçarra:

- Na fixação da matéria factual relevante para a solução do litígio a Relação tem a derradeira palavra, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 2 do art.º 662.º do Cód. de Proc. Civil, acrescendo que da decisão proferida nesse particular pela Relação não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 662º, n.º 4, do Cód. Proc. Civil).

- É residual a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça no apuramento da factualidade relevante da causa, restringindo-se, afinal, a fiscalizar a observância das regras de direito probatório material, a determinar a ampliação da matéria de facto ou o suprimento de contradições sobre a mesma existentes.

- O uso de presunções não se reconduz a um meio de prova próprio, consistindo antes, como se alcança do art.º 349º do Cód. Civil, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos (factos de base) para dar como provados factos desconhecidos (factos presumidos).

- A presunção traduz-se e concretiza-se num juízo de indução ou de inferência extraído do facto de base ou instrumental para o facto essencial presumido, à luz das regras da experiência, sendo admitida nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art.º 351º do Cód. Civil).

- Face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto (art.º 662º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), é lícito à 2ª instância, com base na prova produzida constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art.º 607º, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil.

- Todavia, em sede de recurso de revista, a sindicância sobre a decisão de facto das instâncias em matéria de presunções judiciais é muito circunscrita, admitindo-se, ainda que com alguma controvérsia, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas poderá sindicar o uso de tais presunções pela Relação se este uso ofender qualquer norma legal, se padecer de evidente ilogicidade ou se partir de factos não provados."
 


3. [Comentário] Em relação à opinião transcrita no acórdão nada há a alterar, conforme já várias vezes houve a oportunidade de referir neste Blog: cf. Presunções judiciais e competência (decisória) do STJ, Jurisprudência (506), Jurisprudência (522) e Jurisprudência (618). 

MTS

29/11/2017

Jurisprudência europeia (TJ) (146)


Seguro obrigatório de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis — Dir. 72/166/CEE — Conceito de “circulação de veículos automóveis” — Acidente ocorrido numa exploração agrícola — Acidente que envolve um trator agrícola imobilizado, mas com o motor em funcionamento para acionar uma bomba utilizada para espalhar herbicida


TJ 28/11/2017 (C‑514/16, Rodrigues de Andrade et al./Proença Salvador et al.) decidiu o seguinte:

O artigo 3.º, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, relativa à aproximação das legislações dos Estados‑Membros respeitantes ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que não está abrangida pelo conceito de «circulação de veículos», referido nesta disposição, uma situação em que um trator agrícola esteve envolvido num acidente quando a sua função principal, no momento em que este acidente ocorreu, não consistia em servir de meio de transporte, mas em gerar, como máquina de trabalho, a força motriz necessária para acionar a bomba de um pulverizador de herbicida.



Jurisprudência (739)


Prova documental;
documento essencial; consequências da falta


1. O sumário de RE 8/6/2017 (702/14.4TBCTX.E1) é o seguinte: 

I - Um documento que prove um elemento da causa de pedir não é um documento essencial no sentido do art.º 590.º Cód. Proc. Civil.

II - A fase dos articulados não finda enquanto todos os réus não estiverem citados.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:


"O A. (…) intentou a presente acção contra (…), (…) e (…), pedindo a sua condenação no pagamento de metade das despesas que realizou com a Quinta de São (…), prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do Cartaxo sob o nº (…)/19870421, da freguesia do Cartaxo e inscrito na matriz rústica sob o artigo (…) da secção S e na matriz urbana, sob os artigos (…), (…) e (…), do qual o A. é proprietário de metade e as RR. proprietárias da outra metade, sob pena de enriquecimento sem causa.
*
Notificado para juntar suporte documental onde conste que as RR. são titulares inscritas relativamente ao imóvel, o A. juntou nova descrição predial do imóvel na qual consta o A. como titular inscrito na proporção de 1/3. Para além do A., constam como titulares inscritos na proporção de 1/3 (…), e 1/3 (…), casado com (…), no regime da separação de bens. 

Novamente notificado, o A. não juntou suporte documental relativo à titularidade das RR. como proprietárias do imóvel.
*
Foi, depois, proferida decisão em que, considerando-se verificada uma excepção dilatória inominada (falta de documento essencial à acção), absolveu as RR. da instância.
*
Desta sentença recorre o A. [...]
*
O despacho recorrido considerou o seguinte:

«O presente processo visa responsabilizar as RR. pelo pagamento de metade das despesas de manutenção do imóvel, suportadas apenas pelo A., na qualidade de comproprietário de metade do prédio, sendo as RR. proprietárias da outra metade. 

«Não dispondo o A. de suporte documental relativo à titularidade do prédio que afirma, e resultado dos documentos juntos que a titularidade do mesmo é diversa da invocada, os autos não podem prosseguir os seus termos, pois a prova do facto invocado não pode ser suprida por outro meio. 

«A junção da certidão de registo predial na qual conste que as RR. são as titulares inscritas relativamente ao imóvel, é um documento essencial para o prosseguimento da acção e para a apreciação do mérito da causa, pois constitui um pressuposto essencial de que depende esse prosseguimento».
 *
 O art.º 590.º, n.º 2, al. c), Cód. Proc. Civil, manda que, findos os articulados, o juiz profira, se for caso disso, despacho destinado a determinar a «junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador». A função do documento é possibilitar a decisão da causa sem se chegar à fase do julgamento.

O n.º 3 acrescenta que o juiz pode ainda convidar as partes para juntar um documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.

Caso típico é o das acções de estado, dadas as regras estritas do Código de Registo Civil no que à prova respeita. Por um lado, «os factos cujo registo é obrigatório só podem ser invocados depois de registados» (art.º 2.º); por outro, a prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de Estado e nas acções de registo» (art.º 3.º, n.º 1). São estes, aliás, os primeiros exemplos que os autores dão sobre este assunto (cfr. Antunes Varela et alli, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 263; e, por mais recente, Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 163). Nestes casos existe uma ligação inextricável entre o documento e o próprio objecto da acção. Como escreve o autor citado em último lugar, o «documento é essencial à prova de um facto que constitua situação jurídica (necessariamente) precedente daquela que a parte quer fazer valer» (ob. et loc. cit.[...])

Mas noutros casos tal ligação não existe, pelo menos de forma tão íntima. Referimo-nos, por exemplo, aos casos em que, simplesmente, a lei exige o documento; tais serão os casos de revisão de sentença estrangeira (art.º 981.º) ou de acção de anulação de deliberação social (art.º 59.º, n.º 4, Cód. Soc. Comerciais).

Mas o documento pode ainda provar um facto constitutivo da situação jurídica alegada e neste caso ele não é um documento essencial mas um mero meio de prova cuja apresentação ou não terá influência no desfecho da acção.

No nosso caso, entendemos que apenas se verifica a terceira situação.

Não estamos perante uma acção real stricto sensu; um dos pressupostos da presente acção é, sem dúvida, a co-titularidade de um direito de propriedade mas o verdadeiro fundamento da acção é a despesa que o A. alega que teve com o prédio. 

E aqui, das duas uma: ou as partes são comproprietárias e numa dada proporção ou o não são e será com base num documento do Registo Predial que tal será definido (sem pôr em crise que o registo predial é apenas fonte de uma presunção, nos termos do respectivo art.º 7.º, e que os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes, nos termos do art.º 4.º, n.º 1).

E daqui, com este documento, não se avança mais para o objecto da acção que é o da repartição das despesas que o A. alega ter tido; queremos dizer, não é a falta ou a existência da certidão do Registo Predial que vai demonstrar que o A. tem razão no seu pedido.

Pode-se provar um pressuposto da acção (se calhar, com mais rigor, a legitimidade material das partes) mas não se prova mais do que isso quando há mais a provar.

Por estes motivos, entendemos que a certidão do Registo Predial não é um dos documentos a que se refere o art.º 590.º."

3. [Comentário] O decidido pela RE merece acolhimento, embora por uma razão não aduzida no acórdão: é que, como pode ser depreendido do disposto nos art. 4.º, n.º 1 ("Os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros") e 5.º, n.º 1, CRegP ("Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo"), a prova da compropriedade entre os próprios comproprietários não depende da apresentação de uma certidão predial. Logo, numa acção que corre entre os próprios comproprietários, a certidão predial nunca pode ser um documento essencial nos termos do disposto no art. 590.º, n.º 3, CPC para provar a compropriedade.

O tribunal de 1.ª instância não andou bem ao absolver as rés da instância com base na falta de apresentação da certidão predial pelo autor. O documento essencial a que se refere o art. 590.º, n.º 3, CPC é um documento essencial para a prova de um pressuposto processual ou de um elemento do mérito da causa. Logo, a falta do documento essencial implica a falta da prova desse pressuposto ou desse elemento, pelo que o que o tribunal pode fazer é retirar as consequências, não da falta do documento, mas da falta do pressuposto ou do elemento.

MTS